Porque na "entrada" que imediatamente se segue a esta se recorda um dos mais interessantes "objectos" saídos da admirável "oficina" de Bud Boetticher, o excelente "Decision at Sundown" com Randolph Scott no protagonista, virá a propósito recordar alguns aspectos da personalidade daquele que foi seguramente um dos ícones do género: o próprio Scott.
Figura, como disse, incontornável e verdadeiramente emblemática do filme do Oeste, sobretudo de um filme do Oeste injustamente descartado, muitas vezes indiscriminadamente, como "de série B", Scott foi acima, de tudo e antes de mais [no sentido preciso em que, por outro exemplo, o foi Lee Van Cleef que os italianos resgataram da sombra em que sempre vagou no seu próprio país, fazendo dele uma das suas estrelas preferidas] um rosto: um rosto duro e poderosamente seguro de si, de sorriso sarcástico e resposta pronta, directa e seca, muito ao gosto e perfeitamente dentro do espírito francamente afirmativo [pelo menos, até aos anos '60 onde se inicia lenta mas irreversivelmente o declínio] do género.
Como actor, Scott não se terá propriamente levado muito a sério: é conhecido o episódio da recusa de um certo clube de golfe norte-americano que negava filiação a "judeus e actores" mas que acabaria por aceitar Scott entre os seus membros quando este, inicialmente barrado, segundo a "lenda", terá insistindo alegando que embora "desse de vez em quando uns murros que outros filmavam" ou coisa que o valha, actor não seria seguramente...
Poderia como Ford ter dito: "My name is Randolph Scott and I make westerns"...
Não os fez no sentido em que Ford os fez [nem os interpretou com o brilho de genialidade que muitos dos que Ford realizou atingiram] mas protagonizou-os e sempre ou quase sempre com uma impressionante regularidade [algo padronizada, é verdade, embora---no que não foi, aliás, assim tão diferente de outros intérpretes famosíssimos, dentro e fora do género, a começar por Wayne e pelo próprio Audie Murphy, para já não falar de Gary Cooper de quem Scott foi "duplo"...] e uma irrecusável eficácia geral que acabaram por fazer dele, como comecei por lembrar, uma figura icónica do género e um intérprete literalmente de culto entre os frequentadores dos cinemas de reprise mais genuinamente populares de Portugal, nos anos '50 e '60, do "Olympia" [onde estreou, por exemplo, "Decision At Sundown" de Boetticher, de que falo a seguir] ao "Salão Lisboa" e ao "Arco-Íris" [ou do "Arco Bandeira" ao tenebroso "Cine-Oriente" da General Roçadas!]
Algo irónica [porque algo contraditoriamente também] num actor que ficaria definitivamente ligado a uma imagem de cowboy duro cuja virilidade nunca parece estar em causa, a vida pessoal de Scott ficaria para sempre associada a uma longa embora não exclusiva relação afectiva com outro ícone absoluto---da elegância e da beleza masculinas, esses: Cary Grant, um actor fetiche de Hitchcock---e, para mim, de facto, o actor hitchcokiano arquetípico que Ray Milland, o que mais desse arquétipo ficcional e pessoal onde Grant atingiu as culminâncias se terá aproximado---nunca conseguiu realmente ser] com quem partilhou uma habitação onde ambos se fizeram, de resto, abundantemente fotografar em imagens que hoje são, à sua maneira, também elas, clássicas.
Curiosamente, o filme de que a seguir falo, "Decision At Sundown" de Bud Boetticher pode, de algum modo, ser directamente associado a esse aspecto de duplicidade, de "problemática especularidade", de eu oculto posto gradualmente em evidência ["exposed", um termo inglês muito esclarecedor] no jogo entre o Scott-intérprete e o homem, o indivíduo Randolph Scott---na medida em que, num certo sentido, como refiro na breve crítica que faço ao filme, todo ele, filme, é [e o seu grande mérito situa-se, a meu ver, aliás, exactamente aí] um pouco o minucioso desconstruir da persona exterior do homem determinado mas unidimensional, excessivamente linear que Scott foi em tantos dos "seus" filmes, figura para a qual as sequências iniciais do filme [quase ostensivamente!] apontam, revelando, por baixo dessa capa simplista a que se encontra topicamente associado o 'herói', o homem cheio de contradições, dilemas, fragilidades, dúvidas [quase?] existenciais e inseguranças---que é como quem diz: problematizando já o que antes era tipo e era certeza pessoal mas também cultu[r]al virtualmente absoluta.
É minha convicção pessoal que a leitura que Boetticher faz do ícone [e, em última instância, do próprio Scott... "público", icónico] ganha consideravelmente quando a re-abordagem deste é feita com esse conhecimento prévio que humaniza profundamente o actor para além do próprio papel e faz deste último uma espécie de espelho que é também, num certo sentido, um biombo que revela enquanto esconde e esconde ao revelar assim nos lembrando, afinal, essa verdade importantíssima [equacionar nas suas diversas formas é, aliás, tal como a vejo, missão indissociável da Arte, seja ela qual fort e sob que forma e/ou género se apresente] que é que coisa alguma na vida é, afinal, tão simples e linear como parece...
Uma excelente lição sobre a qual vale seguramente a pena meditar uns minutos ou umas horas só que seja: pelo menos aquelas que leva a ver este respeitabilíssimo filme saído do, sem dúvida, muito considerável "estaleiro" de um dos mais interessantes e seguros "operários do cinema" que conheço: Bud Boetticher...
[Na imagem: Scott e Cary Grant na intimidade]
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