segunda-feira, 1 de março de 2010

"Aurora, meditação..."


Há felicidades e belezas a que, por serem definitivas e ao que tudo indica, absolutas, nunca se deve regressar, por natural respeito humano à própria perfeição, acho eu.

Eu, pessoalmente, revejo-me de um modo muito particular e emocionalmente muito intenso, em dois contos de que ignoro prpositadamente hoje os títulos e, de igual modo, por opção, inúmeros aspectos do próprio conteúdo incidental.

Um, é de William Samson e fala, se bem me lembro, de um "chance meeeting" ocorrido, em Inglaterra, suponho, num lugar público qualquer: um café, um bar...

É suposto ser um conto "de terror", daqueles que as pessoas, quando apanham alguém a lê-los franzem o sobrolho, com despeito e típico ar de superioridade e condescendência.

Tal como eu o recorsdo, o conto é assim ["goes like this"]: um homem e uma mulher jovens conhecem-se num bar.

Conversam um pouco enquanto tomas uma bebida ["over a drink"], sentem-se fortemente atraídos um pelo outro e decidem conhecer-se melhor, pelo que optam por passar a noite em casa de um deles---talvez dela.

Se se tratasse de uma história "de terror social" ou "sociológico", de " terror cultural", talvez fosse altura de começarmos aqui a especular sobre a "dissolução, talvez irreversível [ou, pelo menos, dificilmente reversível] dos costumes, sobre o modo como os padrões de relacionalidade entre os seres humanos de fragilizou e parece ter-se circunstancializado vertiginosamente a tal ponto que é possível hoje conhecer e deixar de conhecer sem, em momento algum verdadeiramente conhecer, quem quer quer seja, num lugar qualquer---e por aí fora.

O conto, porém, era "de terror", apenas.

Eu, porém [e duvido, sinceramente que alguém mais...] para além, daquele possível aspecto envolvendo a rápida des-fixação e mesmo reconhecível fragmentação dos padrões médios de relacionalidade humana nada mais conseguia divisar de admissivelmente inquietante [quanto mais terrífico!] numa coisa que, suponho, acontece regularmente onde quer que haja gente e lugares públicos como o da "estória" de Samson.

E de tantas outras, "for that matter"...

Bom mas a "estória" prossegue, fala de um percurso de táxi ou no carro de um dos protaginiatas até casa, numa última bebida que se toma já na intimidade do "flat" semi-obscurecido, de um quarto de dormir, de uma cama, de um casal ["creatures of circumstance", como titutalava Somerset Maugham num outro livro de que gostei, de igual modo, muito quando era jovem] que se despe e se deita, numa luz, uma luz do texto, que resiste e se obstina em permancer ainda indiscretamente acesa e num anfitrião ou anfitriã---eu julgo lembrar-me de que anfitriã é a jovem que, imprevistamente "coy", como a "mistress do Donne" num outro título conhecido, confessa bruscamente não ser capaz de "make love out of absolute darkness---or something to that effect".

Há qualquer coisa no texto [que é, porém, se bem o recordo globalmente muito "matter-of-factly": faz parte da técnica e da intenção específica do autor: não é por acaso, como verão...] sobre o amor ser uma forma de angústia, de morte e de impossível [Não! Não há nada disto no conto, confesso! Fui eu que não resisti a "colar" à minha memória dele algo que não consigo também resistir a acrescentar "for reasons of my own..." ] e há, voltando porém, à "estória", um jovem protagonista que se oferece galantemente para ir apagá-la.

Há tudo isto [muito "matter-of-fact", como vêem mas não há terror o que num conto de terror tem que se lhe diga.]

É então que a rapariga faz um gesto subtil, em íntimo silêncio e colocando, suavemente, um dedo cálido sobre os lábios do companheiro, imóvel no leito, detém o movimento esboçado por ele no sentido de ir extinguir a luz importuna.

E, escreve [ou penso eu que escreve: gosto eu de lembrar ou imaginar que ele escreveu] um dos braços dela começa lentamente a esticar, a alongar-se a partir do cotovelo ou do ombro, como uma corpulenta serpente com vida própria, um musculado réptil branco que, no silêncio de pedra que se formou, rasteja pela cama, desliza por esta abaixo, toca no solo, e, sem se deter, atravessa o quarto iniciando, então, "undeterred", o percurso final, parede acima...

Confesso que, da primeira [e única!] vez que li o conto, quase deixei cair o livro neste ponto, instantaneamente alerta, num ápice preparando o corpo para repelir o contacto sinistramente ondulatório reptilínio, de um braço-seerpente cingindo-me poderosamente o pescoço, em silêncio, bruscamente cortada cerce ["cut short"] a onda de irreprimível voluptuosidade que naturalmente, a mim, como a todos os outros leitores, havia já invadido e se ia apoderando dos sentidos desprevenidos...

Poucas vezes, a sugestão de morte terá estado tão perto de se fundir [naturalmente?...---pergunto eu...] com a de amor e de necessidade de amar.

Poucas vezes, também, essa outra sugestão, desesperadamente humana, de horror instintivo a tudo quanto os sentidos não conseguem perceber de imediato como familiar e, por conseguinte, 'normal' terá sido dada, num texto escrito ou não, com igual intensidade e mesmo arrebatadora violência.

No fundo, está lá tudo: o horror ao desconhecido que se forma naturalmente na consciência em resultado da repetida experiência dos múltiplos e inelutáveis próprios limites.

O animal em nós, que uma muito desestruturalmente perecível ficção, desesperadamente superficial ["hopelessly vain"] de "evolução" levou à persuasão ilusória, momentânea, sempre efémera e fugaz, de inteligência e de poder.

A necesidade, volto a dizer, ingente, sufocante, obsessiva, por vezes, de afecto que nos leva, como indivíduos e, num certo sentido, agora também como 'cultura', uma e outra vez, num ritmo ou num círculo---em vários círculos, alguns deles concêntricos--- de alucinação e desespero, a malabarismos de comportamento diário, inimagináveis, desesperados e sempre, de um modo ou outro, potencialmente fatais.

O jogo da existência.

E até uma explicação mais ou menos... biológica ou ecológica para essa outra ficção inteiramente gratuita e não menos desesperadamente vã, incapaz de penetrar mesmo marginalmente na intimidade dos segredos da existência [se os há verdadeiramente...] do "pecado", do "crime" e do "castigo" com os quais decoramos a nossa desesperançadamente ridícula ignorância da Vida...

No meu espírito, o conto de Samson [se é de Samson... Às vezes, penso que é de Angus Wilson e outras de William Golding e, por alguma misteriosa razão, esta indecisão enche-me sempre de deleitosa excitação...] cujo título voluntariamente, como disse, esqueci nunca ou muito poucas vezes deixa de associar-se a um outro de Salinger [também esse voluntariamente apagado da memória...] onde há um rapaz que, numa estância balnear "para ricos", se levanta um dia manhã cedo, barbeia com escrupuilosa minúcia, toma um revigorante duche, se regala, em seguida, com um suculento pequeno-almoço de bacon e ovos, vai até à piscina, inala voluptuosamente o ar fresquíssimo da manhã, combina um jogo de ténis para daí a uma hora ou duas, acaricia uma jovem loira que lhe devolve um olhar meigo indescritivelmente sereno e feliz, toma banho de mar, regressa ao quarto deambulando despreocupadamente por entre as mesas da esplanada, cumprimentando este e aquele conhecidos, fecha a porta, abre uma gaveta, tira dela um revólver negro e com um único tiro na têmpora põe definitivamente fim à existência.

É possível imaginar melhor, mais eloquente, modo de equacionar a questão do sentido da existência?

Primeiro, os terrores, a angústria, a experiência dos limites.

Depois, o ponto nevrálgico do 'sentido'.

Se eu tivesse de reunir perante uma audiência de juízes da existência toda a "sabedoria" do mundo num pequeno pedaço de papel ou numa "parábola" como terá feito o cidadão Jesus, levava comigo para fundamentar e exemplificar, ilustrar, a minha própria exposição se não os contos de Samson e Salinger pelo menos---e seguramente---a imagem mental que guardo de cada um deles, o modo como os reescrevi a fim de melhor os entender, os saborerar e lhes tributar a minha rendida final admiração.

Era também assim, como no do Salinger [depois de me ter recusado, ainda uma última vez, determinadamente a reler o de Samson....] que gostava de morrer: após de um tranquilo passeio pela cidade, numa sreníssima tarde de outono, liberto de inquietações, sentindo-me finalmente parte integrante de uma coisa qualquer orgânica e total---que até podia ser a natureza indo e vindo afanosamente, com maternais cuidados, sobre as suas coisas, entre as quais eu---inteiramente feliz...


[Na imagem: fotograma de "Aurora" de Murnau]

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