segunda-feira, 15 de março de 2010

"Jean Ferrat, 1930-2010"


Petrtenço, como há pouco ainda dizia, a uma geração que, mais do que qualquer outra coisa, perdeu heróis.

Todas as gerações os terão tido---e perdido---mas a minha terá sido também aquela que mais perdeu a ponto de hoje ser possível admitir que os tenho perdido... todos, irremediavelmente tragados, "en fin de partie", como diria Beckett, pelo 'sistema'.

Muitos vieram de Maio de 68 directamente para o poder e aí se instalaram [aí se acomodaram!]de forma aparentemente definitiva com grande vantagem para si mas desgraçadamente pouca ou nenhuma para os ideiais que pouco antes defendiam ou diziam defender: há um deputado "centrista" [seja lá o que for que isso signifique mas enfim...] outro que apresenta uma cor que jura a pés juntos ser esverdeada mas a quem o nuclear não incomoda e, sobretudo, não repele; há uma senhora cujo rosto foi um ícone do próprio Maio [vimo-la andar em ombros, brandindo uma bandeira vermelha] e que hoje se deixa conformadamente fotografar pela 'presse chic' do "Paris Match", essa longevíssima "Caras" francesa e por aí fora...

Poderia---poderá---ser que algum deles regresse, um dia, desiludido da experiência sempre, de um modo outro, pelas piores razões, marcante do poder ao seio dos heróis-referência dos desalinhados e 'vocacionalmente insubmissos'---dos sempre tenaz e orgulhosamente "descentrais"---como eu próprio, mais do que qualquer outra coisa, ainda hoje, permeneço?

Poderia---poderá---mas, como diz o anúncio famoso, não seria a mesma coisa...

Durante muito tempo tivemos Sartre, a Beauvoir, durante algum tempo, o Malraux e até certo ponto o Aragon [que o Ferrat cantou, aliás, num disco célebre] o Ferré, o "anarco-mor"; em Portugal, tivemos o Zeca e temos o Zé Mário, que, ao contrário de outros, não se rendeu.

Cuja obra felizmente, não se... "vendeu", como diz o Samuel, num trocadilho particularmente feliz.

E havia, até ontem ou anteontem, o Jean Ferrat, esse obstinado e romântico "Asterix ao contrário".

"Ao contrário" porque o Asterix era, no fundo, "demasiado direita francesa" para o meu gosto, sempre [ao menos, potencialmente] trauliteiro e vulgar e o Ferrat, para além da bigodaça e do sorriso 'malin' que a assemelhava exteriormente ao herói de Goscinny e Uderzo, era aquele tipo que em vez de cumplicidades mais ou menos fáceis, piscadelas de olho ao lado mais "avichysado" [ou... "avichysável" de uma França que, de um modo ou de outro, anda sempre "às voltas com" esse seu lado mais pétainista e mais nocturno] e fidelidades oficiais [mesmo a clichés---ou sobretudo a clichés...] tinha a fidelidade a si próprio, à sua obstinada e sempre esclarecida independência mental, intelectual e artística, à sua inegociável lucidez---aos valores políticos e de cidadania que exprimia na música que fazia [e sempre fez num país, queiramo-lo ou não, maioritariamente "de Sheilas" e "de Claudes François"] e que são também aqueles que mais custam a manter porque há sempre um momento ou outro na vida em que defendê-los é alguma coisa que se tem de fazer na mais absoluta solidão, contra quase tudo e quase todos.

Pois, a partir de ontem já nem o Ferrat temos e, com ele, perdemos, de modo irremediável, mais um herói.

... E agora ou inventamos outro ou---e isso, sim, isso é que seria o ideal!---tomamos nós mesmos em mãos o testemunho e convertemo-nos nós próprios, senão em heróis, ao menos em gente cívica e politicamente digna e capaz de não envergonhar a memória dos heróis que fomos perdendo e, sobretudo, não desmerecer dela no que ela teve de mais revolucionariamente vivo, mais subversivamente interventor e actuante e [idealmente, ao menos!] de mais estruturalmente libertador e, em mais de um sentido, intrinsecamente redentor da própria História como tal.


Anexo

QUE SERAIT-JE SANS TOI?

Que serais-je sans toi
Que serais-je sans toi qui vins à ma rencontre
Que serais-je sans toi qu'un cœur au bois dormant
Que cette heure arrêtée au cadran de la montre
Que serais-je sans toi que ce balbutiement


J'ai tout appris de toi sur les choses humaines
Et j'ai vu désormais le monde à ta façon
J'ai tout appris de toi comme on boit aux fontaines
Comme on lit dans le ciel les étoiles lointaines
Comme au passant qui chante on reprend sa chanson
J'ai tout appris de toi jusqu'au sens du frisson


Que serais-je sans toi qui vins à ma rencontre
Que serais-je sans toi qu'un cœur au bois dormant
Que cette heure arrêtée au cadran de la montre
Que serais-je sans toi que ce balbutiement


J'ai tout appris de toi pour ce qui me concerne
Qu'il fait jour à midi qu'un ciel peut être bleu
Que le bonheur n'est pas un quinquet de taverne
Tu m'as pris par la main dans cet enfer moderne
Où l'homme ne sait plus ce que c'est qu'être deux
Tu m'as pris par la main comme un amant heureux


Que serais-je sans toi qui vins à ma rencontre
Que serais-je sans toi qu'un cœur au bois dormant
Que cette heure arrêtée au cadran de la montre
Que serais-je sans toi que ce balbutiement


Qui parle de bonheur a souvent les yeux tristes
N'est-ce pas un sanglot de la déconvenue
Une corde brisée aux doigts du guitariste
Et pourtant je vous dis que le bonheur existe
Ailleurs que dans le rêve ailleurs que dans les nues
Terre terre voici ses rades inconnues


Que serais-je sans toi qui vins à ma rencontre
Que serais-je sans toi qu'un cœur au bois dormant
Que cette heure arrêtée au cadran de la montre
Que serais-je sans toi que ce balbutiement


Louis Aragon [musicado e cantado por Ferrat]

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