Não se ofendem os animais por se garantir a especificidade dos respectivos atributos e competências, o carácter particular da sua natureza e até das suas formas específicas de nobreza .
Ofendem-se é quando os desentendemos, reportando erradamente esses atributos e essas competências às nossas próprias---e vice-versa.
De resto, não é apenas a eles e a nós próprios que, nesse caso, desentendemos---e começamos, de algum modo, a violar: é a própria Natureza como tal...
2 comentários:
Sem dúvida, e se assim o entendo, ainda que a tourada nunca tenha feito parte das opções culturais da minha família, é porque também me deixei arrebatar, em certos momentos, pela força bruta e desafiadora que está contida naquele combate, “quase” de igual para igual, que é a pega do touro. Justificava eu que pegar o touro era a justa opção de quem escolhe o perigo e o encara de frente, com o direito de jogar a sua integridade física, mas sem causar dano ao animal. Pois, só que de “igual” e de “justo” nada existe nas touradas; nada é natural, nem colocar em risco os cavalos, nem forçar os animais a uma luta que não procuraram. E quanto aos outros aspectos, que dizer? A tradição justifica que se continuem a torturar animais, espetando-lhes os ferros? Há algum sentido de piedade que possa ser invocado para justificar a morte do touro na arena? Teoricamente, é possível dizer que o animal sofre menos porque não permanece ferido; na realidade, ainda há bem pouco tempo, várias pessoas que assistiram a touradas em Espanha me garantiram que o animal sofre durante a execução.
Tal como dizia o poema, “as pessoas sensíveis não matam galinhas mas comem-nas.” Também os defensores das touradas argumentam que há tantos outros animais que são abatidos e usados na alimentação humana. A realidade, porém, é que se a morte dos animais é necessária para a nossa sobrevivência, esta não tem de ser transformada num acto de crueldade. Nem tão pouco se vai ao matadouro para fazer do abate dos animais um espectáculo. Então, que estanha patologia continua a levar as pessoas para as arenas?
A minha perspectiva é precisamente a mesma: o que impressiona [e inquieta!] é a ideia de alguém converter a própria sobrevivência [uma das formas que ela assume, em qualquer caso] num espectáculo em si.
O carrasco não se torna animal---torna-se, pelo contrário, perigosamente humano!---quando perde a noção da 'necessidade' [ao menos, convencional e, num certro sentido, simbólica] da sua tarefa; quando se torna incapaz de se distanciar criticamente da realidade na forma daquilo que faz para viver; quando se ALIENA da sua relação objectiva com o que faz e começa a 'saborear' isso mesmo que faz independentemente dos respectivos fundamentos objectivos, materiais, passíveis de serem convertidos num "conhecimento" qualquer---da realidade mas, sobretudo, de si e do seu papel nela.
A partir daí, deixa de ser 'sujeito' e passa naturalmente a mero 'objecto' dos seus actos e, de um modo mais lato, do próprio real como todo ou como 'coisa'.
Perde o privilégio da Culpa que é um atributo exclusivo do 'sujeito moral' e, "humanizando-se", «objectifica-se».
É, também isso, esse mecanismo alienado[r] que transforma a fruição da Cultura em consumo e a da Ética num simples hábito que abre, por seu turno, toda a espécie de portas ao fascismo.
Aos fascismos---mesmo aos "fascismos de vidro" que sãop precisamente a consagração no plano político desta "objectificação" que certas concepções mais mecanicistas e 'pós-modernas' de "cultura" preparam---quando não SÃO elas mesmas.
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