segunda-feira, 8 de março de 2010

"Da Política como Teoria da Realidade---Breves Reflexões Pessoais Sobre Democracia a Partir da Análise do Fim Recente de Um Programa Televisivo"


No "Público" de 28.02.10, vejo um texto de Ana Machado sobre o fim do programa dito "de comentário político" de Marcelo Rebelo de Sousa, na RTP.

Devo começar por uma declaração [negativa, se quiserem] de interesses: nunca vi [nem tive, vez alguma, o mínimo interesse em ver] "As Escolhas de Marcelo" [assim se chamava o programa].

As escolhas de Marcelo são as... escolhas de Marcelo, as minhas são as minhas e assim conseguimos, Marcelo e eu e os diversos Marcelos que por aí pululam [não] dar-nos todos às mil maravilhas, eles com as escolhas deles e eu, na paz dos anjos, com as minhas.

O problema não é esse.

O problema é que seja possível haver programas "de comentário político" acreca dos quais [falo do modelo em abstracto] seja possível [e legítimo!] dizer-se, como diz um tal Manuel Martinho, "politólogo", esclarece o jornal---seja lá o que for que isso signifique] que, se se deseja "sobreviver" ["este tempo todo", diz ele referindo-se especificamente ao que agora mesmo fechou portas] "tem de ser mais do que [?] imparcial, tem de gerar influência".

E este "gerar influência" fazendo-se passar por "comentário" é que é o problema.

Há em Portugal, com efeito, um défice gravíssimo de 'substância crítica' na formulação da generalidade dos juízos "vulgares", do "vulgo".

Em Portugal [e isto é verdadeiramente espantoso numa sociedade "do conhecimento"!] existe a prática regular, estabelecida---'institucionalizada' na quele sentido preciso e prático em que um antigo professor meu de Letras falava de "instituições" inglesas, incluindo nelas o parlamentarismo e Sherlock Holmes...] de confundir "razão" com "emoção" ou, dito de outro modo, "convicção" ou "convicções" com rigor analítico e crítico na abordagem da realidade como tal.

É mesmo esta prática que leva, no limite, a essa outra perversíssima prática generalizada do chamado 'tráfico de influências' e, de um modo ainda mais amplo e mais lato, à "sociedade pós-moral" que substancia e deprimentemente fundamenta a nossa vida cívica e política actual.

Há tempos, num programa de rádio, ouvi um depoente jovem que se escandalizava perante o modelo muito comum de adesão partidária que se estabeleceu com muita frequência entre nós: em Portugal, dizia ele, é-se "do" P.S. ou "do" P.S.D. como quem é do Benfica ou do Sporting.

É-se, com efeito, "do" partido Tal ou "do" cidadão Qual porque um é um fulano que vem para a rua de samarra ou se comporta, perante as câmaras, como o avôzinho ou o tio simpático de alguém e o outro é o sítio onde há fulanos como ele.

As ideias e, mais importante ainda: a prática, a adequação objectiva daquelas ao concreto da vida pública da pessoa ou do partido em causa são, de forma regular e---lá está!---já completamente institucionalizada, entre nós um mero fait divers em matéria, quer de escolhas quer, no polo inverso, de rejeição, na realidade política, em Portugal.

Talvez possa chocar algumas pessoas o que vou dizer mas é exactamente porque não existe, de forma generalizada, entre nós, uma adequada transposição dos modelos de pensamento causal que substanciam e fundamentam a formulação de pensamento científico para aspectos da vida pública tão importantes como aqueles que se prendem com a escolha das pessoas e das políticas que vão, porém, de forma directa condicionar as nossas vidas durante um ou vários ciclos eleitorais; é, dizia, porque essa operação fundamental de transposição minimamente rigorosa da Ciência para a Política não se faz habitual e, sobretudo, generalizadamente que pode existir nas sociedades ditas, apesar de tudo, democráticas essa instituição verdadeiramente absurda e aberrante que são, na forma mais corrente e comum, as chamadas campanhas eleitorais.

É claro que uma "campanha eleitoral" feita com critérios de idoneidade política e informativa pode ter o seu lugar numa sociedade real ou, pelo menos, tendencialmente democrática.

A verdade é que, só há 'campanhas eleitorais' porque não existe institucionalizada entre nós a prática de pensar e de protagonizar, regular e consistentemente, a cidadania como parte do exercício responsável e orgânico da própria cidadania; porque inexiste a prática [não digo: o "hábito"---digo expressamente a prática] de participar activa e regularmente na vida partidária, na vida sindical, nos diversos planos e áreas da organização cidadã e especificamente política, exigindo que ela exista onde não chegou ainda [ou se suspendeu de '74 para cá, como substancialmente aconteceu com a existêrncia de inúmeras das comissões de base à época surgidas em Portugal].

Insisto: se esse tipo de abordagem efectiva, actuante, activa, consistente e orgânica da democracia formal estivesse entre nós institucionalizada como parte integrante e essencial da própria democia as campanhas eleitorais como tal deixariam, pura e simplesmente, de ter espaço e razão---fundamento real---para existir.

Mas por maioria de razão deixaria de haver espaço para existirem na forma actual de, na in/essência, mero 'folclore argumentativo' quando não escandalosa "feira de ilusões" e, ainda por cima... consentidas.

Feiras em que um simples gesto, muitas vezes fortuito ou "premeditadamente fortuito", forma limite de condicionamento e manipulação; em que um acidente ou incidente avulsos determinam objectivamente uma [não] eleição---com as múltiplas e todas ou quase todas elas relevantíssimas decorrências que o facto traz inevitavelmente consigo.

Quando, voltando especificamente ao início destas notas, o próprio protagonista principal do programa televisivo [porque é, de facto, disso que se trata: de um programa televisivo onde, de forma na realidade espúria, se faz política e se faz "opinião", i.e., se condicionam---eu diria: obliquamente---decisões que envolvem, na realidade, a vida de todos nós]; quando, dizia, o próprio protagonista principal do programa argumenta que não abandonou um programa anterior em tudo idêntico ocorrido numa cadeias privada porque "seria uma estupidez, a mais de um ano das presidenciais, perder aquela tribuna", tribuna que era, repito, um programa destes "de comentário", está na prática tudo dito sobre o modo como, de facto [e, pelos vistos, também, pior ainda, de direito...]; porque ínvios e brumosos caminhos se fabrica "opinião" em Portugal e, de um modo mais amplo, sobre a verdadeira natureza dos mecanismos que, substituindo persistentemente o recurso ao exercício responsável e orgânico da democracia, regem a formulação efectiva daquela mesma opinião.

A des-causalização ou dis-causalização----por vezes, como acabámos de ver, objectivamente induzida...---dos paradigmas comuns de decisionalidade política faz-se sentir claramente no modo como, enquanto eleitorado, nos habituámos a dissociar as disfunções de natureza política concreta da nossa acção individual e, assim, da nossa própria responsabilidade cívica e política [para já não dizer: intelectual] nos males que, como sociedade, consideramos que nos atingem em resultado da acção de um mau poder político.

Essa ideia----melhor dizendo: essa impressão----de que um mau governo nada tem a ver com o acto concreto que cada um de nós protagonizou num dado momento do processo dito democrático ou democrático formal de introduzir um papelinho numa urna de voto é, na prática potenciado pela própria atmosfera moral que por tudo isso se encontra já formada na sociedade exactamente porque não são, com demasiada frequência, factores de ordem escrupulosamente ética e idoneamente política mas meras imagens objectivamente gratuitas, convencionais, simbólicas e exogenamente induzidas no subconsciente individual e colectivo; imagens essas formadas muitas delas, como vimos, com recurso a expedientes e dispositivos de mais ou menos subtil condicionamento [senão mesmo aberta manipulação] da opinião aquilo que efectivamente substancias as opções que, como indivíduos, fazemos em matéria cívica e política.

Passámos, por exemplo, a achar, de há um 'tempo cívico e político' para cá que é normal fazerem-se promessas nas tais 'campanhas' chamadas eleitorais que, na realidade, ninguém pensa em cumprir.

Que, na realidade, ninguém pensa em exigir, em tempo oportuno, que seja esclarecido como se propõem os que tais promessas fazem cumpri-las e levá-las à prática.

Com pormenores, com números, com rigor técnico demonstrável que pudesse converter-se naturalmente em rigor político---tendo já sido antes rigor intelectual e ético.

Tudo isto junto conduz à demonstração de uma tese que venho há muito defendendo: aquela que diz que uma verdadeira democracia é também uma autêntica, uma genuína teoria da realidade---e em mais de um sentido: é-o porque assenta em modelos objectivos, rigorosos, de representação teórica da realidade que o são porque idealmente vêem directamente da Ciência [e até das ciências] para a Política e é-o porque, nessa medida, ela própria faz avançar, no seu importante e nobilíssimo âmbito específico, esse modelo estruturalmente científico de rapport orgânico com o real que a Política idealmente contém---ou melhor dizendo: nas suas formas ideiais, é ou deve ser.

Para terminar: não vem mal algum ao mundo [num certo sentido preciso que aqui me esforcei por detalhar e demonstrar, até pelo contrário] pelo facto de um programa falaciosamente classificado "de comentário político" ter chegado ao fim.

Vem mal [claro e não é pouco!] do conjunto de [sem!] razões pelas quais ele acabou e que não podem obviamente dissociar-se de um outro projecto concorrente de condicionamento e manipulação da opinião sobre o qual se têm ultim,amente multiplicado na imprensa os sinais e as revelações factuais.

Mas que não podem, umas e outras, em conjunto dissociar-se [e isso sim, é vital que percebamos como é vital que do facto tiremos as necessárias ilações] do modo profundamente errado, gratuito aleatório, consistentemente vulnerável a todo o tipo de perverso condicionamento; facilmente manipulável e na essência estruturalmente não-democrático senão mesmo objectivamente anti-democrático de protagonizar a actividade cívica e muitro conctretamente de [não!] fazer política.


[Na imagem: David Oyelowo no papel de Prometeu em "Prometeu Agrilhoado" de Esquilo [an ancient Greek lesson about the abuse of power, enc. de James Kerr para a Aquila Theater Company]

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