É minha firme convicção há muito, de resto, já firmada que ocorre hoje, no âmbito da chamada Pedo-psicologia [ecoando, aliás, aquilo que acontece no conjunto das sociedades ocidentais, de um modo mais alargado] uma verdadeira revolução… coperniciana] sob muitos aspectos análoga à que, nas décadas de 60 e 70, teve lugar na Psiquiatria e que deu origem ao aparecimento de homens como R.D. Laing, o mais conhecido dos chamados “anti-psiquiatras”.
Senão, vejamos.
Inspirando-se [apressadamente] num, ainda por cima, muito mal compreendido e muito desajeitadamente recontextualizado Rousseau e integrando, por outro lado, os efeitos socialmente disruptivos e---também---existencialmente, a mais de um título, disfuncionais da adopção generalizada, pelas formas de capitalismo pós-industrial que começaram, na altura, a consolidar-se, envolvendo a adopção generalizada de novos paradigmas laborais que, assentes cada vez mais na efemerização e na pauperização dos padrões de trabalho, impactaram destrutivamente sobre os modelos mais tradicionais de família; inspirando-se, dizia, nuns e tentando, de passo, criar respostas teóricas---e institucionais!---tão operativas quanto possível para os outros, as sociedades ocidentais modernas e pós-modernas acabaram por operar em si mesmas aquilo a que chamo uma profunda [e tópica] des-ecologização dos modelos de [des] organização familiar e, a partir desta, social em sentido mais lato---modelos esses que, em meu entender, tinham tradicionalmente constituído “culturalizações” globalmente satisfatórias e, por isso, genericamente bem sucedidas, das formas de estruturação do mundo natural, do mundo biológico ou biomórfico, de onde foram, em meu entender, originalmente “copiadas” e transformadas em História, por um lado e em Cultura, por outro.
Estas “culturalizações” baseavam-se, diria eu, teoricamente, num paradigma natural: o dos modelos ou protótipos triunfantes [bio-triunfantes e filo-triunfantes] a confirmar os quais as espécies e os indivíduos dentro delas eram [ou, de um modo ou de outro, são] ciclicamente chamados.
Trata-se de um paradigma eminentemente centrípeto a partir do qual as ideias ou, como prefiro designá-las: as ideações culturais de “liberdade” e de “autoridade”, por exemplo, se transformam secundariamente num discurso lógico, num logos, portanto, provido de uma fundamentação reconhecível a que toda a arquitectura institucional, objectiva mas igualmente subjectiva, das sociedades, em geral, se encontrava em condições de fornecer respostas concretas que o concretizavam e operacionalizavam.Dito de outro modo, o modelo assenta na ideia de que a realidade vai encontrando formas particulares tópicas de lidar consigo própria e de se organizar no interior de si própria tendo em conta a interacção estrutural das diversas formas que a constituem [o que se chama em Biologia, por exemplo, a evolução natural] e que os indivíduos dentro de cada espécie nascem precisamente com o objectivo [o fundamento, repito] básicos e demonstráveis de replicar continuamente o modelo original, ganhando, em matéria social e cultu[r]al, direitos progressivamente à medida que vão vencendo etapas [em larga medida biológicas ou delas desmodeladas] no percurso em direcção ao ponto de coincidência possível com o arquétipo pré-definido para cada espécie.
O que eu pretendo dizer é o seguinte: nas sociedades a que chamo tradicionais [as que vigoraram grosso modo até à eclosão da I guerra mundial] os modelos organizacionais e de um modo mais específico as diversas representações culturais ou até simplesmente mentais no seu interior possuem ainda fundamentos concretos, reconhecíveis, mais ou menos aceites pelo conjunto da sociedade---fundamentos sobre os quais assenta, em última análise, todo o edifício da ordem [social, cultural, política, etc.]
A ideia de ‘liberdade’, por exemplo, possui um fundamento mais ou menos preciso mas também, em geral, demonstrável que é o saber, o conhecimento, a propriedade da chave ou chaves da realidade, um estatuto que, na natureza está reservado aos indivíduos adultos e na cultura aos velhos, aos mais experientes de cada comunidade ou de cada sociedade.
Refiro-me àquelas chaves que permitem abrir o interior da realidade à respectiva utilização concreta pelos indivíduos e pelas comunidades por eles formadas e, por conseguinte, possibilitam que a realidade continue, não se interrompa---a realidade tal como vinha “de trás” definida e “acondicionada” num sistema ou teoria do que designei por “protótipos triunfantes” e que eram aqui, sobretudo, de ordem abstracta, cultural, se quisermos, mas em caso algum gratuitos ou aleatórios.
Há, pois, toda uma ecologia da organização social e da respectiva forma de expressão global concreta que é a política sobre a qual assenta todo o edifício objectivo e subjectivo da ‘ordem’ onde este vai buscar o sentido que lhe é, em geral reconhecido.
Há, diria eu, uma dinâmica mais ou menos freudiana [edípica/electriana] de replicação modelar que confere aos “velhos” e, por conseguinte, à autoridade um papel não apenas central como, na realidade, nuclear e determinante.
Os “velhos”, com efeito, desempenham neste quadro duplicacional ou replicacional dinâmico de organização o papel do “Pai” e da “Mãe” freudianos configurando os laços estruturacionais que vão ligando os diversos “segmentos” ou “fragmentos” sincrónicos da História e da Ordem o fundamento mesmo da Autoridade enquanto figura cultu[r]al globalmente reconhecida e respeitada por todas essas partes ou fragmentos quer são os indivíduos exactamente enquanto indivíduos, obviamente e desde logo, e os indivíduos enquanto cidadãos mas que são também, em termos mais latos, as gerações a que eles pertencem.
Genericamente os mecanismos de ascensão social [ou de progressão profissional] reflectem este modelo de aproximação individual ou até grupal ao arquétipo que é como quem diz todos eles possuem este fundamento reconhecível no quadro de uma ecologia da habitação da História e da cultura ou culturas que se mantém em geral, como disse, estável até à eclosão da I Guerra.
Claro que os limites da de muitos desses mecanismos de ascensão social e/ou de progressão profissional na História são curtos e possuem adicionalmente valores de previsibilidade demasiado grandes para que essa mesma História possa “deslocar-se em si mesma”, digamos assim, com a espontaneidade e a autonomia que seriam desejáveis.
A verdade, porém [e é isto que pretendo aqui sublinhar de um modo muito particular], é que a Liberdade [e, com ela, a Autoridade] vão-se adquirindo de um modo que não é aleatório, que não é arbitrário mas que possui, ao invés, um fundamento que nem por ser em larga medida de natureza simbólica e convencional ou convencionada é menos discernível e aceitável pelo conjunto dos indivíduos da comunidade.
À medida que se adquire conhecimento [isto é, que se cumpre o percurso que é etário mas que conduz, também, através de um conjunto de mecanismos institucionais capacitados para outorgar reconhecimento, à apropriação legítima das chaves do real] vai-se cada um aproximando do nível de conhecimento, de saber e de autoridade dos “velhos” e vai assim e por isso conquistando o direito a possuir um lugar entre eles e análogo ao deles.
A Pedagogia enquanto representação cultural determinante reflecte esta dinâmica e, em geral, toda esta realidade: os alunos vão cumprindo um circuito iniciatório que os há-de conduzir à propriedade de um património de saber e, por conseguinte, de Autoridade que outrora era exclusivo dos mestres enquanto figuração modelar universalmente reconhecida.
É óbvio que a realidade é sempre um pouco [ou… um muito] diferente dos respectivos modelos teóricos e que aos jovens até por imperativo... freudiano específico nem sempre é fácil aceitarem pacificamente a autoridade.
A verdade, porém, é que todo o sistema enquanto armadura institucional está apto a fazer valer essa visão informante global, ou seja, dito de outro modo, a Autoridade simbológica, abstracta; a Autoridade enquanto “unidade antropológica e cultu[r]al” possui meios concretos [regulamentares, jurídicos, “simplesmente” morais ou intelectuais, etc.] de fazer-se acatar pelos indivíduos nos casos em que estes manifestem intenção de impor-lhe a sua própria vontade e esta seja, no todo ou em parte, contrária---exactamente porque a Autoridade é, enquanto tal, implícita e, como disse, explicitamente reconhecida pelo conjunto da sociedade.
Há, diria eu, falando numa linguagem mais ou menos, alquímica uma correlação sempre globalmente estável entre um macrocosmo representacional comum ao conjunto do corpus cultu[r]al e um microcosmo institucional e regulamentar que o operacionaliza e/ou operativiza, em geral, continuamente.
Só em casos excepcionais um Jesus pode apresentar-se no Templo para debater com os mestres em pé de igualdade---e o facto de o verdadeiro Jesus ter podido fazê-lo deriva exactamente da excepcionalidade deste e é comummente usado precisamente para demonstrá-la só se entendendo em toda a sua simbólica plenitude tendo em conta exactamente essa natureza de invulgaridade cultu[r]al e mental.
Ora, com a I Guerra Mundial todo este modo de conceber a realidade se altera profundamente num fenómeno de desintegração cultural que a II Guerra duas décadas depois irá aprofundar.
Há todo um conjunto de fundamentos convencionais para o real que se perdem e nunca mais hão-de reencontrar-se.
De facto, toda a realidade se solta de si própria podendo aquele que é essencialmente um fenómeno de dissociação e des-integração consciencial e cultural durante algum tempo ser visto como uma espécie de estádio supremo, como diria Lenine, de libertação.
Ora, é preciso que se entenda aqui que quando eu digo que o não é, não o faço de uma perspectiva moral ou politicamente conservadora---longe disso!---mas objectiva e objectivamente ecológica.
Num certo sentido filosófico [e filosoficamente argumentável] o fim do Ancien Régime ou “Ancienne Histoire” representou, de facto, o fim da possibilidade de a realidade se fundamentar continuamente em termos abstractos e de fazer decorrer desses fundamentos estáveis de realidade todo o edifício de uma ordem social e até política precisa: nem sempre [quase nunca, de facto!] económica, social e politicamente bem utilizada mas, a meu ver, sempre potencialmente fecunda.
Quando [voltando ao aspecto pedagógico que comecei por referir] todo este universo mental, cosmovisional, concepcional, se des-integra e desmorona são os próprios mecanismos de ascensão social tradicionais que ficam em causa.
A prazo [embora não apenas por isso] é toda uma ideia de escola e de educação baseada nessa outra ideação rosseauiana de um “contrato social” que fica condenada.
A Educação e a Escola como seu instrumento electivo serviu, numa fase muito precoce da tomada histórica de poder pela burguesia para que esta justificasse o seu direito de reclamar a propriedade deixada vaga pela aristocracia.
Nesta fase, a Educação serve claramente para promover e induzir, pôr em prática os mecanismos de ascensão económica e social: é ainda e sempre a velha “ideia natural” de que a propriedade do conhecimento porque permite manobrar o real; controlar o funcionamento do real confere a propriedade [e fundamenta a propriedade] política do poder.
Mas a Revolução que pôs fim ao Ancien Régime foi essencialmente uma revolução burguesa, não popular.
É certo que o povo intervém nela e está nela representado mas ele é na realidade apenas o instrumento de que a burguesia se serve para reforçar as suas próprias fileiras.
Quando ocupa a propriedade vaga, a burguesia trava de imediato as potencialidades ascensionais da Educação no plano histórico e político.
A partir daí, a Educação vai ainda durante um período considerável de tempo operar como um dispositivo de ascensão mas no quadro de uma ordem social e política precisa que ela já não ajuda a romper nem alterar ou subverter.
Seja como for, dentro dos limites precisos desse quadro e dessa ordem, ela ainda promove mas agora promove de um modo que confirma a ordem, não já de um modo revolucionário.
Promove operários a contramestres e até [no caso português] alguns “blue collars” a “white collars” mas para operarem no contexto de uma ordem vertical em que os “white” e os “blue” collars não se confundem em caso algum, enquanto classes ou expressão de classes.
Pode-se “fugir” da destes últimos para a dos “outros” situados… “mais acima” mas não está em causa alterar o que quer que seja na ordem de que ambos fazem parte integrante.
Por via da Educação, não.
Agora, é verdade que dentro desse quadro e enquanto dispositivo de ascensão, a Educação funciona.
A sua função histórica e política é, de resto, agora essencialmente essa, de confirmar e atestar a ordem: de demonstrá-la e justificá-la.
Perpetuá-la.
E as pessoas percebem isso: interiorizam isso e cumprem isso.
Também por isso, a autoridade do mestre [que é---chamemos-lhe assim: um «fragmento operativo funcionante» da da própria Escola enquanto instituição, enquanto figura cultu[r]al e política] é em geral acatada: porque ele personifica [e facilita, veicula, medeia!] a viagem ascensional possível no interior da ordem.
O que a pós-modernidade traz é, não apenas a inversão mas, na realidade, a subversão desta ordem e a consagração da não-ordem des-estruturada e des-fundamentada ou des-fundamentacional do real.
Agora, figuras teóricas ou ideações como “liberdade” [que, no contexto do modelo anterior tradicional operava como parte de uma verdadeira teoria geral da realidade que elas integravam e reprojectavam continuamente sobre o conjunto do real e especificamente sobre cada mecanismo de re/produção natural desse mesmo real] ou “autoridade” aparecem completamente desligadas do funcionamento natural destes mecanismos estabelecendo com eles relações que deixaram, para todos os efeitos, de ser abstractamente marcadas pela “necessidade” e pela indispensabilidade causal universal digamos assim.
Isto é, deixou de haver uma relação intrínseca e, ao mesmo tempo, necessária entre os percursos individuais e o cumprimento não apenas de um papel lógico por parte dos indivíduos dentro da “máquina da realidade” como entre esses percursos individuais e o cumprimento da própria realidade enquanto tal.
A liberdade e a autoridade perderam o seu fundamento sistémico e a transacção, o comércio, o trânsito de ambas dentro do social e até do económico e do político deixou de constituir um verdadeiro discurso ou um logos.
Por isso, eu digo que o que define a pós-modernidade, falando especificamente de liberdade [e/ou de autoridade, conceitos tantas vezes invocados e para já não falar de democracia] é a opacidade des/estrutural as/sistémica de todas elas ou, de uma forma mais geral, o desaparecimento, o eclipse nuclear, da ideia de necessidade.
Ora, era [e é!] exactamente a ideia de necessidade aquilo que permite tornar os sistemas e as sociedades realmente democráticos.
A necessidade constitui um verdadeiro pressuposto epistemológico de [passe o pleonasmo: autêntica] democracia.
É como se os mecanismos ascensionais [e, em geral, toda a máquina de “produção de realidade] obedecessem a códigos completamente distintos, diferentes, para cada indivíduo ou grupo de indivíduos---ou classes.
Na verdade, não é “como se”: é [de facto e cada vez mais de direito, também] exactamente assim.
As civilizações infantocratas como a nossa resultaram do esmagamento total dos mecanismos tradicionais de iniciação lógica dos indivíduos no poder.
Eles teorizam sobre os diversos modos de integrar o eclipse da necessidade fazendo deste um logos onde as estruturas não exactamente do acaso [ou não necessariamente do acaso] mas seguramente tão pouco da necessidade tal como filosoficamente a concebemos passaram já a constituir uma forma completamente autónoma extremamente singular e própria de necessidade.
No domínio específico da Pedagogia, o papel da Pedo-psicologia “do sistema” tem sido exactamente esse de tentar lidar a um nível ou num plano epistemológico com a não-necessidade utilizada [in] exactamente como uma forma completamente autónoma de necessidade, tentando arranjar maneiras operativas de reintegrar continuamente as disfunções [uma “autoridade” e/ou uma “liberdade” completamente decapitada dos respectivos fundamentos de episteme cultu[r]al] que o processo inevitavelmente arrasta consigo no próprio tecido de uma realidade que assim se vai continuamente construindo a partir das próprias, contínuas, corrupções e deformações.
O que eu pretendo dizer é o seguinte: nas sociedades a que chamo tradicionais [as que vigoraram grosso modo até à eclosão da I guerra mundial] os modelos organizacionais e de um modo mais específico as diversas representações culturais ou até simplesmente mentais no seu interior possuem ainda fundamentos concretos, reconhecíveis, mais ou menos aceites pelo conjunto da sociedade---fundamentos sobre os quais assenta, em última análise, todo o edifício da ordem [social, cultural, política, etc.]
A ideia de ‘liberdade’, por exemplo, possui um fundamento mais ou menos preciso mas também, em geral, demonstrável que é o saber, o conhecimento, a propriedade da chave ou chaves da realidade, um estatuto que, na natureza está reservado aos indivíduos adultos e na cultura aos velhos, aos mais experientes de cada comunidade ou de cada sociedade.
Refiro-me àquelas chaves que permitem abrir o interior da realidade à respectiva utilização concreta pelos indivíduos e pelas comunidades por eles formadas e, por conseguinte, possibilitam que a realidade continue, não se interrompa---a realidade tal como vinha “de trás” definida e “acondicionada” num sistema ou teoria do que designei por “protótipos triunfantes” e que eram aqui, sobretudo, de ordem abstracta, cultural, se quisermos, mas em caso algum gratuitos ou aleatórios.
Há, pois, toda uma ecologia da organização social e da respectiva forma de expressão global concreta que é a política sobre a qual assenta todo o edifício objectivo e subjectivo da ‘ordem’ onde este vai buscar o sentido que lhe é, em geral reconhecido.
Há, diria eu, uma dinâmica mais ou menos freudiana [edípica/electriana] de replicação modelar que confere aos “velhos” e, por conseguinte, à autoridade um papel não apenas central como, na realidade, nuclear e determinante.
Os “velhos”, com efeito, desempenham neste quadro duplicacional ou replicacional dinâmico de organização o papel do “Pai” e da “Mãe” freudianos configurando os laços estruturacionais que vão ligando os diversos “segmentos” ou “fragmentos” sincrónicos da História e da Ordem o fundamento mesmo da Autoridade enquanto figura cultu[r]al globalmente reconhecida e respeitada por todas essas partes ou fragmentos quer são os indivíduos exactamente enquanto indivíduos, obviamente e desde logo, e os indivíduos enquanto cidadãos mas que são também, em termos mais latos, as gerações a que eles pertencem.
Genericamente os mecanismos de ascensão social [ou de progressão profissional] reflectem este modelo de aproximação individual ou até grupal ao arquétipo que é como quem diz todos eles possuem este fundamento reconhecível no quadro de uma ecologia da habitação da História e da cultura ou culturas que se mantém em geral, como disse, estável até à eclosão da I Guerra.
Claro que os limites da de muitos desses mecanismos de ascensão social e/ou de progressão profissional na História são curtos e possuem adicionalmente valores de previsibilidade demasiado grandes para que essa mesma História possa “deslocar-se em si mesma”, digamos assim, com a espontaneidade e a autonomia que seriam desejáveis.
A verdade, porém [e é isto que pretendo aqui sublinhar de um modo muito particular], é que a Liberdade [e, com ela, a Autoridade] vão-se adquirindo de um modo que não é aleatório, que não é arbitrário mas que possui, ao invés, um fundamento que nem por ser em larga medida de natureza simbólica e convencional ou convencionada é menos discernível e aceitável pelo conjunto dos indivíduos da comunidade.
À medida que se adquire conhecimento [isto é, que se cumpre o percurso que é etário mas que conduz, também, através de um conjunto de mecanismos institucionais capacitados para outorgar reconhecimento, à apropriação legítima das chaves do real] vai-se cada um aproximando do nível de conhecimento, de saber e de autoridade dos “velhos” e vai assim e por isso conquistando o direito a possuir um lugar entre eles e análogo ao deles.
A Pedagogia enquanto representação cultural determinante reflecte esta dinâmica e, em geral, toda esta realidade: os alunos vão cumprindo um circuito iniciatório que os há-de conduzir à propriedade de um património de saber e, por conseguinte, de Autoridade que outrora era exclusivo dos mestres enquanto figuração modelar universalmente reconhecida.
É óbvio que a realidade é sempre um pouco [ou… um muito] diferente dos respectivos modelos teóricos e que aos jovens até por imperativo... freudiano específico nem sempre é fácil aceitarem pacificamente a autoridade.
A verdade, porém, é que todo o sistema enquanto armadura institucional está apto a fazer valer essa visão informante global, ou seja, dito de outro modo, a Autoridade simbológica, abstracta; a Autoridade enquanto “unidade antropológica e cultu[r]al” possui meios concretos [regulamentares, jurídicos, “simplesmente” morais ou intelectuais, etc.] de fazer-se acatar pelos indivíduos nos casos em que estes manifestem intenção de impor-lhe a sua própria vontade e esta seja, no todo ou em parte, contrária---exactamente porque a Autoridade é, enquanto tal, implícita e, como disse, explicitamente reconhecida pelo conjunto da sociedade.
Há, diria eu, falando numa linguagem mais ou menos, alquímica uma correlação sempre globalmente estável entre um macrocosmo representacional comum ao conjunto do corpus cultu[r]al e um microcosmo institucional e regulamentar que o operacionaliza e/ou operativiza, em geral, continuamente.
Só em casos excepcionais um Jesus pode apresentar-se no Templo para debater com os mestres em pé de igualdade---e o facto de o verdadeiro Jesus ter podido fazê-lo deriva exactamente da excepcionalidade deste e é comummente usado precisamente para demonstrá-la só se entendendo em toda a sua simbólica plenitude tendo em conta exactamente essa natureza de invulgaridade cultu[r]al e mental.
Ora, com a I Guerra Mundial todo este modo de conceber a realidade se altera profundamente num fenómeno de desintegração cultural que a II Guerra duas décadas depois irá aprofundar.
Há todo um conjunto de fundamentos convencionais para o real que se perdem e nunca mais hão-de reencontrar-se.
De facto, toda a realidade se solta de si própria podendo aquele que é essencialmente um fenómeno de dissociação e des-integração consciencial e cultural durante algum tempo ser visto como uma espécie de estádio supremo, como diria Lenine, de libertação.
Ora, é preciso que se entenda aqui que quando eu digo que o não é, não o faço de uma perspectiva moral ou politicamente conservadora---longe disso!---mas objectiva e objectivamente ecológica.
Num certo sentido filosófico [e filosoficamente argumentável] o fim do Ancien Régime ou “Ancienne Histoire” representou, de facto, o fim da possibilidade de a realidade se fundamentar continuamente em termos abstractos e de fazer decorrer desses fundamentos estáveis de realidade todo o edifício de uma ordem social e até política precisa: nem sempre [quase nunca, de facto!] económica, social e politicamente bem utilizada mas, a meu ver, sempre potencialmente fecunda.
Quando [voltando ao aspecto pedagógico que comecei por referir] todo este universo mental, cosmovisional, concepcional, se des-integra e desmorona são os próprios mecanismos de ascensão social tradicionais que ficam em causa.
A prazo [embora não apenas por isso] é toda uma ideia de escola e de educação baseada nessa outra ideação rosseauiana de um “contrato social” que fica condenada.
A Educação e a Escola como seu instrumento electivo serviu, numa fase muito precoce da tomada histórica de poder pela burguesia para que esta justificasse o seu direito de reclamar a propriedade deixada vaga pela aristocracia.
Nesta fase, a Educação serve claramente para promover e induzir, pôr em prática os mecanismos de ascensão económica e social: é ainda e sempre a velha “ideia natural” de que a propriedade do conhecimento porque permite manobrar o real; controlar o funcionamento do real confere a propriedade [e fundamenta a propriedade] política do poder.
Mas a Revolução que pôs fim ao Ancien Régime foi essencialmente uma revolução burguesa, não popular.
É certo que o povo intervém nela e está nela representado mas ele é na realidade apenas o instrumento de que a burguesia se serve para reforçar as suas próprias fileiras.
Quando ocupa a propriedade vaga, a burguesia trava de imediato as potencialidades ascensionais da Educação no plano histórico e político.
A partir daí, a Educação vai ainda durante um período considerável de tempo operar como um dispositivo de ascensão mas no quadro de uma ordem social e política precisa que ela já não ajuda a romper nem alterar ou subverter.
Seja como for, dentro dos limites precisos desse quadro e dessa ordem, ela ainda promove mas agora promove de um modo que confirma a ordem, não já de um modo revolucionário.
Promove operários a contramestres e até [no caso português] alguns “blue collars” a “white collars” mas para operarem no contexto de uma ordem vertical em que os “white” e os “blue” collars não se confundem em caso algum, enquanto classes ou expressão de classes.
Pode-se “fugir” da destes últimos para a dos “outros” situados… “mais acima” mas não está em causa alterar o que quer que seja na ordem de que ambos fazem parte integrante.
Por via da Educação, não.
Agora, é verdade que dentro desse quadro e enquanto dispositivo de ascensão, a Educação funciona.
A sua função histórica e política é, de resto, agora essencialmente essa, de confirmar e atestar a ordem: de demonstrá-la e justificá-la.
Perpetuá-la.
E as pessoas percebem isso: interiorizam isso e cumprem isso.
Também por isso, a autoridade do mestre [que é---chamemos-lhe assim: um «fragmento operativo funcionante» da da própria Escola enquanto instituição, enquanto figura cultu[r]al e política] é em geral acatada: porque ele personifica [e facilita, veicula, medeia!] a viagem ascensional possível no interior da ordem.
O que a pós-modernidade traz é, não apenas a inversão mas, na realidade, a subversão desta ordem e a consagração da não-ordem des-estruturada e des-fundamentada ou des-fundamentacional do real.
Agora, figuras teóricas ou ideações como “liberdade” [que, no contexto do modelo anterior tradicional operava como parte de uma verdadeira teoria geral da realidade que elas integravam e reprojectavam continuamente sobre o conjunto do real e especificamente sobre cada mecanismo de re/produção natural desse mesmo real] ou “autoridade” aparecem completamente desligadas do funcionamento natural destes mecanismos estabelecendo com eles relações que deixaram, para todos os efeitos, de ser abstractamente marcadas pela “necessidade” e pela indispensabilidade causal universal digamos assim.
Isto é, deixou de haver uma relação intrínseca e, ao mesmo tempo, necessária entre os percursos individuais e o cumprimento não apenas de um papel lógico por parte dos indivíduos dentro da “máquina da realidade” como entre esses percursos individuais e o cumprimento da própria realidade enquanto tal.
A liberdade e a autoridade perderam o seu fundamento sistémico e a transacção, o comércio, o trânsito de ambas dentro do social e até do económico e do político deixou de constituir um verdadeiro discurso ou um logos.
Por isso, eu digo que o que define a pós-modernidade, falando especificamente de liberdade [e/ou de autoridade, conceitos tantas vezes invocados e para já não falar de democracia] é a opacidade des/estrutural as/sistémica de todas elas ou, de uma forma mais geral, o desaparecimento, o eclipse nuclear, da ideia de necessidade.
Ora, era [e é!] exactamente a ideia de necessidade aquilo que permite tornar os sistemas e as sociedades realmente democráticos.
A necessidade constitui um verdadeiro pressuposto epistemológico de [passe o pleonasmo: autêntica] democracia.
É como se os mecanismos ascensionais [e, em geral, toda a máquina de “produção de realidade] obedecessem a códigos completamente distintos, diferentes, para cada indivíduo ou grupo de indivíduos---ou classes.
Na verdade, não é “como se”: é [de facto e cada vez mais de direito, também] exactamente assim.
As civilizações infantocratas como a nossa resultaram do esmagamento total dos mecanismos tradicionais de iniciação lógica dos indivíduos no poder.
Eles teorizam sobre os diversos modos de integrar o eclipse da necessidade fazendo deste um logos onde as estruturas não exactamente do acaso [ou não necessariamente do acaso] mas seguramente tão pouco da necessidade tal como filosoficamente a concebemos passaram já a constituir uma forma completamente autónoma extremamente singular e própria de necessidade.
No domínio específico da Pedagogia, o papel da Pedo-psicologia “do sistema” tem sido exactamente esse de tentar lidar a um nível ou num plano epistemológico com a não-necessidade utilizada [in] exactamente como uma forma completamente autónoma de necessidade, tentando arranjar maneiras operativas de reintegrar continuamente as disfunções [uma “autoridade” e/ou uma “liberdade” completamente decapitada dos respectivos fundamentos de episteme cultu[r]al] que o processo inevitavelmente arrasta consigo no próprio tecido de uma realidade que assim se vai continuamente construindo a partir das próprias, contínuas, corrupções e deformações.
[Imagem: worldwidephotos-dot-org]
Sem comentários:
Enviar um comentário