A RTP Memória voltou a passá-lo hoje 23.10.10 e poderia fazê-lo… todos os dias que o deslumbramento que o filme causa a qualquer verdadeiro cinéfilo nunca se perderia por inteiro…
Trata-se, com efeito, de um dos grandes Fords do 'período americano', uma obra de maturidade onde o realizador de “The Searchers” faz, diria eu, a sua “Rope” mas com demonstrável [infinitamente!] maior sucesso do que aquele que Hitchcock alcançou na sua famosa “stravaganza” e tour-de-force narrativo.
Fá-lo, digo eu, no sentido em que parece ter-se proposto dirigir uma espécie de “western”... sinfónico onde cola com uma mestria, de facto, soberba dois “andamentos” perfeitamente distintos: um, muito fordiano, largo, majestoso, onde prevalece sempre o, também ele, muito fordiano deserto do Arizona com a sua característica sugestão subliminar de esterilidade lunar e sempre impendente sugestão cumulativa ainda mais abstracta de vazio---um vazio onde os heróis têm invariavelmente de encontrar um caminho, fazendo sempre opções pessoais invariavelmente difíceis e, de um modo ou de outro, solitárias---um andamento largo, de expansão, “maestoso”, característico do ‘ciclo de cavalaria’; e um segundo "andamento" quase provocatoriamente teatral,num certo sentido, experimental mesmo, onde o “set” é concebido assumidamente como um palco e um palco 'expressionista', eu diria: “regado” com uma ousada iluminação 'de palco', onde uma angustiada [e angustiante!] implacável "reflexão" sobre o outro---uma exploração, uma desmontagem e uma impiedosa, exaustiva, "posta-em-questão" do anterior---é encenada com a interioridade e um espírito impiedosamente 'insurrecto' e até profanador que faz já antever o pós-género, a viragem metalinguística que, para alguns, está patente em “A Desaparecida” com o seu [anti] ‘herói’ profundamente torturado e a respectiva descida aos infernos da obsessão e da paranóia puras substituindo os caracteristicamente 'positivos'---verdadeiros---heróis de 'outros tempos'.
O que impressiona sobretudo em “Sergeant Rutledge” é, além da imensa seriedade com que o filme põe as questões [este é, de facto, um filme “sério”, de uma amargura e até de um mal-disfarçado cepticismo global que perturba e inquieta] exactamente essa natureza dialéctica que, a partir da forma, põe todo o género [e, sobretudo, os valores e a visão, em geral, aproblematicamente afirmativa que o definia enquanto 'poesia épica'] em questão e que faz com a forma, no fundo, à sua maneira---volto a dizer, num certo sentido, quasi-experimental---o que um Godard ou um Straub fizeram no seu próprio Cinema: utilizá-lo deliberada [mas, em caso algum, gratuita e muito menos irresponsavelmente] para interrogar a realidade e tornar a “revolução” do olhar cinematográfico [e não só desse, repito: não esqueçamos que dobrámos já a fronteira dos, sob muitos aspectos, questionadores e mesmo 'subversores' anos '60!...] uma coisa 'de episteme' uma coisa intestina e, a seu modo, visceral, íntima, profunda, algo que surge não como , no fundo, um mero... “adereço intelectivo ou cosmovisional” inorganicamente ‘político’ ou artificialmente exógeno, digamos assim, isto é, exterior ao objecto idealmente íntegro que é a obra mas, exactamente ao contrário, como uma componente ínsita do 'objecto orgânico e total', que é o filme.
É verdade que Hawks [em “Rio Bravo”, sob diversos aspectos, para mim, ainda a sua obra-prima], Zinnemann [no clássico “High Noon”] ou até um muito competente e nada despiciendo Delmer Daves em “3.10 to Yuma” [já nem falo no importantíssimo "Buffalo Bill" de William Wellman que era uma obra quase... militante, uma obra com causa e de "de causa", tudo menos a epopeia típica] fizeram “westerns” que, de algum modo, questionavam o género e os seus limites, na ambiência [opressivamente interior em "Rio Bravo" ou no filme de Daves com o qual a obra de Hawks tem evidentes analogias] como no “espírito” [profundamente amargo e desencantado] no caso do desencantadíssimo filme de Zinnemann.
Mas com a profundidade e o grau de seriedade pura de “Sergeant Rutledge” não penso que o tivessem feito, com a excepção indiscutível de “High Noon”, uma obra feita para denunciar a cobaedia e a intolerância como "política" e como [perversíssima!] "cultura" colectiva.
“Sergeant Rutledge” é um filme sobre a necessidade de ir além das aparências, de questionar os juízos [e, obviamente, os pré-juizos] humanos de todo o tipo.
É um filme sobre “o real instável”, que lança a inquietação como uma arma da consciência---um filme formalmente sempre estimulante e com coisas absolutamente espantosas em termos de arquitectura narrativa e visual como aquela surreal sequência de abertura envolvendo a chegada à estação que é um momento quase kafkiano, soberbamente encenado para sugerir subconscientemente as ideias de pesadelo, por um lado [aquilo, aquela estação deserta, aquela iluminação fantasmagórica, aquele súbito aparecimento de Rutledge, como uma emanação da própria noite, real e física---tudo aquilo, repito, é uma coisa obviamente onírica] e de descida aos infernos do escuridão e do insondável, por outro: da noite do espírito que o é também da humanidade e do humanismo, da tolerância, uma autêntica viagem aos “abismos da alma humana” que continua, filme fora, até à revelação ou "denoument" final, passando, em contraponto, pela luta do protagonista, o injustiçado sargento, vítima de uma leitura errada de diversas conponentes "avulsas" e exteriores, do real para afirmar, com uma dignidade absolutamente exemplar, admirável, a sua condição intrinsecamente Humana.
O elenco é magnífico, de uma solidez e de uma competência a toda a prova e vai de uma Constance Towers eficacíssima a um Jeffrey Hunter positivamente brilhante, fulgurante mesmo, por vezes, passando por um Woodie Strode que, apesar de Kubrick e de "Spartacus", nunca mais teve, que eu me lembre, uma oportunidade como aquela que Ford lhe ofereceu para ser realmente actor [Sylvester Stallone "cita-o", talvez inconscientemente, em "Rambo" de Ted Kotcheff, na patética sequência do "desabamento" da figura violenta que durante a maior parte do filme é John Rambo].
Por trás deste trio, brilha todo um elenco de tipos muito fordianos de que destaco os nomes de Willys Bouchet ['col. Otis Fosgate'] uma espécie de irmão gémeo do capitão dos rangers/reverendo de “The Searchers” onde era Ward Bond quem defendia [e de que maneira! Com que panache e brio!] o “boneco” e Judson Pratt [o 'ten. Mulqueen'] uma figura que, também ela, [com pequenos pormenores circunstancialmente reconfigurados e o rosto de Victor MacLaglen, por exemplo] viaja muitas vezes de filme de Ford para filme de Ford e ajuda tal como Hank Worden/'Laredo' [que aqui tem apenas um "cameo" simbólico] a compor não apenas uma panóplia extraordinariamente impressiva de caracteres mas o próprio tom profundamente matizado e sabiamente humanizado que caracteriza todo o verdadeiramente genial Cinema de John Ford…
Trata-se, com efeito, de um dos grandes Fords do 'período americano', uma obra de maturidade onde o realizador de “The Searchers” faz, diria eu, a sua “Rope” mas com demonstrável [infinitamente!] maior sucesso do que aquele que Hitchcock alcançou na sua famosa “stravaganza” e tour-de-force narrativo.
Fá-lo, digo eu, no sentido em que parece ter-se proposto dirigir uma espécie de “western”... sinfónico onde cola com uma mestria, de facto, soberba dois “andamentos” perfeitamente distintos: um, muito fordiano, largo, majestoso, onde prevalece sempre o, também ele, muito fordiano deserto do Arizona com a sua característica sugestão subliminar de esterilidade lunar e sempre impendente sugestão cumulativa ainda mais abstracta de vazio---um vazio onde os heróis têm invariavelmente de encontrar um caminho, fazendo sempre opções pessoais invariavelmente difíceis e, de um modo ou de outro, solitárias---um andamento largo, de expansão, “maestoso”, característico do ‘ciclo de cavalaria’; e um segundo "andamento" quase provocatoriamente teatral,num certo sentido, experimental mesmo, onde o “set” é concebido assumidamente como um palco e um palco 'expressionista', eu diria: “regado” com uma ousada iluminação 'de palco', onde uma angustiada [e angustiante!] implacável "reflexão" sobre o outro---uma exploração, uma desmontagem e uma impiedosa, exaustiva, "posta-em-questão" do anterior---é encenada com a interioridade e um espírito impiedosamente 'insurrecto' e até profanador que faz já antever o pós-género, a viragem metalinguística que, para alguns, está patente em “A Desaparecida” com o seu [anti] ‘herói’ profundamente torturado e a respectiva descida aos infernos da obsessão e da paranóia puras substituindo os caracteristicamente 'positivos'---verdadeiros---heróis de 'outros tempos'.
O que impressiona sobretudo em “Sergeant Rutledge” é, além da imensa seriedade com que o filme põe as questões [este é, de facto, um filme “sério”, de uma amargura e até de um mal-disfarçado cepticismo global que perturba e inquieta] exactamente essa natureza dialéctica que, a partir da forma, põe todo o género [e, sobretudo, os valores e a visão, em geral, aproblematicamente afirmativa que o definia enquanto 'poesia épica'] em questão e que faz com a forma, no fundo, à sua maneira---volto a dizer, num certo sentido, quasi-experimental---o que um Godard ou um Straub fizeram no seu próprio Cinema: utilizá-lo deliberada [mas, em caso algum, gratuita e muito menos irresponsavelmente] para interrogar a realidade e tornar a “revolução” do olhar cinematográfico [e não só desse, repito: não esqueçamos que dobrámos já a fronteira dos, sob muitos aspectos, questionadores e mesmo 'subversores' anos '60!...] uma coisa 'de episteme' uma coisa intestina e, a seu modo, visceral, íntima, profunda, algo que surge não como , no fundo, um mero... “adereço intelectivo ou cosmovisional” inorganicamente ‘político’ ou artificialmente exógeno, digamos assim, isto é, exterior ao objecto idealmente íntegro que é a obra mas, exactamente ao contrário, como uma componente ínsita do 'objecto orgânico e total', que é o filme.
É verdade que Hawks [em “Rio Bravo”, sob diversos aspectos, para mim, ainda a sua obra-prima], Zinnemann [no clássico “High Noon”] ou até um muito competente e nada despiciendo Delmer Daves em “3.10 to Yuma” [já nem falo no importantíssimo "Buffalo Bill" de William Wellman que era uma obra quase... militante, uma obra com causa e de "de causa", tudo menos a epopeia típica] fizeram “westerns” que, de algum modo, questionavam o género e os seus limites, na ambiência [opressivamente interior em "Rio Bravo" ou no filme de Daves com o qual a obra de Hawks tem evidentes analogias] como no “espírito” [profundamente amargo e desencantado] no caso do desencantadíssimo filme de Zinnemann.
Mas com a profundidade e o grau de seriedade pura de “Sergeant Rutledge” não penso que o tivessem feito, com a excepção indiscutível de “High Noon”, uma obra feita para denunciar a cobaedia e a intolerância como "política" e como [perversíssima!] "cultura" colectiva.
“Sergeant Rutledge” é um filme sobre a necessidade de ir além das aparências, de questionar os juízos [e, obviamente, os pré-juizos] humanos de todo o tipo.
É um filme sobre “o real instável”, que lança a inquietação como uma arma da consciência---um filme formalmente sempre estimulante e com coisas absolutamente espantosas em termos de arquitectura narrativa e visual como aquela surreal sequência de abertura envolvendo a chegada à estação que é um momento quase kafkiano, soberbamente encenado para sugerir subconscientemente as ideias de pesadelo, por um lado [aquilo, aquela estação deserta, aquela iluminação fantasmagórica, aquele súbito aparecimento de Rutledge, como uma emanação da própria noite, real e física---tudo aquilo, repito, é uma coisa obviamente onírica] e de descida aos infernos do escuridão e do insondável, por outro: da noite do espírito que o é também da humanidade e do humanismo, da tolerância, uma autêntica viagem aos “abismos da alma humana” que continua, filme fora, até à revelação ou "denoument" final, passando, em contraponto, pela luta do protagonista, o injustiçado sargento, vítima de uma leitura errada de diversas conponentes "avulsas" e exteriores, do real para afirmar, com uma dignidade absolutamente exemplar, admirável, a sua condição intrinsecamente Humana.
O elenco é magnífico, de uma solidez e de uma competência a toda a prova e vai de uma Constance Towers eficacíssima a um Jeffrey Hunter positivamente brilhante, fulgurante mesmo, por vezes, passando por um Woodie Strode que, apesar de Kubrick e de "Spartacus", nunca mais teve, que eu me lembre, uma oportunidade como aquela que Ford lhe ofereceu para ser realmente actor [Sylvester Stallone "cita-o", talvez inconscientemente, em "Rambo" de Ted Kotcheff, na patética sequência do "desabamento" da figura violenta que durante a maior parte do filme é John Rambo].
Por trás deste trio, brilha todo um elenco de tipos muito fordianos de que destaco os nomes de Willys Bouchet ['col. Otis Fosgate'] uma espécie de irmão gémeo do capitão dos rangers/reverendo de “The Searchers” onde era Ward Bond quem defendia [e de que maneira! Com que panache e brio!] o “boneco” e Judson Pratt [o 'ten. Mulqueen'] uma figura que, também ela, [com pequenos pormenores circunstancialmente reconfigurados e o rosto de Victor MacLaglen, por exemplo] viaja muitas vezes de filme de Ford para filme de Ford e ajuda tal como Hank Worden/'Laredo' [que aqui tem apenas um "cameo" simbólico] a compor não apenas uma panóplia extraordinariamente impressiva de caracteres mas o próprio tom profundamente matizado e sabiamente humanizado que caracteriza todo o verdadeiramente genial Cinema de John Ford…
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