quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"Enxerguemo-nos de uma Vez por Todas!"


Uma saudosa amiga minha já falecida tinha uma expressão que costumava usar em jeito de leit motiv [imposto, aliás, pelas próprias circunstâncias, como adiante se verá] nas várias conversas que volta-e-meia mantínhamos, eu e ela, a propósito desses colóquios “de sala de professores” [quem, por lá passou, conhece o género de conversa mas também---e sobretudo, para o que aqui importa—o sítio/instituição que é a sala-de-professores de uma escola secundária portuguesa…].

A expressão em causa era “Eles não se enxergam, Carlos Acabado! Eles não se enxergam!...”

Referia-se, desse modo, à verdadeira “cultura” de vaidosa mediania e, por via de regra, atrevida [in!] suficiência mental e cultu [r] al---intelectual---que, por via de regra, reina nesse antro de sombras e invariavelmente pequenas fatuidades [de facto, de vaidades invariavelmente “pequeninas”…] que é uma sala de professores de escola de província onde ambos, por mero imperativo burocrático, íamos regularmente parar…

Parece-me que ainda estou hoje a vê-la e a ouvi-la, à boa G. quando a provinciana presunção local transformada em “jeeps”, telemóveis e outros tão bizantinos quanto, tantas vezes, escandalosamente supérfluos [quando não, como no caso dos faraónicos jeeps, por exemplo, irresponsavelmente nocivos por contaminarem levianamente o ambiente e, de um modo mais geral, desencadearem ou, pelo menos, potenciarem insensatamente a louca espiral de consumismo a que inexplicavelmente tendemos a chamar “qualidade” de vida] luxos locais completamente desajustados das necessidades reais das pessoas e dos sítios---pessoas que aliás frequentemente só àqueles chegavam com sacrifício de coisas verdadeiramente essenciais essas; quando, dizia, essa absurda fatuidade e essa provinciana afectação transformadas em objectos [ou... totems"?] irrompia de todos os lados do nosso ponto de encontro de burocrática circunstância, lá me sussurrava a saudosa ex-colega e amiga, naquela melodiosa e quase melancólica modulação que dava a cada frase das que proferia---ela que conhecia como poucos as fraquezas e os podres que a rústica imodéstia tão ostensivamente gritada, desde logo, ao longo dos passeios da cidade em causa [muito pouco e muito mal!] camuflava: “Eles não se enxergam, Carlos Acabado! Eles não se enxergam!...”

Com o tempo e a observação, a reflexão, a frase da minha amiga G, transformou-se numa espécie de “lema” ou de “motto” pessoal que dou comigo, volta-e-meia, a repetir, para mim próprio ou para os poucos a quem hoje-por-hoje ainda me atrevo a confiar as solitárias lucubrações de eremita urbano e misantropo por opção... "de carreira" que me obstino, por escrúpulo intelectual e imperativo ético, em ser [muitas vezes, para as minhas cadelas que essas sabem guardar um segredo, respeitar uma confidência além de possuírem uma aparentemente inesgotável sabedoria natural de fazer inveja a muita gente…]; isso, sempre que um ou uma dos “tais” que parecem directamente saídos da “minha” velha sala-de-professores comigo, nas minhas solitárias errâncias pela cidade, acontece que se cruzam e eu não tenha tempo de mudar de passeio…

Sucede que, hoje, me ocorreu, num contexto razoavelmente diferente na forma, por nada menos do que duas vezes, a expressão de que acabei fazendo natural divisa: uma, a primeira, ao, percorrendo o meu nutrido arquivo de recortes de jornais e revistas, deparar no “Público” de 09.09.10 com um texto ["Todos diferentes e todos desiguais?"] de Esther Mucznik sobre [in] tolerância em que parte da abordagem do escandaloso “affaire” da expulsão recente dos ciganos de França para tecer algumas aparentemente pias reflexões sobre o importante tema.

Ora, o que eu digo [e por iso, a expressão me saltou instintivamente ao espírito no contexto] é que definitivamente não “se enxerga” uma pessoa que vendo o pauzinho no olho do vizinho, não consegue ver a viga ou a trave no seu próprio que, neste caso, é obviamente o surdo mas brutal genocídio do povo palestiniano pelo criminoso estado de coisas político e administrativo que é o Estado de Israel cuja desumana e indigna, civilizadamente indefensável, “causa”, volta-não-volta Mucznik vem a terreiro arguir, demonstrando, aliás, uma inquietante insensibilidade perante o sofrimento humano e dando, de uma forma mais geral, cabais provas de um imperdoável desprezo pelos valores do humanismo e da civilização.

Tão pouco se enxerga uma igreja católica [é o segundo caso que queria hoje aqui trazer-vos] que gasta milhões a “decorar-se” ou a aperaltar-se em Fátima [só há bem pouco foram anunciados mais dez milhões para um túnel de acesso à tal faraónica basílica que custou uma quantia que é um autêntico escândalo em tempo de crise e de sacrifício para tanta gente, católica ou não]; uma igreja completamente bloqueada e desacreditada pelos sucessivos casos que vêm, um após outro, demonstrar, de forma absolutamente inequívoca, o fracasso clamoroso da sua “politica sexual” e que, como se não fosse nada com ela, quer, agora, segundo o “Diário de Notícias” também este de 09.09.10 denotando uma “ingenuidade” que me deixa absolutamente perplexo e incrédulo, saber por que razão ou razões perdeu 500.000 [meio milhão!] fiéis em pouco mais de duas décadas…

Ora, eu não creio que gente como Esther Mucznik ou a astuta e lucrativa empresa multinacional em que se converteu já, sob inúmeros aspectos, o Vaticano e os seus franchisings locais “as deitem em saco roto” ou pequem, por outro lado, por candura ou ingenuidade.

Acho mesmo [e por isso escrevi este texto e por isso acho que devo divulgá-lo e propô-lo com toda a veemência ao debate] que, quando é já gente desta que, de repente, desata a, tão estranha quanto ostensivamente, não "se enxergar", é porque chegou seguramente o tempo de ser para nós demasiado perigoso que o não façamos nós próprios, por eles e por nós ao mesmo tempo: "todos nós como mundo", todos nós como "sociedade ética e moral"...


[Nas imagens: Crianças judias num lager nazi e crianças palestinianas num campo de refugiados, imagens extraídas, com a devida vénia, respectivamente de nazisexecutetheweak-dot-blogspot-dot-com e flickr]

Sem comentários: