sábado, 2 de outubro de 2010

"A Crise do 'Regime' Não é Uma Crise, É Um Estado E, Assim, Que Fazer?" [completamente por rever]


Esta entrada do "Quisto" é dedicada a Vasco Gonçalves, uma das pessoas mais honestas e mais tragicamente incompreendidas que conheço.


O que me proponho fazer nas linhas que imediatamente se seguem é a abordagem crítica de um conjunto de aspectos relacionados com a presente "crise" que gostaria de oferecer a mim mesmo como propostas para um debate alternativo verdadeiramente de Esquerda que me parece não só absolutamente imperativo como também urgente que a sociedade portuguesa faça sobre o tema.

Começo por uma questão muitas vezes levantada, sobretudo, entre as camadas mais jovens da população---aquelas que nasceram, cresceram e se formaram mentalmente já em plena vigência do actual modelo económico-político democapitalista e neo-liberal: aquela que Lenine deixou definitivamente consagrada num título célebre, clássico, absolutamente referencial, da sua fecundíssima obra escrita: "Que Fazer?"

Muitos jovens [ex-alunos, familiares, etc.] se me dirigem, com efeito, muitas vezes questionando-se sobre o que, num sistema falsa porque, na in/essência, apenas formalmente democrático como aquele em que vivemos hoje, é possível que cada um deles faça para ajudar a corrigir aspectos disfuncionais absolutamente cruciais das suas próprias vidas, marcadas, como se sabe, pela fragilidade e efemeridade dos modelos de emprego, pela descontinuidade e irregularidade dos rendimentos que, dessa circunstância e dessa situação, inevitavelmente derivam e, em termos mais genéricos, pelas múltiplas formas de instabilidade e insegurança a todos os níveis que a nova [e terrivelmente desumana] realidade do emprego trouxe às suas existências.

Ora, Portugal, o Portugal de hoje, é um país particularmente beneficiado por uma experiência história, social e política recente, curta mas potencialmente fecundíssima, que foi a revolução social inacabada que teve lugar entre nós num período que vai de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975 quando, como costumo dizer, o regime que vigorou em Portugal depois da morte de Salazar "recolou" finalmente a si próprio, depois do "incómodo sistémico" representado pelo, de algum modo imprevisto, período de "laboratório social" 'apertado' entre aquelas estreitas fronteiras de pouco mais de um ano.

O grande projecto, o grande sonho da "esquerda sistémica" ou "esquerda funcional" sedeada no que veio a ser chamado o partido "Socialista" [apressadamente nascido, a meu ver, em larga medida, por encomenda das forças políticas pró-ocidentais que lutavam vivamente na sombra para melhor se posicionaram a fim de herdarem os despojos económicos da da ditadura, infiltrando em Portugal os seus agentes e corretores quando perceberam que, da longa e lenta agonia desta, se iria muito em breve passar ao estado em que teria de ser forçosamente declarado oficial e objectivamente o óbito da mesma]; o grande sonho, dizia da "esquerda sistémica" passava por prolongar ulteriormente o marcelismo [ganhar tempo para o "fascismo moderno e democrático"] e i-lo em seguida gradualmente "melhorando", começando por "decorá-lo atractivamente" [foi esse, aliás, na in/essência o papel político de uma tal C.E.U.D. ainda na década de 60] com uma "oposição oficial", uma espécie de "sidekick" político-formal, dócil e cúmplice, que fosse dando as "deixas" para que o regime pudesse ir exibindo publicamente, concretizadas nuns quantos factos políticos da sua iniciativa [e obviamente da sua conveniência: eleições, abertura dos limites do que podia ser tolerado em matéria de discurso político, atenuação da acção da censura e da actuação da repressão política, etc.] as "excelentes intenções" em matéria económica e política.

De facto, o 'regime' não está [nem está a sua "ala esquerda" reformadora da brevíssima C.E.U.D. à SEDES e aos "liberais"] interessado em reformar alterarndo significativamente as relações de produção dentro do siastema.

O que interessa ao 'regime', à infra-estrutura económico-financeira que viu nele [como viram os diversos capitalismos europeus, em particular o alemão e o italiano, no início do século XX] a sua expressão político-instrumental perfeita; o que interessa ao regime, dizia, é abrir as vias de acesso ao mercado não reformar este nem as profundas disfuncionalidades que este traz intrinsecamente consigo.

No fundo, o que interessa às forças políticas da situação como às da sua "oposição funcional" é, pois, exactamente o contrário de uma revolução: em vez de extinguir a origem das desigualdades, pretende "democratizá-las" alargando-as.

Ou seja: as forças reformistas do regime querem ver-se livres das formas de estreitamento corporativo firmemente institucionalizado que limitava e deformava irremediavelmente [fechando-lhe nuclearmente o acesso] o mercado, projectando para tanto, repito, a "democratização" [a "democratização" controlada, a "democratização significada", "educada"] como disse, do acesso aos 'meios de produção' do próprio capital.

É uma "revolução" dentro do regime [e é como tal que os chamados "ultras" a percebem] mas uma revolução puramente horizontal, uma "revolução" [mais uma vez:] limitadamente funcional e de natureza estrita e estreitamente sistémica relativamente ao modelo económico, não à "forma social e política" do País.

No fundo, apenas ou sobretudo, uma mutação [é possivelmente o termo exacto!] técnica não uma verdadeira revolução política---que é algo social e politicamente vertical e espontâneo no duplo sentido em que abrange todas as camadas da sociedade e em que a política não é usada apenas e só para "argumentar" e "justificar" um modelo económico-financeiro eu diria "solidamente atarrachado" à base infra-estrutural do regime que deve, como pressuposto absoluto, permanecer nuclearmente inalterável.

Não por acaso, ainda não há muito Otelo Saraiva de Carvalho falava numa entrevista [extremamente mal conduzida, aliás] de uma reunião de Melo Antunes na Alemanha com Gerald Ford que, segundo Otelo, pôs a Melo Antunes "os pontos nos ii" relativamente à necessidade de travar de vez a revolução social de onde, segundo Otelo, poderia ter saído o que eu próprio entendo ser um "Portugal económico, social e político ,real e completamente, novo" e referia como, tendo sido forçado a deixar a docência a que regressara na sequência do triunfo do 25 de Abril e enviado para a Cova da Moura onde funcionava o comando do movimento, aí foi recebido pelo oficial que "fazia a ligação" do novo status quo "com a C.I.A."...

É por isso que a revolução social que se segue ao golpe depois de apanhar parte do regime deposto de surpresa, apanha, de um modo no fundo muito semelhante a "reserva democratizadora", as forças liberalizantes, do mesmo igualmente de surpresa.

A começar pela polícia política que se deixa prender e se sente bruscamente traída quando aquelas forças, incapazes no imediato de assegurar o controlo total do movimento social e político permitem que o que tinha todo o aspecto de ser um aprisionamento simbólico na Cadeia Penitenciária de Lisboa se transformasse numa coisa que se parecia inquietantemente com uma verdadeira prisão.

Uma prisão de onde, todavia, os pides escapam, como se sabe, acabam por esacapar em massa numa fuga à época célebre, aliás amplamente pré-anunciada e que causaria revolta em toda a Esquerda...

Durante muito tempo, porém, o movimento que visava apenas e realmente a "reforma", o "aggiornamento" do modelo económico viu-se obrigado a pactuar com as forças populares, potencialmente revolucionárias essas, que tinham vindo, de forma caótica, para a rua e, sempre tumultuosa e desordenadamente, lutavam por alterações profundas no sistema económico e político.

Ora, é aí, nesse período a que chamo de "laboratório social" que se encontra, a meu ver, a resposta àquela pergunta que comecei por adiantar: o tal "que fazer?" que faz lembrar Lenine e outros modelos de revolução.

Porque é aí que reside, a meu ver, na linha do que pensaram homens [e mulheres!] como Otelo e o próprio Vasco Gonçalves; como pensaram os sectores avançados da Utopia [Zeca Afonso, José Mário Branco] e do M.F.A. que lhe tentou, como pôde e soube, dar expressão expressão institucionalizda; é aí que, dizia, reside o fermento do que se chamou a "via portuguesa para o socialismo".

Aí na organização da sociedade a partir da base se encontra, em meu entender, o embrião de um modelo de sociedade de democracia mista ou potenciada [i.e. de uma democracia representativa em que o tempo decisional próprio da democracia directa ainda não sofreu o impacto dissociacional disfuncionante e a deflecção que leva à des-integração material do tempo democrático num tempo realmente decisional que permanece sempre nas mãos de uma elite política que delibera em tempo real e num segundo tempo inactivamente "moral" que é cometido aos cidadão e se dissolve objectualmente na "opinião" ou no mero juizo "moral" sem expressão decisional efectiva.

Este último dispõe do poder, não de escolher livremente as formas do próprio futuro, como na definição mais menos clássica de democracia mas do não-poder de escolher as do seu próprio passado na medida em que o que acaba sempre por estar em causa é... desvotar os políticos cuja gestão do sistema [operar como uma espécie de broker ou corretor-cum-gabinete de relações públicas da infra-estrutura económica é, na realidade, a missão "histórica" da "política funcional" para o democapitalismo---ideia do "estado almocreve" substituindo historicamente a do Estado-nação ou "Estado consciência" moderno]; desvotar, dizia, os políticos e os partidos cuja gestão social e política da "coisa económica" desagradou [como está sempre a acontecer, de resto e por razões que me parecem óbvias!] à sociedade organizada em eleitorado.

Organizada apenas em eleitorado.

Ora, o que se propõe é que a sociedade se organize em muito mais do que em mero eleitorado cujos modos de intervenção na vida da Cidade obedecem a padrões precisos muito vagos, pouco subastantivos porque pouco activos, demasiado espaçados no tempo o que torna aquelas formas de intervenção, como disse, in/essencialmente imateriais e, sob inúmeros aspectos, efectivamente irrelevantes.

A lição das 'comissões' que em '74 polarizaram vivamente grande parte da ânsia natural de intervenção política por parte da sociedade portuguesa, que eram uma alternativa viva ao modelo partidocrático que viria a consagrar-se, em larga medida, "encomendado" de fora e que poderia, ter dado origem a uma verdadeira democracia em tempo [quase] real ou tão real quanto possível [com os limites dessa realidade a serem encontrados fecundamente na acção e na experimentação social e política efectivas e alargadas a partir da base]; essa lição, dizia, perdeu-se por completo na passagem [aliás, muito rápida determinada pelo triunfo do golpe de Novembro de '75] das formas de democraticidade directa [à época, ainda em fase muito embrionária e laboratorial e, por conseguinte, ainda muito "verdes" e, portanto, demasiado frágeis para poderem reagir com sucesso à brutal pressão golpista de direita] para o colete de forças do 'cinto partidocrático' por meio do qual a tutela da democracia foi devolvida aos centros de poder que já antes de facto o detinham: o grande capital financeiro interno e externo.

Ora, esse não se compagina, por definição, com a democracia política que é como quem diz com as formas de organização económica, social e especificamente política em que o contrato social firmado pelo conjunto das classes assenta nuclearmente na cedência pelo conjunto da sociedade do exercício do poder que é o que distingue a democracia da mera "demomorfia" ou "democracia funcional" em que aquilo que é cedidio [e ciclicamente sufragado em eleições é, na realidade, o próprio poder.

As comissões, todavia [regressando a elas que são o elemento chave da minha própria ideia de democracia] permitiam recolocar toda arquitectura do sistema de organização social na "ordem correcta", ou seja, com a Política no centro determinando de forma necessária as formas que a Economia deve tomar no seu interior.

Elas permitiam, de facto, "abrir a História" à sociedade e ao futuro na medida em que o sistema político não seria mais caracterizado por possuir uma Economia, i.e. um modelo económico preciso, com um revestimento politiforme móvel e instituições gravitando em órbitas variáveis em redor desse núcleo e todo um poder político mais ou menos... avençadamente cedido a fim precisamente de evitar "democraticamente" que "as coisas" se alterassem mas, ao invés, uma sociedade que poderia autonomamente determinar que modelo de economia melhor poderia servir os objectivos traçados a partir daquela Política.

Quando, portanto, me questionam sobre o que fazer para evitar que essa espécie de apodrecimento consistente ocorrida nos ideiais democráticos trazidos para a História pelo período de "revolução social" de '74 se agrave ainda mais e que ele possa, pelo contrário, ser revertido e corrigido, eu respondo sem hesitações: retomando a anterior dinâmica de 'comissões' de sector [do que chamo "sindicatos cidadãos" e, de ua forma e num plano mais latos, "sindicalismo civil"] constituido em interlocutor institucionalizado e sistémico do poder, invertendo desse modo os mecanismos e as dinâmicas da "democracia funcional" vigente que vão num sentido a meu ver excessivamente normativo, meramente sancionatório e amti-democraticamente "descensional".

De facto, em vez de uma verdadeira democracia, aquilo que hoje existe em Portugal aproxima-se muito mais de um modelo de autocracia referendária por meio da qual, insisto, o modelo económico encontra formas de legitimar-se ciclicamente impedindo de passo que "outras Histórias" possam, na prática, vir concorrer com a sua própria ideia de História que, em última instância, se limita a ser usar genericamente uma aparência globalmente acreditável de política para fixá-la, à História, no Tempo e ao próprio Tempo.

Um exemplo das potencialidades saneadoras da dinâmica de comissões e do sindicalismo cidadão no que respeita ao resgate das nossas formas de organização colectiva futura [seriamente ameaçadas pelos bloquieios agudos do modo de produção ainda vigente] é-nos dado, no contexto da crise actual, por alguns aspectos da política fiscal e de [des] ordenamento territorial do poder.

É evidente que, com o aumento do IVA em Portugal [potenciando pulsões já existentes de desertificação induzidas, por exemplo, pelo encerramento de escolas e serviços de saúde] o esvaziamento do interior do País trazido, desde logo, pela fuga dos fluxos comerciais para Espanha e pelos picos de desemprego a ela directamente associados vai-se intensificar e mesmo agravar de forma drástica e muito dificilmente recuperável, mesmo a admitir que a "crise" tem não apenas fim à vista como fim tout court---o que, a mim, pessoalmente, devo dizer, se me afigura francamente... problemático e isto para se optimista...

Não percebo mesmo como ninguém, entre os comercianmtes da faixa fronteiriça, do Algarve ao Minho, não antecipou o que parece, todavia, ser um fim, uma morte, anunciados, como no título famoso de Garcia Márquez trazida pelas medidas recentes ditas "de combate à crise".

Teria sido [e, de qualquer modo, ainda seria] um ensejo ideal para se criar uma comissão de comerciantes do interior do País capaz de dar voz às aspirações do sector, constituir-se interlocutor do governo, propor soluções alternativas, operar até como germe de uma mais do que necessária descentralização e reordenação do país a fazer, talvez, um dia, por um governo sério e a sério.

Teria sido um ensejo ideal para isso ou para que uma comissão já existente tivesse podido intervir desencadeando até, talvez, em hipótese, outras comissões [de utentes dos serviços de saúde, de jovens recém-formados e por aí adiante] e todas elas actuando em sintonia e em sinergia criassem, por sua vez, as bases para uma regionalização, chamemos-lhe: realmente orgânica porque verdadeiramente participada e protagonizada, a partir de baixo, pelo conjunto da sociedade portuguesa.

Não percebo, de facto, e inquieta-me que circunstância gravíssimas como aquelas que vivemos não estimulem as pessoas à organização de base e ao investimento cívico numa reformulação não apenas substancial como, de facto, substantiva dos modelos de organização social e política nacionais.

Em '74 o estímulo para o que não passou de um esboço de "revolução" no âmbito do que chamo os "paradigmas estáveis e tópicos de societação" deveu-se à acção dos sectores progressistas do M.F.A.

Em 2010 não poderia e, sobretudo, não deveria um esforlço em tudo idêntico de renovação endógena e orgânica da sociedade portuguesa pertencer à acção dos partidos de esquerda?

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