sábado, 16 de outubro de 2010

"«Decision At Sundown» de Bud Boetticher"


Pessoalmente, devo confessar, sempre tive por este 'cinematograficamente simpático' [e nada irrelevante!] artesão [mais um que os "Cahiers", desta feita, por intermédio de Bertrand Tavernier que o entrevistou em 1964, tiveram influência determinante no sentido de impô-lo definitivamente à atenção dos cinéfilos... "sérios", no quadro da "politique d' auteurisme" iniciada com o famoso texto de '54, da autoria de Truffaut...]; pessoalmente dizia, sempre tive por esse amável artesão do cinema que foi Bud Boetticher um afecto cinematográfico e uma estima intelectual [e até moral] que, devo desde já adiantar, não me recordo de ver "traídas"...

Grande parte de ambos esses sentimentos ou dessas impressões se deve [por que não revelá-lo, desde já?] a este considerável e, em boa medida, desconcertante "Decision At Sundown", recentemente "reposto" entre nós pelo Canal Hollywood.

Isto, sem dúvida, entre outras razões, porque o filme [estreado em Portugal no velho "Olympia" no ano que fechou a década de '50 do século passado: 1959] ilustra na perfeição um dos aspectos ou uma das componentes mais tópicas e intelectualmente mais fascinantes [porque também mais sérias, mais profundas] do cinema de Boetticher que o crítico João Lopes refere, com grande perspicácia e lucidez, aliás, como sendo o d"a exploração de formas mais ou menos ritualizadas de desafio à morte (no que qualquer desafio envolve também, paradoxalmente, de convivência) [...]".

Num certo sentido, com efeito, é possível ver "Decision At Sundown" basicamente como a crónica de um suicídio ritual, um trágico e complexo cerimonial de morte, vivido com uma solenidade e uma dignidade verdadeiramente admiráveis a que é, uma vez conhecidas as causas do mesmo, impossível ficar indiferente e considerar sem franca admiração e respeito.

Mas o que mais particularmente ainda sobressai no filme é, a meu ver, o modo quase... hitchcokiano escolhido por Boetticher [o argumento do filme é de Charles Lang, construido sobre uma novela de Vernon C. Fluharty] para encenar todo o desesperado e trágico exercício de absurdidade que é, no fundo, o longo cerimonial envolvendo o "suicídio" do herói, preenchido com uma tão caleidoscópica quanto implacável sucessão de episódios de queda de máscaras [e algumas amargas perdas de inocência!] mas também de estóica humanização de personagens que impressiona exactamente pela seriedade e pela amarga, desencantada, tomada de consciência da falta de um verdadeiro sentido para os actos humanos que toda essa maquinaria conceptual e narrativa envolve, pressupõe e explora narrativamente com uma eficiência técnica e artística global que chega a arrebatar e a que o rosto pétreo indissociável da 'persona cinematográfica' de Randolph Scott, impiedosamente des-construída passo a passo diante dos nossos olhos, está longe de ser alheio.

Um crítico de cinema lembrava numa obra, aliás, extremamente interessante [Antonio Weinrichter in "El Nuevo Cine Americano", col. «Lee y Discute» ed. zero zyx, s/d] o modo como os géneros em cinema tendem a acabar historicamente gerando obras mais ou menos terminais em que a reflexão cada vez mais crítica, distanciada ]e até, num certo sentido muito preciso, desencantada e mesmo não raro cínica] não só sobre a experiência, chamemos-lhe cultu[r]al ou cosmovisional primária original, que os animava e compunha como sobre o próprio género enquanto tal, enquanto [categoriação ou "categoriação" teorética e narracional] substitui a prática "simples" e directa do cânone original.

Tendo essa ideia presente, é possível também afirmar que "Decision At Sundown" é uma obra com a característica histórica curiosa de constituir já, na viragem para os "terríveis" anos 60 [os anos da dessacralização, simbólica e real, definitiva de tanta coisa até aí literalmente intocável!] uma reflexão sobre o western, sobre os móbeis que mais estavelmente o animavam como, noutro plano, admissivelmente [é a leitura que pessoalmente faço] sobre os fundamentos mesmos das acções humanas de uma forma mais geral, tal como os codificou simbologicamente o western, sobre [recuperando uma designação/conceptuação carlyleana] 'os heróis'---e especificamente, num âmbito mais estrita [mas não mais estreitamente...] cinematográfico, sobre o herói que foi Randolph Scott, o homem que segundo o mitário hollywodesco foi aceite num clube de golfe [a sua grande paixão] onde não aceitavam "actores ou judeus" porque era "um fulano que dava uns socos mas actor é que nunca" ou coisa parecida...

Scott [como John Wayne, por exemplo, em filmes como "Rooster Cogburn"] protagoniza aqui, embora num sentido distinto desse corporizado por Wayne no filme em causa] a desconstrução da sua personagem de sempre [sempre, desde que começou a fazer westerns e se converteu mesmo num ícone absoluto do género] e que aqui surge inesperadamente despida das grandes e inabaláveis certezas de outrora, elas mesmas bruscamente derrubadas, mortalmente atingidas no seu próprio fundamento, constituindo todo o filme, como disse, a partir desse impulso dessacralizador original todo um amargo [e inquietante!] exercício de perda de sentido para a acção---e para a morte, para a qual a personagem de Scott, um vingador sem vingança nem sentido para ela, acabaria por arrastar um amigo incondicional, personagem a cargo de 'Sam' [Noah Beery, Jr.] que a defende, como lhe foi obviamente pedido, num registo de "sidekick" onde lhe é, sobretudo, exigido que cruze a cena com sobriedade dando as 'deixas' para a parte de leão a cargo do [anti?] herói Scott/'Bart Allison'.

Ao contrário do percurso ficcional da personagem de 'Bart', num pouco "confortável" e [no melhor sentido!] atípico western onde muita gente sai a perder e o [apenas putativo] vencedor é uma entidade anónima, a população da cidade, o 'vilão', 'Tate Kimborough'/John Carroll que se apresenta inicialmente de uma forma parece ir tipificá-lo "a traço grosso" como tal [muito inteligente e muito eficaz o modo como Boetticher prepara a sua entrada em cena, caracterizando-o tão indirecta quanto subtilmente através de pequenos gestos, fugazes olhares, discretos sinais, depoimentos mais sugeridos do que efectivamente expressados de outras personagens] para, no fim, emergir, muito longe do "tipo" e do mero cliché, como um simples ser humano ["nada más que todo un hombre", como diria Unamuno ou "mensclich, menschlich, allzuviel menschlich", como expressaria, por seu turno, Goethe] isto é, como alguém que situando-se, é verdade, consideravelmente longe da perfeição ética ou individualmente moral, não é, afinal, nem melhor nem pior do que qualquer outro ser humano, colocado em idênticas circuntâncias: decididamente, para Boetticher, bons ou maus, o "tempo dos heróis" começa lentamente a desvanecer-se...

Se, com efeito, um Leone, por exemplo, deve ser visto como uma espécie de 'Verdi ou Rossini do western', um género que ele converte terminalmente em ópera e ballett e Rossen [num excelente "They Came To Cordura"] se aproxima da perspectiva existencialista da procura de um sentido integrador para os actos e, de um modo mais amplo, para a acção] humanos, Boetticher surge-nos aqui como o céptico que escava impiedosamente "por baixo" mesmo da heroicidade, em busca dos alicerces de uma condição mítica, exemplar ou até de uma consistência e de uma universalidade éticas assim como, no limite, metafísicas que a década seguinte iria continuar a descobrir, primeiro visivelmente empolgada e, por fim, talvez, irremediavelmente desencantada ter-se tornado completamente inacessível, que é como quem diz uma [insisto: talvez] absoluta impossibilidade.

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