Intitula-se "Se conduzir não Leya" e respeita às destruição de um lote de milhares de livros de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço e Graça Moura, escreve o articulista, por iniciativa do grupo editorial Leya recentemente formado por fusão ou por absorção sucessiva de diversas casas editoras, algumas com um longo historial na cultura em Portugal e até aí autónomas.
Sobre este autêntico massacre ditado por razões de mero interesse económico gostaria eu de dizer concretamente o seguinte: durante muitos anos, habituámo-nos a simbolizar na queima pública de livros pelos nazis e, claro, por essa espécie de programa de acção [de "civiliz-acção"...] e, ao mesmo tempo, "consigne" militante [tenebrosamente militante mas "militante!] saída da mãozinha perversa daquele a quem, à época, se apodava em segredo [em segredo! Em segredo que o ferro da Gestapo, adequadamente aquecido, marcava indelevelmente e, marcando indelevelmente, ainda por cima, doía que se fartava!] de "anão venenoso", o tal "Dr. Goebbels" possuidor, ao que o próprio gabava, de uma famigerada e ainda hoje, como digo, referencial-pela-negativa "pistola" da qual "puxava", dizia ele então, sempre que alguém tinha a impertinência e/ou o mau gosto de lhe "falar de cultura".
Durante muitos---muitas décadas---assim foi, pois.
Transmitia-nos, como sociedade em geral, uma animadora sensação de conforto e de alguma razoavelmente fundamentada confiança na Humanidade ["whatever that means...] pensávamos nós que assim fosse, isto é, que a queima de livros e a prática de tratá-los e à cultura em geral "à pistola" tivesse entrado no nosso imaginário cultu[r]al como algo de tão negativo que só a um fulano mesmo muito pequenino e ainda por cima "venenoso" pudesse ocorrer.
Se o homenzinho era um espantalho físico, os seus actos, designadamente neste ponto em concreto envolvendo a cultura, eram [esperançosamente] um "espantalho cultural" de que nos servíamos consistentemente como cultura para pensar o nosso futuro e definir algo de essencial no seu conteúdo factual e, sobretudo, mental, em abstracto.
Pernsando bem, ainda assim, tenho de reconhecer que o tal Goebbels tinha uma espécie de "desculpa" formal que pode funcionar, mais ou menos em abstracto, em seu favor: lendo o sinistro "Diário" que a personagem deixou, percebe-se que a criatura até acreditava---tortuosa forma de convicção mas pronto: convicção, ainda assim---em muitas das coisas de que dizia e fazia---ou mandava fazer.
À sua maléfica e sangrenta, arrepiantemente imoral maneira, o fulaninho era, portanto, bem vistas as coisas, uma criaturinha safada e perversa mas... de convicções.
Ora, acontece que, de repente e para nosso boquiaberto horrror, passados estes anos todos, descubrimos, de chofre, que, primeiro, o tal Goebbels que julgávamos culturalmente morto e enterrado; tranquilizadoramente confinado a um lugarzinho reconfortantemente seguro dez palmos abaixo de terra [e assim impedido de puxar de mais pistolas e encorajar mais queimas de livros e/ou massacres maciços de "arte degenerada"] tinha, afinal, deitado raízes e, para nosso indizível horror, repito, florescido cultu[r]almente quando menos esperávamos em plena "Europa-dos-já-nem-eu-sei-quantos", a tal que há-de levar-nos à glória económica, social e política e "to crown it all" "civilizacional", um dia qualquer em que alguém mais brilhante que que os Barrosos e os Blairs que hoje lhe dão corpo e rosto, descubra como produzir, finalmente, uma que se veja---e sinta...
Desta vez, porém, não falamos já de convicções: falamos de negócio!
De "estratégia empresarial"---que é uma coisa incomparavelmente mais sã e limpa que, ainda por cima, soa uma quantidade enorme de vezes, melhor.
Falamos [implicitamente ao menos] desse risonho sempre inalcançável, nunca realmente realizado, grande projecto teórico de 'enganar o menino e papar-lhe o bolo' que é o famigerado "produzir riqueza e criar postos de trabalho" com o qual a 'pós-modernidade política e civilizacional' dos nossos "europeus" dias de consistente desencanto social e político nos mantém a todos, como sociedade, embalados na ilusão de um futuro ainda possível enquanto, por outro lado, vai paulatinamente destruindo o planeta, alegremente desmantelando, um a um, os paradigmas globais não só de emprego como, mais fundo ainda, de empregabilidade, animadamente desertificando inteligências, institucionalizando modelos de felicidade de plástico---a monstruosa "utopia funcional" em que assenta o edifício sempre cambaleante da "economocracia política" que na prática a sustenta---e mal, assustadoramente mal!---como se sabe e, sobretudo, sente.
É, no caso dos "Eugénios" e dos "Senas" reduzidos a pasta de papel [é mais ecológico do que incinerar ou co-incinerar, acho eu...] para quem ainda não perdeu o hábito de ver [para quiem ainda não "perdeu o jeito" de titar lições da observação atenta da realidade] a comprovação de algo, um conceito-chave da arquitectura e/ou da engenharia funcional economocrata---a que não me tenho cansado de apontar o dedo: o conceito nuclear de "rarefacção estratégica determinante"---de facto, "possibilitante"!---do capitalismo como coisa.
Produz este riqueza na História?
Sim, produz, é verdade, mas, primeiro, não a produz para a História e logo aí há um pormenorzinho que a "criaturinha" se esquece regularmente de referir quando nos dá, com as usuais trombetas, a sua orgulhosa 'biografia profissional', "técnica" e até "civilizacional", que a tem, sim senhor: basta olhar à nossa volta, na História como na realidade muito concreta da nossa própria experiência pessoal de todos os dias, nas cidades e nas sociedades de hoje, com as suas "crises" cíclicas, as suas taxas arrepiantes de desemprego crónico, com o sonoro ruir de conquistas de civilização arduamente alcançadas pelos povos e esperançosamente reunidas num Estado consciência que a cada dia de desintegra mais um pouco, para percebê-lo---e de que maneira, meus senhores, e de que maneira!
Mas há mais: além de produzir riqueza na História e tentar-nos, como qualquer angariador manhoso de seguros ou de férias em time-sharing, convencer-nos de o faz, como digo para a História, ele apenas consegue produzi-la, investindo, na sua produção, doses maciças de carência que são a verdadeira matéria-prima essencial dessa disfuncional indústria global de hoje que é a da produção industrial de... capital.
Porque é isso, meus amigos, o que de facto se produz hoje em dia nas fábricas, nas poucas oficinas que ainda trestam, nos escritórios, nas multinacionais de "Capital city, World Inc."!
Tudo o mais são pretextos, meros ensejos funcionais.
A única verdade disto é o capital produzindo-se e/ou reproduzindo-se a si próprio.
Incansavelmente.
Interminavelmente.
Sem descanso, sem pausas, sem férias, sem... "levantar os olhos do trabalho".
Para isso, tem fábricas de produção e transformação da realidade onde produz a carência de onde vai surgir o "valor" que permite ao conjunto do sistema funcionar---e seguir, na prática, existindo.
Se na natureza há água, prende-a em represas, põe-lhe uma cerca a toda a volta [uma cerca que é tanto física, material, como sobretudo jurídica e política: um Direito, um modelo de Estado, uma ideia de propriedade, uma "cultura"!] e vende a própria natureza em garrafas, em energia, em "modos" ou "modos de vida" que daí em diante passa[m] a ser 'a própria realidade'.
O embuste sobre o qual tantas vezes tenho aqui e não só discorrido reside aí, nesse ponto teórico da realidade concreta em que o real é "desviado", guardado em armazéns e racionado de forma a [i] gerar a falsa, a completamente apócrifa e disfuncional, noção de valor da qual, de forma primária, se alimenta o sistema e sobre a qual ele foi, de facto, em última instância, construído todo ele e, em seguida [ii] manter acreditavelmente a ficção de que a realidade é assim e que nunca foi e, sobretudo, nunca há-de poder ser, de outra maneira.
Se como sociedade soubéssemos ainda ver, o sórdido e impiedoso "massacre funcional" dos livros, criando mais um espaço de "rarefacção possibilitante", agora nesse domínio verdadeiramente crucial e, ao mesmo tempo, simbólico para o futuro das pessoas e dos povos que é a Cultura [é aí que se formam ou deformam, no fundo, todos os modelos de 'inteligência da realidade' onde aquelas pessoas e aqueles povos vão buscar---ou não---a própria ideia, a própria possibilidade, de um futuro para si e para as sociedades que formam] teriam bastado para abrir-nos, de vez, os olhos para a realidade que obstinadamente continua, para nosso mal, a escapar-nos.
"Fin' che la terra trema"?...
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