quarta-feira, 16 de setembro de 2009

"Carlos Gomes 'dixit'---subsídios antológicos para uma antropologia do Desporto português a partir da autobiografia do ex-guarda-redes Carlos Gomes"

Já aqui falei, por diversas vezes, no Carlos Gomes.

Admirei-o como futebolista e confesso que, algumas vezes, o invejei como indivíduo.

Tinha por ele (e reforcei, de resto, esse sentimento lendo o seu "O Jogo da Vida") o fascínio (e a inveja!) que há, em geral, pelas crianças---e pelos loucos...

Porque o Carlos Gomes era (confessadamente) louco: dizia o que, no (hoje em larga medida "reinventado") regime fascista português, poucos mais tinham coragem de dizer e fazia aquilo que eram ainda mais raros os que ousavam sequer imaginar...

Carlos Gomes foi excessivo em tudo: no génio, no temperamento, na loucura.

Depois de retirado, disse, além disso, algumas das verdades que tinham, apesar de tudo, ficado por dizer e que vale a pena recordar e, sobretudo, re/transmitir a quantos não viveram esse tenebroso período da História nacional que foi o salazarismo que, hoje, volto a dizer, alguns por má fé, outros por ignorância e (im) pura estupidez, se obstinam em "recuperar" branqueando e ousando mesmo repropor à admiração de alguns... "ingénuos de carreira" que "por aí" circulam visivelmente ansiosos por serem (in?) justamente iludidos...

No sentido de refrescar algumas memórias mais embotadas (voluntariamente ou não...) e de ajudar a esclarecer umas quantas consciências mais... 'verdes' e, por isso, fáceis de iludir, proponho-me, hoje, aqui, oferecer a todos uma necessariamente breve antologia de "fragmentos escolhidos" do livro do Carlos Gomes, o já citado "O Jogo da Vida", publicado sem data, na colecção "Peregrinações", pela editora "Regra do Jogo".

Comecemos pela caracterização sociológica básica do clube onde o grande guarda-redes jogou em Portugal, após ter saído do Barreirense: o Sporting.

Ora, eu já aqui disse no "Quisto" alguma coisa sobre o meu "benfiquismo".

Disse (e repito-o agora) que me tornei (ou nasci?...) benfiquista por cultura familiar, é verdade, mas também por "imperativo de (quase) consciência", digamos assim.

Num certo sentido, tornei-me (ou, volto a questionar: terei já nascido?...) benfiquista pelas mesmas básicas e, em larga medida: instintivas razões de temperamento e maneira-de-ser pelas quais o outro Carlos António, o Gomes (obviamente!) nunca perdoou ao Sporting onde jogou e atingiu o estrelato exactamente a "imagem sociológica" persistente que tinha à época e que, de resto, o clube de Alvalade se encarregava ele próprio de substanciar numa prática regular de estreitíssima cumplicidade (ou devo dizer: de promíscua colagem?) ao poder político de então, prática essa de que, segundo confessa no livro, o próprio Carlos teve bastas razões para testemunhar, sofrendo-a mais de uma vez na pele.
É curioso, aliás, a este propósito, que se diga com alguma frequência (e muito desconhecimento da realidade, também!...) que o Benfica foi o... "salazarismo desportivo".

Claro que o salazarismo se serviu do futebol e naturalmente da sua imagem tópica entre nós que é o Benfica para mais eficazmente tentar entrar no espírito de uma larga camada da população; mas isso aconteceu exactamente porque o Benfica estava naturalmente identificado com essas camadas que eram em regra as mais desfavorecidas da sociedade portuguesa---o incipiente proletariado urbano e a grande massa do proletariado rural de então---e era deles, em mais de um sentido, a expressão institucional mais imediata e espontânea.

Foi porque o Benfica era sociologicamente isso que o 'regime' tentou usá-lo para "chegar ao povo" onde lhe foi sendo, aliás (e o livro do Carlos Gomes testemunha e documenta essa crescente dificuldade, vivida, de resto, por dentro) cada vez mais difícil entrar... sozinho.

Vejamos algumas passagens do livro sobre esta matéria:

Carlos Gomes descreve e caracteriza assim o Barreiro do seu tempo (de uma forma que é também, de mais de uma maneira, uma descrição e uma caracterização do Portugal do salazarismo):

"Os seus habitantes eram em esmagadora maioria anti-regime, coisa que naquela época se pagava muito caro. Para os fascistas os barreirenses eram motivo de especial interesse sendo considerados como malucos, comunistas ou... presidiários.

[...]

A C.U.F. empregava milhares de barreirenses e tinha---pois não!---a sua própria polícia. Só aqueles que aceitavam denunciar tudo quanto viam e ouiviam e os seus quadros superiotres viviam desafogadamente. Os outros, tinham uma uma situação económica e social catastrófica. A C.U.F. fomentou ódio e criou comunistas.

Outras particularidades barreirenses eram a elevada taxa de tuberculose, a vila sempre cercada de militares duros e o nela ter nascido, paradoxalmente, um dos mais famosos chefes da PIDE.

Foi neste ambiente que fui crescendo e via como em mim aumentava o ódio pelos «senhores importantes» e pela sua triste e porca palhaçada. Ver como aquela gente boa e trabalhadora tinha de se dobrar em vénias quando passava algum «senhorito» era inaguentável. Pobre do trabalhador que não quisesse cumprimentar respeitosamente aqueles fantoches! Era trabalhador... desempregado" [op. cit. págs. 13-14].

Transcrevi este longo parágrafo para enquadrar o que se segue onde se começa especificamente a falar da tal imagem sociológica que é o tema básico desta 'entrada'.

Escreve Carlos Gomes:

"Tinha catorze anos quando começou a época dos desafios silenciosos. Época de enorme agitação social, a «malta» esperava os domingos com impaciência, sobretudo se vinha o Sporting. Era hora e meia desabafando das injustiças semanais" (op. cit. pág. 14, sublinhado meu).

E acrescenta:

"O ambiente chegou a ser tal que o regime decidiu que ninguém poderia gritar durante o decorrer dos desafios. Cada vez que havia um jogo, um destacamento da Guarda Republicana instalava-se dentro do estádio, enquadrando o rectângulo de jogo com as metralhadoras nas mãos e de frente para o público. Pobre de quem abrisse a boca. Jamais esquecerei aqueles desafios silenciosos... [Ibid. loc. cit.]"

E mais adiante ainda [pág. 21] revela:

"Entretanto tinha falecido o «meu» primeiro presidente e tinha sido eleito, por aclamação, um dos poderosos do regime---Góis Mota---que ostentava, entre outros, o cargo de Procurador-Geral da República. Também nas horas livres era um dos grandes da Legião Portuguesa, comandava aquela polícia paralela à PIDE, sendo conhecido nestes serviços como «O General» [sublinhado meu].

E mais adiante (ibid. pág. 43):

"[...] a equipa [do Sporting] ia só em segundo lugar e para os patrões sportinguistas (refiro-me aos dirigentes e nunca aos sócios) o facto de um clube popular como o Benfica ir à cabeça era insultuoso para tanto poderio burocrático" [sublinhado meu].

Descrevendo, por exemplo, a sede do Granada, clube para onde se transferiu do Sporting, (d)escreve Carlos Gomes (op.cit.pág. 50), evidenciando implicitamente o luxo a que andava à época associado o clube de Alvalade, reflexo precisamente da sua estreita ligação ao regime político da ditadura:

"Acostumado ao luxo do local sportinguista, com os seus restaurantes, sala de cinema, ginásio, barbearia, serviços médicos, etc. etc. [...]"

Era, porém, apesar do que tudo o que no livro o seu autor reporta sobre quanto aqui já reproduzi, era a Carlos Gomes difícil ser mais claro do que na página 55: "ainda que a PIDE já metesse o nariz em território espanhol [...] o Sporting e o Governo português (que era quase o mesmo) [...] (sublinhado meu)".
A ideia de uma estreita relação do Sporting com o poder é reforçada por uma série de citações avulsas onde ela, ainda que implícita, fica amplamente sugerida.

Por exemplo, na página 63:

"Os negócios corriam bem, quer na leitaria, quer no estúdio fotográfico. [...] Apenas a garagem andava mal, pois (olha por donde!) o proprietário do edifício era um vice-presidente do Sporting que, ao saber que eu tinha pedido à Câmara Municipal a autorização para colocar umas bombas de gasolina, opôs-se.

A Câmara acabou por me comunicar que as não podia instalar, porque entre a porta da garagem e a estrada não havia bastante espaço. Quando meu pai, comigo já ausente, trespassou a garagem, viu com assombro como em poucas semanas a Câmara tinha alargado milagrosamente o passeio e autorizava a instalação de duas belas bombas... [...]".

Este pequeno acervo de citações ajuda a perceber a estreita ligação das cúpulas sportinguistas da época e, obviamente, da própria instituição Sporting Clube de Portugal, com o poder da ditadura.

Ora, este aspecto é importante por, desde logo, duas razões: a primeira (que é de natureza pessoal e clubista) é que ele fornece um contributo documental significativo, relevante, para ajudar a reperspectivar o mito de que o Benfica era o 'clube do regime' mas, de uma perspectiva mais lata e, sobretudo, mais objectiva a sua relevância advém-lhe do facto de ajudar a enquadrar e, por conseguinte, a compreender melhor todo o processo de decadência do próprio Sporting, iniciada em '74 com a queda do fascismo.

Desta, falo com mais pormenor noutro lugar, enquadrando-a numa análise global do fenómeno desportivo em Portugal.

Aqui, ficou, sobretudo, um (curto embora) património documental e, com ele, ainda uma vez, a homenagem àquele que foi, dos que vi actuar, o mais louco mas também o mais genial dos garda-redes portugueses, com todos os seus escessos e loucura um gritante 'corpo estranho' num país e num tempo em que não apenas "toda a nudez" como no título célebre de Arnaldo Gabor, mas toda a loucura para não dizer já toda a "diferença" era (impiedosamente) "punida".


[Imagem extraída com vénia de cadernetasecromos.blogspot.com]

2 comentários:

Gonçalo disse...

A história está cheia de exemplos de guarda-redes considerados "malucos". A verdade é que a posição de guarda-redes exige de uma pessoa qualidades distintas da de um jogador de campo, mas o Carlos Gomes deveria ter todas esas qualidades: a agilidade, a coragem (um guarda-redes naquela época teria de te-la muito mais do que hoje em dia, o jogo era muito mais duro, não haviam cartões nem substituições), inteligência,etc. O Carlos Gomes cresceu numa determinada época e aquilo que li agora retrata-a bem, ainda por cima crescendo na zona do Barreiro/margem sul do tejo onde as tensões sociais eram (e ainda são de certo modo)bastante acentuadas. Sabe-se também que teve muitos problemas mesmo com colegas do Sporting. É o preço que paga quem tem coragem mas também um modo de pensar avançado no seu tempo que não deveria ser nada fácil para quem pensava assim...Mas ao falar-se do carlos Gomes penso que era também oportuno falar de certos produtos do ambiente social da margem sul. Penso em Chalana, em Vítor Batista,em Carlos Manuel, em Fernando Mendes...É curioso como encontro em todos a mesma vontade de transgressão mas a mesma coragem para se dizerem certas coisas...
Quanto ao tal equívoco Sporting talvez já nessa altura o Sporting estivesse a dar tiros no pé diminuindo-se ao pôr em primeiro lugar o favorecimento de estar próximo do regime e desprezando um jogador que ainda hoje é falado e que suponho era talvez o mais popular do clube nessa altura. Hoje em dia talvez o Sporting esteja refém de tanta tecnocracia, dos Bancos mas foi esse o caminho que quis seguir esquecendo os seus dirigentes que a grande base de apoio do clube é popular disso não tenho qualquer dúvida, mas que já há vários anos é completamente desprezada.

Carlos Machado Acabado disse...

Sim, a base de apoio do Sporting é popular, claro.
O grande problema do clube é gerir internamente a frustração. Anos e anos sem ganhar deixam uma mossa horrível, num clube que chegou a ser o maior representante do desporto entre nós.
O Sporting optou por tentar geri-la (sem ironia) como... a raposa fez às uvas: fingindo desinteresse, isto é, deslocando o foco da sua cultura clubista das vitórias para um outro modo muito mais... 'platónico' de relacionar-se com a competição.
O pior é que, com o tempo, ter-se-á acomodado e hoje é um clube meio indefinido, que se contenta com os "restos" do Porto, por exemplo, e (como dizia um antigo aluno meu) "ganha o seu campeonato particular" se ganhar ao Benfica...
Ora, isso era impensável no tempo do carlos Gomes e mais ainda do Azevedo que ele foi substituir.
Nessa altura, eu recordo-me de tremer de medo a pensar o jogo com "eles": nós, Benfica, tínhamos grandes equipas mas com o Sporting nunca se sabia.
Recordo-me bem de uns célebres 4 que "levámos" na Luz com golos do Lourenço...
Quanto ao Carlos Gomes, era, de facto, um guarda-redes fabuloso: maluco mas fabuloso!
E era um revoltado, também.
Ia para o campo rodeado de miúdos pobres que entravam, de graça, com ele.
Um dia, um director qualquer, antes de umm jogo, avisou-o: "Isso de uma data de miúdos entrarem à borla, acabou, ouviste oh, Carlos Goomes? Isto aqui não é a sopa dos pobres, ham?
O Carlos gomes que estava a equipar-se, parou, levantou-se do banco, pegou nas luvas e estendeu-as ao dirigente.
"Para que é isto, pá?!"---perguntou ele espantado.
"É para o senhor ir para a baliza.
è que os miúdos entram comigo para me verem. Como o senhor os manda embora, eu vou com eles e, como o Sporting precisa de alguém na baliza..."
Era um fulano deste tipo: irreverente, revoltado!
Como o Vítor Baptista que era outro génio, excessivo e (no caso dele: literalmente...) suicida.
E, como diz, são eses jogadores excessivos, "demasiados", às vezes, um pouco (ou um muito...) loucos que fazem as lendas...
Claro que, naquele tempo, era a coisa mais fácil deste mundo (sobretudo a quem vinha do Barreiro: era, como hoje, vir de certos bairros ditos "sociais"...) achar resistências, despertar suspeita e fazer inimigos.
Um deles, terá sido o Azevedo de quem o Carlos Gomes diz, nas "Memórias" ("O Jogo da Vida") que nem lhe falava, com ciúmes...
Enfim...
É humano...
Se puder, leia o livro.
É como o próprio Carlos Gomes: emocional, subjectivo, cheio de ressentimento e frustração.
O "outro lado" do "ídolo"...
Um grande abraço também e... volte sempre, ham?