sexta-feira, 5 de março de 2010

"O meu 'Amigo do «Facebook»', António Garcia Pereira"


Há dias, nessa coisa dificilmente qualificável mas seguramente... "esquisita" que é o "Facebook", o meu amigo João Soares do "Bioterra", sempre atento à realidade e militantemente diligente relativamente a ela e aos diversos modos possíveis de habitá-la dignamente, humanizando-a sempre, onde e como for possível, teve a belíssima ideia de divulgar um curto vídeo com um depoimento de António Garcia Pereira sobre aquilo a que, em Portugal, por uma razão qualquer [que a mim, confesso, de todo, me escapa] nos obstinamos em chamar "Justiça".

Devo dizer que Garcia Pereira, "o" Garcia Pereira, com orgulho o digo, é um dos "meus melhores Amigos" dessse mesmo «Facebook» e, aliás, uma das poucas razões pelas quasis por lá vou permanecendo.
Nem sempre estarei de acordo com ele, devo dizer.
Mas há uma coisa que eu admiro acima de tudo em Garcia Pereira: o modo como num país de gente ou acomodada ou simplesmente venal, ele persiste em defender causas e pôr ao serviço dessa defesa uma veemência e um calor que há muito deixaram de "usar-se" no deprimentíssimo "País da Canavilhas" em que, como "país cultural, mental, cívico e político" há muito já nos tornámos.
Mas o Amigo Garcia Pereira tem outras qualidades e méritos.
Devo dizer desde já que considero que uma dessas qualidades e desses méritos pessoais mais salientes e admiráveis é... linguística e está associada a um uso da linguagem e a uma postura mental que seria bom que como sociedade, agora especificamente, cívica e política retomássemos e o mais depressa possível: a prática de usando uma linguagem directa e rigorosa "chamar os bois pelos nomes".
Passado, com efeito, o período de furor revolucionário inicial, o País, por outra daquelas razões singularmente insondáveis que escapam de todo, aos leigos como eu, deu em ter vergonha de chamar "Revolução" à "Revolução" e/ou "Proletariado" a esse mesmo "proletariado".
Por muito que possam ter-se alterado circunstancialmente e recontextualizado histórica e politicamente uma e outra dessas noções.
A verdade é que a notícia da morte do proletariado, desde logo, me parece [como parecia a Twain a que envolvia a sua própria] me parece francamente exagerada.
Garcia Pereira não tem medo desas palavras, dessa semântica limite---mas, sobretudo, visivelmente não teme raciocinar, pensar a História, com elas e, sobretudo, claro, com os conceitos ou conceituações que lhes subjazem.

Essa, umas das grandes lições que a sua militância cívica e política, desde logo, nos traz.
Porque, de facto, o proletariado---uma das conceituações-chave da visão marxista---está longe de ter simplesmente "morrido".
Marx ou Lenine nunca teriam permitido que tal circunstância necrológica fosse hoje genericamente aceite sem luta---e que luta eles dariam hoje e como seria [como é!] necessário e urgente que nela tomemos parte, cada vez mais activamente nos dias que correm.
Eu sempre acreditei, com efeito, que a "des-propriedade dos meios de produção", a in/essência mesma do fenómeno de proletarização consistente das classes e das sociedades em geral está longe de ter desaparecido.
Não há que ter medo das palavras, repito o que atrás dizia quando falava dos méritos da obstinação de Garcia Pereira em, na realidade, seguir "analisando marxistamente" a sociedade e o mundo em que temos de viver, hoje.
Pelo contrário: se os paradigmas, as modalidades, de proletarização se alteraram, volto a dizer: circunstancialmente foi, no fundo, para melhor se adaptarem ao próopprio movimento contínuo da História--- para melhor se "agarrarem a ela", não a deixando definitivamente fugir de um controlo que não se quer, seja em que caso for, perder.
Aquilo que cada vez mais "perto da base" ou "junto ao nécleo" define os mecanismos de proletarização hoje é a propriedade do que me permito reclassificar como "os meios de produção de conhecimento e/ou de saber".

A Inteligência, que as formas agudamente tecnológicas de capitalismo actual usam como uma matéria-prima absolutamente indispensável no processo de produção primário de capital, é a grande [de facto, a única] propriedade dos que a não têm, hoje.

Nos primeiros estádios do capitalismo industrial de onde emergiu o actual capitalismo tecnológico [o democapitalismo vigente no Ocidente dos nossos dias], a Inteligência não se revestia da relevância absolutamente vital que possui hoje: as formas de saber convertíveis em tecnologia utilizada significadamente para produzir capital eram relativamente primárias e comparativamente não-distintivas.

Ou seja, para inundar o mercado de produtos [como tantas vezes tenho dito,m aquilo qwue, de facto, o capitalismo produz é capital, o resto são meras funcionalidades ancilares im/puramente instrumentais] bastava um núcleo básico comparativamente limitado de saberes que não tinham de forma necessária de constituir em si mesmos um «segredo» absoluto que é como quem diz: uma propriedade intelectual [ou inteleccional] estr[e]itamente privada, "guardada" por um Direito específico, próprio, concebido exactamente para impedir que ela deixe de sê-lo, como hoje acontece.
O que substanciava, na esssência, o exclusivo da propriedade dos meios de produção era um capital anterior cuja propriedade era aquilo que efectivamente seleccionava, na base, as classes sociais.

Por isso, na Revolução Industrial inglesa o pressuposto foi o desapossamento dos camponeses da sua propriedade material, i.e., da terra----a pauperização física dos camponeses.
É esse processo físico, concreto, material, de pauperização consistente e estratégica que entrega a sociedade inglesa dividida já em classes ao novo modo de produção industrial como tal.

Não é tanto o saber em si: é o capital já existente----a propriedade específica deste.
O saber só começa a ser distintivo, isto é, a converter-se ele mesmo nuclearmente em "valor" [leia-se: em capital, num proto-capital, a partir de um dado ponto do processo, essencial] quando as dinâmicas de concorrencialidade no seio do capitalismo forçam este a concorrer de um modo que é, ele mesmo, cada vez mais novo na História, i.e. a partir da propriedade do próprio saber que é, a partir de agora, aquilo que vai realmente permitir diversificar ou, como pessoalmente costumo dizer: "significar" [verbo transitivo] a produção e controlar, desse modo, o próprio processo ou mecânica concorrenciais como tal.
"Um único saber" deixou de bastar para produzir um dado objecto ou conjunto de objectos interligados entre si porque a natureza do saber passou naturalmente a ser, a dado passo, tal que o saber começou, ele mesmo, a gerar de forma que poderíamos dizer: quase espontânea mais saber[es], não bastando, agora, a propriedade anterior de capital para assegurar que a propriedade dos meios de produção [e portanto o desenho específico das classes sociais, a identidade dos indivíduos que as compunham] permanecia estável, estavelmente seleccionado e operativo, na forma até aí operante.

A partir de um dado 'ponto teórico' de "volução" do processo foi, pois, o saber como tal que começou espontaneamente a gerar capital.

Por isso, eu digo que as "enclosures cognicionais" de hoje são uma mera "mutação volucional" circunstancial das "enclosures" físicas originais.

Por outras palavras: o novo proletariado não é já o camponês sem terra ou o operário sem fábrica mas o cidadão sem [i] saber e [ii] excluído politicamente do direito [e do Direito!] de aceder livremente ao saber-capital [que é também saber capital e capital-saber] isto é, o cidadão politicamente impedido de produzir por si só livremente capital.

Já não é, pois, dito de outro modo, para as formas actuais de proletarização e para o paradigma tópico de proletariado que elas geram, uma questão de, não tendo terra, ter de ir trabalhar para uma fábrica na produção de mais-valias para o proprietário desta: é questão de, não possuindo a propriedade do saber necessário [que está hoje onde estava, pois, a riqueza, o capital como tal no século XIX] e estando excluído, pelo Direito que existe, de utilizar os saberes que há objectivamente 'em suspensão' na sociedade, o proletário de hoje vê-se forçado a vender, não a força do trabalho físico mas a do trabalho intelectual.

O qual, no processo actual de re/produção social e histórico de capital, substitui, pois, a propriedade do saber: é a propriedade dos que a não têm, na sua forma actual---tal como a força sobretudo braçal era a dos que, no início da Revolução Industrial não possuiam outra, nomine, o próprio capital.

O que falta hoje [e, por isso, eu gabava tanto o tipo de intervenção cívica e especificamente política de António Garcia Pereira sempre que tem acesso aos chamados meios de comunicação social do poder ou, de um modo ou de outro, não muito afastados dele---haja em vista as recentes revelações vindas a público envolvendo o tráfico estratégico de informação mediática...] é o que o "último Lucácks" chamava "Psychologisches Klassbewusstsein" ou seja uma nova consciência de classe, devidamente interiorizada e reinvestida organizadamente na acção história por aquele que constitui, como digo, em meu entender, pelo menos, o novo paradigma de proletarização e as formas circunstancialmente novas de "proletaricidade".
Mais: quando observamos leis que hoje se destinam a des-integrar e a conservar estavelmente des-integrados e in-orgânicos os padrões de emprego e nos damos conta de que o "progresso social" é isso, percebemos como, afinal, não existem diferenças assim tão significativas entre a fragilidade económica e social a que estava submetido o proletariado do tempo de Marx---o Trabalho na sua fase pré-sindical---por exemplo e aqueles sectores sociais que se diz substituiram historicamente o proletariado mas que, para mim, repito, não passam de 'adequações' [e 'readequações'] meramente "funcionais" daqueles padrões de "proletaricidade necessária e orgânica" sem os quais mesmo capitalismo agudamente tecnológico de hoje não pode pura e simplesmente subsistir.

Como tantas vezes também tenho dito, o problema não é se o capitalismo de hoje precisa ou não [e dispõe de] um proletariado específico, próprio: o problema é o próprio modo como o capitalismo gere a introdução orgânica de saber na História que conduz a uma dissociação a prazo incontrolável do indivíduo----da figura teórica mas também prática do Indivíduo, do Homem, do Cidadão----em não-produtor, por um lado [porque o espaço do capital variável nos novos padrões de produção tende a reduzir-se de forma drástica e progressiva, substituído pelo capital constante que é o saber coisificado em tecnologia] permanecendo, porém, por outro lado, paradoxalmente indispensável como mercado.

É por isso que eu também digo que só há sociedades 'liberais' e/ou 'sem Estado' porque... há um Estado que é nuclearmente utilizado como 'recapitalizador funcional' do mercado e, assim, possibilitador igualmente orgânico de todo o sistema.

Pessoas, cidadãos, que, como António Garcia Pereira possuem uma actividade consistente de consciencialização da sociedade portuguesa, levando-a reflectir e a reflectir-se no sentido de vir essa reflexão e essa auto-reflexão a constituir-se numa forma de consciência estável que possa ser adequadamente reinvestida num modo inteiramente novo, revolucionário, de 'ocupação da História' são, por isso, pessoas que é preciso acarinhar e encorajar---Pessoas literalmente essenciais às quais presto daqui, em geral, o meu solidário e sentido, tributo na pessoa desse, de algum modo, imprevisto e inesperado Amigo que o tal «Facebook» me proporcionou, servindo, afinal, assim, para alguma coisa...

[Imagem ilustrativa "gentilmente cedida" por mistakengoal-dot-blogspot-dot-com]

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