... maiores dificuldades consiste em decidir se sou lisboeta, se alentejano...
Por nascimento, sou lisboeta, claro.
Lisboetíssimo!
Aí, não há dúvidas; quando, porém, se trata de convicções,i.e., de onde sou por vocação, por onde em matéria de naturalidade o instinto me leva tudo se complica!
Às vezes, sou lisboeta, outras [sobretudo quando penso em tardes de estio habitadas praticamente só por remotos enxames de grilos tão vagabundos como eu---pesadas tardes de estio brevemente iluminadas de cursos de água frágil e reservada que são outros tantos gritos estrídulos de sábia frescura e pura luz irrompendo agilmente como aves duras e velozes da cortina tensa imóvel do calor] aí converto-me miraculosamente em alentejano e "nunca fui de outro lado" até ao mais íntimo de mim...
Outras vezes sou parisiense de Montparnasse, do Pernety, da Porte de Vanves, bruxelense de Ixelles ou Saint-Gilles e, uma que outra vez, por muito que isso a mim próprio custe a crer tendo em vista o frio e a saudade que por lá passei das margens álgidas do Amstel ou do Mosa.
Sou assim: não tenho, há muito, pátria nem lugar---apenas sangue e alma, crepúsculos mortos num deserto amargo e rente---que vão mudando continuamente de lugar como mãos ávidas, ébrias de um erotismo cifrado insaciável de luz e alturas que percorressem incessantemente o corpo em carne vida da memória mas da memória de um futuro que anoitece e se converte invariavelmente em cinza antes que lhe toque e o possua.
Eu fui criado num "Alentejozinho" em miniatura que era a casa dos meus pais em Lisboa: primeiro, em Benfica, depois na Penha de França, na rua do Triângulo Vermelho e, por fim, nos Anjos, na rua Palmira, onde a minha Mãe faleceu não "se acabando com ela, porém, o Alentejo"---esse Alentejo portátil e tenaz que, de um modo ou de outro, consciente ou inconscientemente, trago, desde essa altura, sempre comigo porque o meu pai [que um puro acaso da fortuna tinha feito nascer muito longe, em Moçambique, onde o meu Avô que era médico e militar, nascido em St. Aleixo da Restauração mas sedeado em Moura, esteve colocado] tomou a seu encargo fazer o que a morte e apenas a morte impediu a minha mãe de continuar a fazer.
Daí vem a memória rotunda e feliz do pão cortado ao peito e mastigado em religioso silêncio num tributo mudo à seara e ao suão---essa espuma obsessiva que cobre os dias densos e compactos de uma poeira invisível que é, no fundo, a própria luz----e essa propensão lenta e quase doentia para a saudade com que desde que me lembro me visto e de que, não-raro, me alimento, também.
Hoje, todavia, acordei [imaginem!] outra vez lisboeta, talvez até mais lisboeta do que nunca!
A dor que por pura crueldade e imperdoável estupidez infligi recentemente a alguém muito próximo fixou-me aqui à terra e estabeleceu entre mim e esta um laço dificilmente rompível que aqui me retém e submete até que expie a estupidez e acabe por convertê-la na única luz capaz de reduzir essa mesma estupidez ao silêncio e a noite na garganta onde ficou retida a uma massa de pura e alva claridade---um gás de luz e brancura de onde comece finalmente a sair a voz...
[Imagem extraída com a devida vénia de Ruin' Art]
1 comentário:
Emocionaste-me!
Sejas lisboeta ou alentejano, gosto do que sei de ti!
Um beijinho, Carlos.
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