segunda-feira, 15 de março de 2010

"Gil Vicente na Televisão"


Hoje, de tarde... teatro: Gil Vicente numa encenação muito antiga [1968] com Mário Pereira, Fernanda Montemor e Lurdes Norberto, entre outros.

Dado tratar-se de uma encenação temporalmente... "arqueológica" [com cenografia de Lagoa Henriques, já agora] poderia ser-se levado a supor que a linguagem utilizada tivesse "envelhecido" demasiadamente, dificultando de modo talvez irrecuperável a percepção, e especialmente a fruição do belíssimo texto vicentino.

Nada mais longe da verdade, porém!

De facto, é precisamente o inverso que ocorre.

Um estúpido novo-riquismo pseudo-moderno tomou, de então para cá, demonstravelmente, conta da sintaxe e, de um modo mais amplo, da gramática televisivas e mesmo espectaculares, em geral.
Uma das razões que, com efeito, me tornaram um programa ainda recente de grande sucesso popular definitivamente intragável---falo de um famoso "Dança Comigo", transmitido ainda não há muito na RTP1---foi precisamente o trabalho verdadeiramente ignóbil, miserável, de câmara---uma câmara que, manejada com um inimaginável analfabetismo estético e até tecnológico, devia há muito estar [juntamente com quem ali, de uma forma tão afrontosamente inábil a manipulou] presa e definitivamente impossibilitada, de uma vez por todas, de repetir proezas como aquelas que ali, semanas a fio, impunemente, levou a cabo.

Uma câmara completa---obstinadamente!---impermeável às regras mais primárias e mais elementares não só já da linguagem televisiva como até do mero bom senso e do mais simples bom gosto---uma câmara para quem filmar alguém que, bem ou mal, tenta dançar é desenhar no ar, completamente alheia ao espírito e à essência da própria dança, estupidamente arrogante e megalómana, as mais improváveis e delirantes---as mais ébrias!---piruetas e esgares; uma câmara para a qual pés, mãos, cabeças, troncos etc. dos bailarinos são algo que, na sua in-essência, não se distingue--- algo de difuso, homogéneo, amorfo, meramente pretextual e sempre indiferente---indo tudo no limite "dar ao mesmo" porque, afinal, o que é manifestamente preciso é provar-se que se é modernaço e "genial" e a dança, boa ou má, repito, um mero pretexto para a "burrice dourada" dos analfabetos "de carreira" florir em pleno; uma câmara frenética na sua cega boçalidade e absurda epilepsia que foi sempre, ao longo das semanas, espalhando alarvemente no espaço indefeso de um écrã de televisão pedaços avulsos de corpos e fragmentos mutilados de movimentos, num arraial de crua insensibilidade e do mais genuíno mau-gosto, num num recorrente anti-discurso televisivo verdadeiramente de bradar aos céus.

Rever hoje, a quase meio século de distância, o modo sóbrio, inteligentemente humilde, esclarecidamente discreto como o realizador da versão televisiva deste clássico vicentino---Félix Ferreira, de seu nome---abordou a o texto e no-lo ofereceu faz muito seriamente pensar no modo ou nos modos como hoje se concebe o "progresso"---e não apenas em matéria de linguagem televisiva.

O progresso visto como algo completamente dissociável---e des/estruturalmente dissociado---do conteúdo do real e/ou especificamente do significado específico ou possível das coisas; o "progresso" como exercício gratuito de boçal indiferença e frequentemente mesmo im/pura arrogância relativamente à realidade no seu todo, seja ela estética ou ecológica, mediática ou política.

Quantas vezes revendo velhos programas de televisão reapresentados por esta mesma RTP Memória dou comigo pensando naquela genial frase/ideia que dizia que 'o passado dá sempre, de um modo ou de outro, um péssimo e degradado---para não dizer: degradante---futuro'!

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