domingo, 14 de março de 2010

"«Forty Guns»/«Quarenta Cavaleiros» de Samuel Fuller" [Por rever]


Quando ontem a RTP mutilou [mutilou mais do que exibiu o que, no caso vertente, assume foros de autêntica selvajaria e profanação!] "Forty Guns", de Samuel Fuller [1957] muito mais do que, por exemplo, "Johnnie Guitar" de Ray, o filme que mais vezes me acudiu ao espírito, infelizmente sempre pela negativa, foi "Vanitas" de Paulo Rocha, o filme português recentemente ainda passado na "Dois", numa sessão dupla conjunta com "O Espelho Mágico" de Oliveira.

Como disse, infelizmente, sempre pela negativa.

A base témica dos filmes é a mesma: o crepúsculo de uma era.

No filme de Rocha de que crepúsculo estamos concretamente a falar é algo mais difícil de definir---e talvez que o crepúsculo de que ali mais manifesta e mais abundantemente se "fala" seja o do próprio Rocha e/ou do cinema português como expressão culta de uma sociedade e de uma consciência esclarecida e esteticamente consistente dela.

No caso do filme de Fuller, um dos grandes "westerns"---não! Um dos grandes filmes americanos alguma vez realizados!---o crespúsculo perante o qual nós e o filme nos achamos é o da fase da expansão e da "conquista", o da fase "fordiana" da epopeia americana tão bem expressa no "western".

O grande mérito de Fuller é, do meu ponto de vista, o de ter não apenas uma linguagem muito pessoalizada para transmitir essa mensagem abstracta de decadência e de fim de História como, de igual modo, o de ter uma visão igualmente pessoal que ultrapassa largamente o discurso mais ou menos teórico e mais ou menos objectivo ou objectivado para radicar ou ancorar diferentemente toda a abordagem que da ideia em causa é feita nas personagens---nas pessoas, como tal.

Numa palavra: interiorizando, humanizando mas, também, complexificando profundamente a abordagem narrativa da matéria em questão.

Daí o uso esclarecidíssimo do preto-e-branco, numa espécie de subtil metaforização imediatamente idiomática da ausência de opções e, por conseguinte, da trágica fatalidade [muito inteligentemente, alguém chamou a atenção do espectador para o estatuto coral do bardo que canta duas belíssimas canções, duas baladas, sobre Jessica Drummond, a personagem titânica de Barbara Stanwick] do fechamento total da História sobre as figuras que, no écrã como na vida de que o écrã é eco, evolucionam numa espécie de labirinto ou até de círculo fechado---a 'ratoeira do real' onde parecem todos, de um modo ou de outro, apanhados.

Quando se compara este "Forty Guns" com, por exemplo, "Ride the High Country" outro "western" crepuscular, de Peckinpah este, percebe-se perfeitamente como aqui opera esta angulação precisa---este ponto de vista particular pelo qual é narrativamente 'apanhada' a ideia básica e/ou condutora de "fim".

Trata-se, com efeito de muito mais do que discorrer sobre o declínio por factos, fazê-lo por impressões e sentimentos das pessoas---por sugestões visuais a elas subtilissimamente reportadas--- fazendo com que, em última instância, muito mais do que acerca do fim, o filme seja acerca do modo como o fim é percebdo e sentido pelas pessoas acerca das quais o filme realmente, mais do que qualquer outra coisa, é.

Enquanto construtor de um objecto fílmico, Fuller é, de facto, extremamente inventivo, criativo e, por isso, invariavelmente interessante.

Não por acaso, há quem a propósito dele evoque alguns aspectos de Godard, por exemplo, ou esse torrencial criador de óperas que foi Leone.

Falando especificamente da linguagem cinematográfica em "Forty Guns", um crítico, Tony Williams, releva o modo como "à Godard" Fuller desdobra e descentra numa 'estudada torrencialidade' ou intencional simultaneização subtil da acção no écrã.

Ora, eu tenho para mim que há, nessa renúncia subtilíssima a fechar a acção num único ponto, o propósito de integrar aquela sugestão témica básica da inexpugnabilidade última do real, ou da impossibilidade dos indivíduos em épocas de decadência ou de crepúsculo em submeterem ou docilizarem, efectivamente o cursdo da realidade, escapando-lhes, ao invés, os recursos para controlarem a respectiva mecânica ou o respectivo funcionamento.

Há, pois, no modo como Fuller utiliza o motivo da policentralidade ou mesmo subtil descentralicidade da acção no écrã, o propósito de 'dizer alguma coisa' muito específica e muito determinada sobre a capacidade humana, pessoal e até mesmo, no limite, colectiva, para intervir na História no sentido de condicioná-la mas, sobretudo de significá-la.

Também, o motivo dos cavaleiros me parece um achado verdadeiramente genial com a sugestão fantástica da espectralidade [eu diria: quasi-bergmaniana ou---por que não?----"wim wenderiana" [1]---é outra sugestão metalinguística possivelmente europeia ou europeizante no filme de Fuller] e de absurdo no exacto sentido em que aqueles [aliás belíssimos!] espectros quase alados passam---ou erram?---aparentemente sem destino pelo écrã, "haunting it" como almas incapazes de reencontrar o seu lugar na acção e, por conseguinte, metaforicamente na própria História.

Ora, é precisamente nesta aptidão pessoalíssima para colar sempre sigtnificadamente a "arquitectura visual" do filme ao sentido que se prertende que ele tenha que falta [eu diria: de forma verdadeiramente confrangedora] a Paulo Rocha quando pretende, no fundo, dizer a mesma coisa que Fuller.

É, dito de outro modo, a velha questão do "orgânico" e do "in-orgânico" no cinema de que falava quando, aindas recentemente, aqui abordei "Vanitas" de Rocha: a velha questão da mais do que provável falta de uma disciplina escolar de "Composição" ou mesmo "Orquestração" no ensino do Cinema em Portugal onde, com raríssimas excepções, parece faltar essa perspectiva integrante global de que o filme de Fuller é um soberbo exemplo concreto.

O uso do "coro" na figura e, sobretudo, na voz de 'Jidge Carroll'/Barney Cashman evoca e mais uma vez, de forma subtil, integra no filme, como disse, a sugestão de tragédia grega---'Jidge' é o coro mas é também o bardo errante que fornece a dimensão mitificadora específica que é apanágio quase invariável dos heróis mortos, daqueles que já começaram a não estar "deste lado da História", como é claramente o caso de Griff e Jessica que, de resto, renuncia aberta, explícita e assumidamente, no fim, a esse seu lado mais titânico e mítico; mais ligado a um tempo e a um modo específico de ocupar a História e vivê-la para ser apenas a pessoa, o indivíduo que [outro momento subtilíssimo do filme] vai gradualmente sendo reduzida na dimensão e se perde progressivamente na distância, desaparecendo figuradamente do filme e da realidade nas sequências finais do filme.

Há, no entanto, uma ambiguidade [outro aspecto da complexificação deliberada que Fuller introduz no filme] entre o mal e o desejo: a hybris e a heroicidade, o Tempo e a circunstância---uma espécie de intencional dualidade ou dualização da perspectiva narrativa que potencia, em última instância, aquela sugestão de trágico que o filme contém.

Não esqueçamos que Jessica é uma mulher poderosa mas também manipuladora e, num certo sentido muito preciso, autoritariamente opressora e que 'Griff' é ou foi um pistoleiro.

A verdade é que nem um nem outro nos são no limite apresentados como figuras negativas, como vilões; de facto, eles são o próprio tempo e a própria circunstância, a seu modo necessária, que o filme 'apanha' já em pleno declínio, em plena crespúsculo.

Aquilo que os torna admiráveis é a consciência que ambos possuem da sua situação um termo muito... existencialista] e a possibilidade, ela própria muito existencialista, de fazerem opções e, por esse motivo, sairem com reconhecível dignidade da própria História.

Um grande "western" mas, sobretudo, um grande filme que merecia melhor sorte do que ser "cortado às fatias" e exibido apenas parcialmente por uma RTP que de cultura percebe, de facto, muito pouco.



[1] Wenders, como é sabido, ofereceu a Fuller um pequeno papel-tributo no seu belíssimo "Der Stand der Dinge", "O Estado das Coisas" de 1982.

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