domingo, 7 de março de 2010

"Evocação de um «tempo português»


Grande parte, não apenas do que hoje somos, como, sobretudo, daquilo que amanhã seremos ou não, enquanto sociedade e enquanto país, passa, como recordava Joel Serrão, no prefácio às "Notícias Literárias de Portugal 1780" de José Anastácio da Cunha, numa [2ª edição da "Seara Nova" com data de 1971] por uma séria e profunda reflexão sobre o nosso passado colectivo, recente, sobretudo.

E quando digo 'recente', refiro-me a toda aquela massa mais ou menos inerte e, sob variados aspectos, indiferenciada, de passado que vai do fim do breve auge das Descobertas [onde já estavam, aliás, como não se cansava de sublinhar o meu velho professor de História e Filosofia, Fernandes Costa, da saudosa "Luís de Camões", os germes da própria desintegração final mas enfim] até ao presente.

É uma reflexão que tenho procurado fazer aqui no "Quisto", a que regresso de forma [compreensivelmente, penso eu] recorrente e que, hoje, mais uma vez retomo, desta feita, para citar dois curtíssimos [mas imensamente esclarecedores!] fragmentos dob referido prefácio de Joel Serrão que comecei por referir.

Um é de Herculano---o intelectualmente monumental Herculano da última fase, do seu próprio "Novembro de '75" pessoal [e generacional] que há-de conduzi-lo ao exílio final em Vale de Lobos e é um inimaginavelmente amargo "Isto dá vontade de morrer" que me dispenso de comentar.

Quando um homem como Herculano chega a esta [auto] dilacerante conclusão após todo um passado de exílio e luta, que se pode---que vale a pena!---com efeito, acrescentar?...

A outra citação é do próprio José Anastácio da Cunha, poeta "em privado" e matemático promissor, frustrado, como recorda o exegeta que lhe publica o texto atrás referido, por razões que se prendem com a "ambiência cultural do tempo português que lhe foi dado viver".

Um tempo, recorda noutro ponto do seu próprio texto, Joel Serrão, em que "era «pecado» cultivar a mente e procurar, procurar, procurar" e/ou em que se condenavam académicos de "excepcional talento", "excepcional penetração intelectual e um leque aberto de multímodas aptidões" e "superioridade incontestável" relativamente à Academia sua contemporânea por, entre outras coisas igualmente graves, ter "ideias livres" e ser "anticatólico".

De "ter convivido com protestantes" e "ler, com íntimo deleite, livros de Voltaire, Rousseau, Hobbes e outros autores não menos nefandos que defendiam o deísmo, o tolerantismo e o indiferentismo; de traduzir para português vernáculo prosas e versos de autores franceses e ingleses que não estavam em cheiro de santidade; e ainda---imagine-se!---de emprestrar a uma sua discílpula livros impregnados de filosofismo".

Ora, perante tudo isto---este "tempo português", como lhe chama numa [aliás, felicíssima!] expressão, Joel Serrão, incapaz de reflectir-se e posicionar-se criticamente em relação ao Tempo e à História em geral de modo a ocupar num e noutra um lugar minimamente próprio e autonomamente procurado, reflectido [expressamente proibido de fazê-lo por uma "santíssima" inquisição que, há séculos, operava como grande [e literalmente inargumentável!] prévia consciência intelectual e moral individual e colectiva do País e virtualmente irrespondível juiz crítico de tudo quanto fose ideia ou até sentimento nele; ora, dizia, perante isto e especificamente a isto, responde um não menos amargurado e vencido Anastácio da Cunha [à época já corrido da universidade e do exército e tendo, pelas "razões" apontadas cumprido pena de vários anos depois de passeado pelas ruas de inquisitorial sanbenito vestido] com um melancólico "não posso deixar de deplorar a sorte de uma nação que parece singularmente condenada a perpétua ignorância".

A grande questão que hoje, aqui, a partir desta experiência de [auto] reflexão anterior levanto, é: nada mudou, então do "tempo português" de Anastácio da Cunha e Herculano [para já não falar do do próprio Joel Serrão, daquele em que ele redige e publica o prefácio de que tenho vindo a falar...] para cá em termos da [inviabilidade persistente da emergência de uma] consciência crítica nacional minimamente atenta, estável e consistente capaz de, no mínimo, orientar a grei num caminho que nos obstinamos em percorrer de olhos fechados ["eyes wide-shut", como titulava Kubrick] e "sem mapas", numa espécie de cega "journey without maps" pelo Tempo e pela História como aquela de que, noutro lugar e noutro espírito bem diferentes, falava Graham Greene?

E serão estes, os meus; os que aqui deixo mais uma vez [e cada vez mais resignado à crítica e intelectual angustiada solidão...] outros daqueles "dreams of humanity, qui me déchirent plutôt qu' ils me consolent" a propósito dos quais delirava mais do que reflectia, no leito de morte, esse mesmo trágico José Anastácio da Cunha de que tão consistente quanto injustamente nos esquecemos quando falamos de exemplares e referenciais "vencidos", senão da vida como os Eças e os Anteros da luminosa geração, seguramente da "portugalidade sangrenta, obstinadamente suicidária e sempre irregressivelmente obscura", como esse tantas vezes citado mas nunca completamente... "aprendido" "Judeu"?


[Na imagem: Francisco Lucientes Goya, "Inquisição"]

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