Admirei-o como futebolista e confesso que, algumas vezes, o invejei como indivíduo.
Tinha por ele (e reforcei, de resto, esse sentimento lendo o seu "O Jogo da Vida") o fascínio (e a inveja!) que há, em geral, pelas crianças---e pelos loucos...
Porque o Carlos Gomes era (confessadamente) louco: dizia o que, no (hoje em larga medida "reinventado") regime fascista português, poucos mais tinham coragem de dizer e fazia aquilo que eram ainda mais raros os que ousavam sequer imaginar...
Carlos Gomes foi excessivo em tudo: no génio, no temperamento, na loucura.
Depois de retirado, disse, além disso, algumas das verdades que tinham, apesar de tudo, ficado por dizer e que vale a pena recordar e, sobretudo, re/transmitir a quantos não viveram esse tenebroso período da História nacional que foi o salazarismo que, hoje, volto a dizer, alguns por má fé, outros por ignorância e (im) pura estupidez, se obstinam em "recuperar" branqueando e ousando mesmo repropor à admiração de alguns... "ingénuos de carreira" que "por aí" circulam visivelmente ansiosos por serem (in?) justamente iludidos...
No sentido de refrescar algumas memórias mais embotadas (voluntariamente ou não...) e de ajudar a esclarecer umas quantas consciências mais... 'verdes' e, por isso, fáceis de iludir, proponho-me, hoje, aqui, oferecer a todos uma necessariamente breve antologia de "fragmentos escolhidos" do livro do Carlos Gomes, o já citado "O Jogo da Vida", publicado sem data, na colecção "Peregrinações", pela editora "Regra do Jogo".
Comecemos pela caracterização sociológica básica do clube onde o grande guarda-redes jogou em Portugal, após ter saído do Barreirense: o Sporting.
Ora, eu já aqui disse no "Quisto" alguma coisa sobre o meu "benfiquismo".
Disse (e repito-o agora) que me tornei (ou nasci?...) benfiquista por cultura familiar, é verdade, mas também por "imperativo de (quase) consciência", digamos assim.
Num certo sentido, tornei-me (ou, volto a questionar: terei já nascido?...) benfiquista pelas mesmas básicas e, em larga medida: instintivas razões de temperamento e maneira-de-ser pelas quais o outro Carlos António, o Gomes (obviamente!) nunca perdoou ao Sporting onde jogou e atingiu o estrelato exactamente a "imagem sociológica" persistente que tinha à época e que, de resto, o clube de Alvalade se encarregava ele próprio de substanciar numa prática regular de estreitíssima cumplicidade (ou devo dizer: de promíscua colagem?) ao poder político de então, prática essa de que, segundo confessa no livro, o próprio Carlos teve bastas razões para testemunhar, sofrendo-a mais de uma vez na pele.
É curioso, aliás, a este propósito, que se diga com alguma frequência (e muito desconhecimento da realidade, também!...) que o Benfica foi o... "salazarismo desportivo".
Claro que o salazarismo se serviu do futebol e naturalmente da sua imagem tópica entre nós que é o Benfica para mais eficazmente tentar entrar no espírito de uma larga camada da população; mas isso aconteceu exactamente porque o Benfica estava naturalmente identificado com essas camadas que eram em regra as mais desfavorecidas da sociedade portuguesa---o incipiente proletariado urbano e a grande massa do proletariado rural de então---e era deles, em mais de um sentido, a expressão institucional mais imediata e espontânea.
Foi porque o Benfica era sociologicamente isso que o 'regime' tentou usá-lo para "chegar ao povo" onde lhe foi sendo, aliás (e o livro do Carlos Gomes testemunha e documenta essa crescente dificuldade, vivida, de resto, por dentro) cada vez mais difícil entrar... sozinho.
Vejamos algumas passagens do livro sobre esta matéria:
Carlos Gomes descreve e caracteriza assim o Barreiro do seu tempo (de uma forma que é também, de mais de uma maneira, uma descrição e uma caracterização do Portugal do salazarismo):
"Os seus habitantes eram em esmagadora maioria anti-regime, coisa que naquela época se pagava muito caro. Para os fascistas os barreirenses eram motivo de especial interesse sendo considerados como malucos, comunistas ou... presidiários.
[...]
A C.U.F. empregava milhares de barreirenses e tinha---pois não!---a sua própria polícia. Só aqueles que aceitavam denunciar tudo quanto viam e ouiviam e os seus quadros superiotres viviam desafogadamente. Os outros, tinham uma uma situação económica e social catastrófica. A C.U.F. fomentou ódio e criou comunistas.
Outras particularidades barreirenses eram a elevada taxa de tuberculose, a vila sempre cercada de militares duros e o nela ter nascido, paradoxalmente, um dos mais famosos chefes da PIDE.
Foi neste ambiente que fui crescendo e via como em mim aumentava o ódio pelos «senhores importantes» e pela sua triste e porca palhaçada. Ver como aquela gente boa e trabalhadora tinha de se dobrar em vénias quando passava algum «senhorito» era inaguentável. Pobre do trabalhador que não quisesse cumprimentar respeitosamente aqueles fantoches! Era trabalhador... desempregado" [op. cit. págs. 13-14].
Transcrevi este longo parágrafo para enquadrar o que se segue onde se começa especificamente a falar da tal imagem sociológica que é o tema básico desta 'entrada'.
Escreve Carlos Gomes:
"Tinha catorze anos quando começou a época dos desafios silenciosos. Época de enorme agitação social, a «malta» esperava os domingos com impaciência, sobretudo se vinha o Sporting. Era hora e meia desabafando das injustiças semanais" (op. cit. pág. 14, sublinhado meu).
E acrescenta:
"O ambiente chegou a ser tal que o regime decidiu que ninguém poderia gritar durante o decorrer dos desafios. Cada vez que havia um jogo, um destacamento da Guarda Republicana instalava-se dentro do estádio, enquadrando o rectângulo de jogo com as metralhadoras nas mãos e de frente para o público. Pobre de quem abrisse a boca. Jamais esquecerei aqueles desafios silenciosos... [Ibid. loc. cit.]"
E mais adiante ainda [pág. 21] revela:
"Entretanto tinha falecido o «meu» primeiro presidente e tinha sido eleito, por aclamação, um dos poderosos do regime---Góis Mota---que ostentava, entre outros, o cargo de Procurador-Geral da República. Também nas horas livres era um dos grandes da Legião Portuguesa, comandava aquela polícia paralela à PIDE, sendo conhecido nestes serviços como «O General» [sublinhado meu].
E mais adiante (ibid. pág. 43):
"[...] a equipa [do Sporting] ia só em segundo lugar e para os patrões sportinguistas (refiro-me aos dirigentes e nunca aos sócios) o facto de um clube popular como o Benfica ir à cabeça era insultuoso para tanto poderio burocrático" [sublinhado meu].
Descrevendo, por exemplo, a sede do Granada, clube para onde se transferiu do Sporting, (d)escreve Carlos Gomes (op.cit.pág. 50), evidenciando implicitamente o luxo a que andava à época associado o clube de Alvalade, reflexo precisamente da sua estreita ligação ao regime político da ditadura:
"Acostumado ao luxo do local sportinguista, com os seus restaurantes, sala de cinema, ginásio, barbearia, serviços médicos, etc. etc. [...]"
Era, porém, apesar do que tudo o que no livro o seu autor reporta sobre quanto aqui já reproduzi, era a Carlos Gomes difícil ser mais claro do que na página 55: "ainda que a PIDE já metesse o nariz em território espanhol [...] o Sporting e o Governo português (que era quase o mesmo) [...] (sublinhado meu)".
A ideia de uma estreita relação do Sporting com o poder é reforçada por uma série de citações avulsas onde ela, ainda que implícita, fica amplamente sugerida.
Por exemplo, na página 63:
"Os negócios corriam bem, quer na leitaria, quer no estúdio fotográfico. [...] Apenas a garagem andava mal, pois (olha por donde!) o proprietário do edifício era um vice-presidente do Sporting que, ao saber que eu tinha pedido à Câmara Municipal a autorização para colocar umas bombas de gasolina, opôs-se.
A Câmara acabou por me comunicar que as não podia instalar, porque entre a porta da garagem e a estrada não havia bastante espaço. Quando meu pai, comigo já ausente, trespassou a garagem, viu com assombro como em poucas semanas a Câmara tinha alargado milagrosamente o passeio e autorizava a instalação de duas belas bombas... [...]".
Este pequeno acervo de citações ajuda a perceber a estreita ligação das cúpulas sportinguistas da época e, obviamente, da própria instituição Sporting Clube de Portugal, com o poder da ditadura.
Ora, este aspecto é importante por, desde logo, duas razões: a primeira (que é de natureza pessoal e clubista) é que ele fornece um contributo documental significativo, relevante, para ajudar a reperspectivar o mito de que o Benfica era o 'clube do regime' mas, de uma perspectiva mais lata e, sobretudo, mais objectiva a sua relevância advém-lhe do facto de ajudar a enquadrar e, por conseguinte, a compreender melhor todo o processo de decadência do próprio Sporting, iniciada em '74 com a queda do fascismo.
Desta, falo com mais pormenor noutro lugar, enquadrando-a numa análise global do fenómeno desportivo em Portugal.
Aqui, ficou, sobretudo, um (curto embora) património documental e, com ele, ainda uma vez, a homenagem àquele que foi, dos que vi actuar, o mais louco mas também o mais genial dos garda-redes portugueses, com todos os seus escessos e loucura um gritante 'corpo estranho' num país e num tempo em que não apenas "toda a nudez" como no título célebre de Arnaldo Gabor, mas toda a loucura para não dizer já toda a "diferença" era (impiedosamente) "punida".
[Imagem extraída com vénia de cadernetasecromos.blogspot.com]