Mais adiante, debruço-me sobre o "último Paulo Rocha" "Vanitas"---do qual alguém, aqui na Net, dizia que era um filme que "valia a pena" ou coisa que o valha.
E eu até acho que sim: vale a pena, quanto mais não seja, para se ter a noção exacta do gigantesco equívoco que é aquilo a que muitos se obstinam em chamar, ainda hoje, o "cinema português".
Sobre o filme propriamente dito, já falei.
Queria, agora, falar sobre o próprio Paulo Rocha.
Rocha foi o homem da "nova... minúscula ondulação" que foi a, de resto muito variada, muito polimórfica, muito diversa, "nouvelle vague" francesa vista de Portugal---"minúscula ondulação" essa que, na realidade, ainda conseguiu produzir algumas coisas diferentemente interessantes, é verdade, mas sempre, de um modo ou de outro, mais ou menos promissoras e [quanto mais não fosse, por isso] globalmente estimulantes, para além desses surpreeendentes "Verdes Anos" que o realizador assinou em '62.
Houve uns quantos Geadas [confusos, "trucidados" pela censura]; uns tantos Ceitis, um ou dois excelentes Fernandos Lopes, um ou dois Césares Monteiros sempre sugestivos e consideráveis como são invariavelmente os Césares Monteiros, os pessoalíssimos e muito "straubianos" Campos, um ou outro [dificilmente qualificável e topicamente "não-encaixável"] Oliveira, pelo meio; enfim, fizeram-se coisas---tentou-se, numa palavra.
Era um cinema "popular"?
Não era, em nenhum dos sentidos possíveis do termo----e a esquerda de então bem se fartou de o 'denunciar'.
Era um cinema---muito dele, pelo menos---"de Avenida de Roma" [que era a zona física e cultu(r)al de Lisboa que ficava 'mais próxima de Paris' e, em geral ", desse grande e mítico "país mental", no fundo, completamente imaginário; desse ficcional "pays où l'on arrive jammais" que era o "Lá Fora" para a esmagadora maioria dos portugueses de então].
Era---e refiro-me agora expressamente a "Verdes Anos" [Paulo Rocha ainda tentou em '66 "Mudar de Vida" com um efeito bem menos impactante no imaginário cinematográfico e, em termos mais latos, cultu[r]al português] um cinema 'da pequena e média burguesia urbana com frequência universitária' [eu, pessoalmente, recordo-me de tê-lo visto em Letras, exibido num dos anfiteatros não consigo lembrar-me por iniciativa de quem ou de quê]; pequena burguesia urbana essa que era possivelmente, com todas a limitações de uma inteligência da realidade consistentemente velada pela distância material e crítica que nos separava de... "Lá Fora", o único sector social e sociológico capaz de traduzir mais ou menos organizadamente numa visão [ou, pelo menos, num conjunto de impressões ou "moods"] mais ou menos políticos todos eles o que, no filme, eram basicamente imagens e sugestões visuais e sonoras [a música de Carlos Paredes entoando uma espécie de requiem ou de melancólica, soluçante, labiríntica, circular, 'meditação' ou 'huit clos melódico' feito de uma cadeia oude uma teoria de sonoridades---de sonorizações---agudas, sacudidas, plangentes, constituindo, em geral, um discurso harmónico feito de rupturas secas, rectilíneas, inquietas, torturadas, zangadas---"angry", como em "angry young men"...---desesperadas].
Do filme [que nunca mais revi, aliás, e até por isso se reveste aqui de algum---paradoxal, embora---possível interesse e de alguma---efectiva e, num certo sentido, ainda mais paradoxal---propriedade, falar dele---porque interessa aqui, sobretudo, destacar aquilo que nele houve de contextualmente relevante e efectivo, isto é, o que nele existiu de imediatamente impactante para a geração à qual se dirigiu e que é aquela a que eu próprio pertenço]; do filme, dizia, ficou-me a lancinante sequência final do "zoom out" sobre a Avenida coalhada de carros parados---uma imagem que guardei comigo desde então como representação icónica de um país estagnado, imóvel, completamente exausto; um país que a espaços, ainda achava energias para interrogar-se, como nos Kingsley Amis, os Colin McInness, as Doris Lessings, os John Osbornes e/ou os Kenneth Tynan ou ainda os Lindsay Anderson: os "angry young people" relativamente à realidade britânica de onde eram originários: "where do we go from here?"
"Because we had to go smewhere: everybody was going somewhere. We simply had to move with the crowd".
Havia Joan Baez, havia Dylan.
Havia filmes que "falavam" como oráculos e cujas mensagens chegavam nas masis diversas formas: os filmes "de cowboys" trocavam as voltas à censura ["Soldier Blue" de Ralph Nelson foi um filme "sobre o Vietname" que "escapou" completamente à censura]; "Bonnie & Clyde" de Arthur Penn, um filme que se via com um nó na garganta, era uma coisa romanticamente subversiva cuja simbologia mais uma vez, deu a volta ao sistema---e por aí fora.
"So, you see, we had to go somewhere!"
Ora, como geração, encaixados entre um país morto e uma guerra sem saída onde tudo, em Portugal "ia dar", só conseguíamos pensar em "somewhere" a partir de uma imagem fixa, poderosíssima que nos marcasse reconhecivelmente o início da "viagem" e esse---para mim, pelo menos---estava todo na poderosíssima referida sequêncial final do "zoom out" de "Verdes Anos": o país simbolicamente coagulado, completamente imóvel a já não ir com o 'regime' ou fosse com quem fosse; a já 'não ir', pura e simplesmente.
O país figuradamente "cinzento", a "preto-e-branco", completamente exausto, totalmente esgotado que "encosta", confessadamente incapaz de prosseguir [se]---esse Portugal das sopeirinhas e dos rapazes da província que desaguam, um dia, em Lisboa, sem rumo certo---um país que se imola na forma de um crime cometido contra si mesmo [o rapaz do campo transplantado à toa para a cidade que mata esse outro 'símbolo' complementador seu que é a sopeirinha] e que é, por isso, incomparavelmente mais um suicídio do que propriamente um crime [ritual? O ritmo da montagem da película, tal como o recordo, possui esse tom de hierático cerimonial de suicídio oriental que se encaixa às mil maravilhas no propósito de 'discorrer visualmente sobre a agonia e a morte totais' que é "Verdes Anos"].
O próprio carácter amargamente "marialva" do crime passional assim como a iluminada guitarra de Paredes [o fado e o Fado...] falam com uma lucidez incrivelmente incisiva e quase obsessiva [há, de facto, reconhecivelmente, um "ring" de obsessão e quase loucura na melodia que fere, que dilacera] sobre essa portugalidade atávica e incapaz já de mover-se ou de mover o que quer que seja, vista horrorizadamente "de fora"; o próprio carácter específico da música, dizia, potencia o efeito subjectivamente---o efeito politicamente!---arrasador do filme e fornece um contributo verdadeiramente essencial para "significá-lo" ulteriormente e consagrá-lo de vez, no imaginário---senão de um país, de uma geração, seguramente.
Uma das grandes---possivelmente, a maior!---'tragédia mental' nacional foi a de o país ter sido, às vezes por si próprio, decapitado em termos de elites mentais e/ou cultu[r]ais.
Portugal foi um país que nunca encontrou condições objectivas e subjectivas para gerar um proletariado que "mexesse" efectivamente na sua História e obrigasse a Política, nele e para ele, a "mexer" também.
Que levasse as classes a acantonarem-se e a gerarem formas específicas, próprias, de inteligência política e até civilizacional da realidade de onde, por sua vez, emergisse verdadeiro movimento histórico e político.
Por isso, também, nunca gerou verdadeiras elites e sólidas, consistentes, orgânicas vanguardas: eu costumo dizer que é, como no futebol um país... sem extremos que são, no fundo, aquilo que revitaliza ou que "recicla" continuamente a História e lhe confere o "movimento significado" de que a História---todas as Histórias!---em última mas também verdadeira análise, se alimentam sempre.
Portugal gerou [quando gerou] alguns eremitas e "anacoretas da consciência", "solitários da inteligência" que nunca lograram chegar às "massas"---nem sequer para serem, por elas, repelidos.
Ignorados, sim, foram-no---e daí a tragédia mental portuguesa, o pensar tanatópico de que falo noutro lado e que incorpora [e sublima!] esse hábito de "adquirir a História já feita", de mitificá-la e "sacralizá-la" como algo providencial em que é pecado 'tocar' para criticar quanto mais para mudar. Tenho para mim que a consciência dessa espécie de "fractura ôntica" persistente [persistente a ponto de se ter tornado 'tópica'] na sociedade portuguesa, se, por um lado, ajuda a explicar o olhar desesperado que o país lança sobre si próprio em coisas [escassíssimas, de resto!] como "os Verdes Anos", de Paulo Rocha, explica também por que razão, perdido que foi o estímulo específico oferecido por uma ditadura que agonizava e apodrecia sem remédio, nunca mais o país gerou uma consciência estável de si com a mesma lucidez e, mesmo apenas indirecta e muito relativa, agudeza.
Portugal não sabe pensar-se.
Perdeu não apenas o hábito de fazê-lo como a própria percepção abstracta da necessidade verdadeiramente vital, orgânica, de fazê-lo.
Não sabe, como país, para que pensam e se pensam as sociedades.
Haverá, no caso de um homem que produziu "Verdes Anos" melhor comprovação desta asserção do que esse inútil integral, absoluto vazio cultural, político, etc. que é "Vanitas"?...
4 comentários:
É verdade que falta no cinema português uma indústria, uma escola que dê ao cinema nacional um traço comum,uma identidade própria (julgo eu que sou apenas um mero curioso)que isso falta acima de tudo ao nível da produção nacional.Só que encontro um problema na relação entre as massas (os espectadores que têem de ser respeitados) e a "inteligência" que produz as obras: quantos debates ou documentários sobre o futuro do cinema português foram feitos na televisão pública nos últimos anos? Não deveriam ser os realizadores a assumir o fracasso do cinema nacional que não rende e deixarem de ter uma atitude que eu considero sobranceira e menosprezadora em relação ao espectador? Quem tem a responsabilidade de vender o produto vive barricado no seu pensamento,não discute,não partilha, o cinema português parece-me um conjunto de pequenas quintas
cada uma com a sua identidade, com um núcleo de espectadores fiéis que pouco ou nada varia de filme para filme. Fechados em si mesmos e no seu modo de entender o cinema,os profissionais do cinema insistem em dar fugas para a frente.
De facto o país não se pensa em nehnum aspecto, depois do Portugal amordaçado vive-se na era do Portugal anestesiado.
De como um filme que vi já lá vai tanto tempo, e de que recordo, em especial, a música de Paredes, dá origem a um olhar tão profundo sobre o "cinema português".
A mim ficaram as saudades dos Verdes Anos ...
Gonçalo Eusébio:
...do "Portugal [passe a vulgaridade da expressão!] "amerdaçado"!
É verdade mas o problema é de fundo, acho eu.
Há um fosso enorme entre as elites [?] e o conjunto da população.
Sempre houve e continua a haver.
O público já não acredita, os realizadores acham-se o máximo e pensam que é o público que é 'burro' [e com algum fundamento, aliás: se não é burro é ou está mal-educado] e por aí fora...
A "estética" [e o vício!] telenovela contaminaram os hábitos de visionamento [e até contaminaram quando não simplesmente... minaram o ou os de leitura!] e a "volta" a dar a isto não será seguramente dada com filmes como o "Vanitas" do Paulo Rocha [que era, de facto, mais do que um mau filme, um equívoco total] nem com ministros e ministérios da cultura "de empréstimo" e "de tostão" que essa "volta" é dada.
Sê-lo-á [ou não...] pela formação dos cidadãos e dos públicos e pelas exigência que daí poderá advir.
Não há outra hipótese: a inteligência não se decreta, a cultura tão-pouco!
Muita gente fala nos anos '60 et al.
Os anos '60 para o único sectyor da população que pensava [e que não "pensava para trás", politicamente para trás...]---a pequena burguesia urbana universitária---vivia atolada em desesperos de todo o género ["Verdes Anos" "fala" disso, também] exactamente porque peercebeu ou intuíu que a tragédia nacional era [ou, na melhior das hipóteses, estava..] literalmente insolúvel e que ela, pequena burguesia pensante, esta, por seu turno, completamente isolada e impotente.
Agora, aquilo que muitos pensaram e acreditraram foi que, instasurada a democracia formal as coisas mudariam de raiz, pela base.
E foi o que se viu...
É o que se VÊ!...
Ana:
É horrível pensar como, sob muitos aspectos, o Cinema português precisa ainda hoje de filmes da década de '60 [e, num certo sentido, até anteriores...] para ter "alguma coisa" que alegar e que invocar... "em sua defesa"...
Tamb+em aaqui, como diz 'o outro', o passado dá um futuro péssimo...
Infelizmente, as últimas linhas da minha resposta ao Gonçalo Eusébio sairam uma trapalhada, cheia de gralhas que tornam essa resposta de difícil compreensão.
Assim, corrijo e essas últimas linhas, devidamente corrigidas as gralhas, são:
[...]
"também] exactamente porque percebeu---ou intuíu!---que a tragédia nacional era [ou, na melhor das hipóteses, estava!] completamente insolúvel e que ela, pequena burguesia pensante, ESTAVA, por seu turno, completamente isolada e impotente.
Agora, aquilo que muitos pensaram e acreditaram foi que, instaurada a democracia formal, as coisas mudariam de raiz, pela base.
E foi o que viu...
É o que se VÊ..."
Enviar um comentário