A leitura de uma obra já com alguns anos, daquelas [muitas!] que se guardam para ler "quando nos reformarmos"; uma obra colectiva, com data de Abril de 1977, intitulada "O Apodrecimento das Sociedades" [edição Livraria Bertrand, col. "Tempo Aberto"] forneceu-me o ensejo imediato para uma reflexão que há muito venho fazendo sem propriamente verbalizar sobre o que poderíamos, parafraseando um título famoso da extinta "Minotauro", designar por "a personalidade paranoica do nosso tempo".
O texto em concreto de que vou falar aqui, o primeiro, intitulado "A delação de massa ou a contra subversão" de Paul Virilio é todo ele um texto claramente marcado pela paranoia.
Não que muito do que diz sobre a vigilância dos cidadãos nos nossos dias, nas sociedades de democracia formal do Ocidente não seja pontualmente verdade; o que eu questiono é a leitura quase [ou mesmo?] "conspiracional", muito "orwelliana" de escola que o autor faz da realidade desse vigilância.
Que eu não questiono como tal repito: o que me parece particularmente perigoso neste tipo de análises mais ou menos "conspiratoriais" e mesmo tendencialmente "apocalípticas" da sociedade contemporânea é---muito à Orwell, precisamente---perder de vista a natureza altamente sofisticada e complexa, subtilíssima, dos mecanismos de condicionamento da opinião, nos nossos dias.
Aquilo que, na essência, distingue, com efeito, esses mecanismos daqueles que imediatamente os antecederam [ligados estes aos 'autoritarismos tópicos' dos anos '20 e '30 do século passado: o fascismo italiano ou japonês e o nazismo alemão---sobretudo este] é a fixação no seio da própria arquitectura política objectiva e, num certo sentido, sobretudo, subjectiva dos sistemas políticos da figura inteiramente ficcional da liberdade associada à escolha dos próprios modelos de gestão política das sociedades no seu todo.
Ou seja: aquilo que aconteceu quando se chegou historicamente à conclusão de que o projecto de "capitalismo total" não possuía, de facto, viabilidade social e política em si mesmo foi a transferência perversíssima---através da construção de uma falsíssima cultura astuciosamente assente no suposto reconhecimento primário do papel determinante do arbítrio individual na definição dos modelos de gestão política---do próprio ónus da política ou políticas encontradas para gerir o capitalismo do estrito âmbito da classe ou classes dominantes [como sucedeu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou até no Portugal de Salazar] para o conjunto da sociedade, responsabilizando-a pelas disfunções estruturais do sistema económico-político.
Bem gerida no plano cultu[r]al, a co-responsabilização institucional das classes dominadas na sua própria dominação resultou em pleno.
O grande inimigo da autonomia da Política relativamente a um conjunto de condicionantes estruturais muito poderosas de natureza especificamente económica e financeira nacional e multinacional, nas sociedades de hoje não é já qualquer tirano ou qualquer clique decisória organizada em torno de um tirano como Hitler ou Mussolini: o grande inimigo da autoniomia política interna das sociedades ocidentais é, sem dúvida, essa interiorização de uma falsíssima imagem ou noção implícita de liberdade que leva as sociedades no seu todo a imaginar que as coisas vão acontecendo de um certo modo porque elas sociedades, num dado momento em que podiam assim não ter querido, pelo contrário, assim quiseram e pior ainda que se elas continuarem a querer tudo mudará.
A eleição seguinte a uma desilusão tem, antes da escolha de um deterrminado partido oyu pessoa, essa função celebracional abstracta de reconfirmar o falso papel determinante da liberdade de opção que é vital para que o sistema de democracia aparente em que vivemos se conserve globalmente operativo.
É por isso que quaisquer interpretações dos diversos mecanismos de vigilância cidadã hoje que tenham pressupostos modos de funcionar social e políticamente que se esgotaram com o fim do nazi-fascismo e da II Guerra Mundial apenas podem confundior e fazer com que, no limite, deixemos de perceber aquela que é a verdadeira i/lógica das formas modernas de condicionamento e opressão da consciência individual.
Dito de outro modo ainda: se o verdadeiro inimigo está vhoje nas nossas cabeças e, especificamente nas nossas falsíssimas representações de natureza conceptual política é, de facto, dentro de nós e em nós que é preciso operar revolucionariamente e não em qualquer tenebrosa cidade subterrânea secreta de onde um Big Brother [ou mesmo meia-dúzia...] orwellianos vigiam 24 horas sobre 24 cada um dos nossos passos e/ou gestos.
Aqui há tempos, um amigo meu, dramaturgo, escreveu uma peça sobre António José da Silva onde procurava, com raro talento e subtileza, identificar o funcionamento da Inquisição em Portugal com o da sinistra PIDE salazarista.
Intervindo, num debate público sobre a peça, tive ocasião de referir: "agora só falta, para que possamos ter uma re/leitura dramática completa da nossa História política recente, escreveres uma outra sobre os métodos de condicionamento subjectivo; de 'mind control' ou de 'mind shaping' sistémico; de manipulação cultu[r]al intensiva e extensiva que substituiram já a coação formal ou exógena.
Sem isso, os espectadores e leitores mais jovens correm o risco de imaginar terem-se enganado de país ou, pelo menos, de Tempo e de História quando virem e/ou lerem o teu excelente trabalho dramático e---mais grave, ainda!---de continuarem completamente desprecavidos relativamente àquilo que são as ameaças hoje!"
A recolha de informação hoje não tem como propósito a intervenção punitiva imediata de uma clique opressora bem identificada e definida---um governo e uma ou várias polícias políticas fortemente armadas e ocupando um conjunto de espaços perfeitamentre localizáveis e identificáveis; pelo contrário, visa, sim, reforçar e consolidar os subtis [de facto, a um primeiro olhar, in-visíveis!] mecanismos de potenciação abstracta da sugestão primária difusa de liberdade sobre a qual assenta, em última instância, na realidade, todo o modelo de democracia aparente que falsamente designamos hoje simplesmente por 'democracia' sem mais.
Tenho para mim que uma das direcções erradas seguidas pelas análises teóricas e consequente labor de esclarecimento por parte dos partidos de esquerda imediatamente a seguir ao 25 de Abril, coincidiu nesta simplificação e neste perigosíssimo "erro de paralax hermenêutico" de imaginar que a História apenas poderia repetir-se ou duplicar-se mecanicamente, algo que, tendo em conta as lições históricas e políticas internacionais do fim dos fascismos era, na realidade, para dizer o mínimo, de todo improvável, como veio, de resto, a confirmar-se com a assimilação por parte dos partidos "sistémicos", especialmente o "pê-ésse" que venceu as primeiras eleições após 1974, das lições da "democracia funcional" adoptada pelo capitalismo multinacional, sobretudo, europeu para gerir a sua própria sobrevivência material e objectiva.
Há, todavia, dois aspectos no texto de Virilius que me parecem extremamente interessantes e dignos de particular consideração: um, quando o autor refere o modo como a "democratização" objectual dos meios de comunicação acabaram perversamente por conduzir, exactamente ao contrário, não apenas à banalização total das formas de arte e, de um modo geral, de cultura como---o queb é mais grave, ainda---ao aprisionamento da própria inteligência e ao isolamento desta [ao seu banimento efectivo do universo da comunicação entre as pessoas e entre estas e a própria cultura ou a arte] numa espécie de utilização aberrantemente paradoxal e perversa da liberdade contra si própria e contra tudo quanto a liberdade efectivamente instituida nas sociedades humanas pode proporcionar de bom na valorização dos indivíduos e da respectiva consciência de si e delas próprias, sociedades.
Virilius fala mesmo, a propósito, em utilização da liberdade para delatar.
Ora, não querendo, como comecei por dizer, ser tão dramático eu diria que, a meu ver, há óbvia utilização/manipulação da liberdade, mas de um modo infinitamente mais subtil, para levar os indivíduos e as sociedades a desprevenidamente trairem, através, desde logo, do entretenimento, gostos, propensões, pulsões cultu[r]ais inconscientes, pré-juízos não completamente formulados mas nem por isso menos importantes, etc. todos eles mais ou menos inconscientes, repito, no sentido de serem, esses sim e então sim, "estrategicamente" usados a posteriori para condicionar subtilmente a [formulação de] "opinião" e re/construir esta última ponto por ponto conforme os interesses específicos e primários do próprio sistema.
Não se trata, pois, aqui de "delatar" no sentido pidesco ou "gestapista/ovrista" do termo: trata-se, sim, de algo incomensuravelmente mais complexo---e perverso: trata-se de recondicionar mais ou menos minuciosamente, tão minuciosamente quanto possível, a vontade dos indivíduos e das sociedades, usando os objectos que ela, num dado momento, contém e, muito em particular, o modo como ela os apreendeu e fez seus ou integrou em si---o que, sendo, de algum modo, a mesma coisa, é, de outro ponto de vista, afinal, a meu ver, num certo sentido, pelo menos, muito diferente.
Também a liberdade do próprio corpo como tal, recorda Virilius, sofre uma em tudo idêntica deformação: liberto ele mesmo de pressões de um tipo directa e imediatamente [auto] censório [recordemos a condição des/estruturalmente ancilar e degradantemente "utilitária" da Mulher nos regimes fascistas] acaba, de igual modo, o corpo, da Mulher como do Homem, refém de utilizações que não são menos determinantes e que não são, sobretudo, menos perversas.
Basta ver o modo como a Beleza é violentamente formatada, a sexualidade firmemente "conduzida" e mantida [algo de impensavelmente repressor e opressor] "pudicamente" fora das escolas e aberrantemente convertido em "matéria moral" e/ou "de consciência" [não os usos da sexualidade: ela própria, como tal]"
nem