quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"Ainda a «Crise» Actual: Algumas Ideias Pessoais"


Uma coisa que, do meu ponto de vista pessoal, se faz dramaticamente sentir hoje-por-hoje em Portugal [algo que era tradicionalmente assegurado pela Esquerda e, de uma forma menos estável---e/ou mais variável, menos centralizada---pelas elites situadas fora do sistema] é a ausência de uma 'circunstância crítica', de alguma maneira, ínsita aos próprios modos, estrita [e, por isso, também cada vez mais estreitamente] técnicos, designadamente económicos, de pensar---e representar---em termos concretos, a realidade.

Dou um exemplo que não é, aliás, especificamente português [mas que entre nós se tem tradicionalmente feito sentir, ao longo da História, de um modo tão determinante que acabou por torná-lo um verdadeiro traço cultural distintivo] que é o de um consistente fenómeno de afastamento [de "gap"] [as] sistémico das vanguardas intelectuais e críticas relativamente ao conjunto da sociedade as quais, por esse motivo, muito mais do que expressão mental e crítica sublimada [ou sublimacional] dessa mesma sociedade, operaram, em países como, por exemplo, a França, de facto e para muitos efeitos, como um verdadeiro contraponto [e até, no limite, uma oposição] inteleccional e cosmovisional assumindo a forma de uma consciência que era tanto crítica como, naturalmente, tendo por base justamente essa natureza crítica, também ética.

Uma das características da Pós-modernidade consiste, exactamente ao contrário, a meu ver, na integração gradual das elites com a inevitável consequência da perca dessa independência crítica e ética que as tornava imprescindíveis à humanização contínua de um modelo cultural [e de um modo-de-produção a ele subjacente] que, por definição, não era [nem é!] naturalmente humanista.

Foi esse fenómeno, a seu modo tópico, da assimilação das elites pelo próprio sistema que permitiu, a meu ver, o estabelecimento de modelos de "desenvolvimento" [de todo um paradigma e/ou uma ideia estável de "civilização"] completamente desumanizados dos quais a consciência [ética e crítica] de si está ausente ou pode estar ausente sem que o funcionamento daqueles modelos se altere seja em que aspecto ou medida real for.

Quando falamos hoje de dentro do sistema de "Progresso", com efeito, falamos de uma realidade que, sendo de natureza des/estrutural e limitadamentemente técnica aplicada [especificamente económica devido à natureza do 'regime' em que são produzidos esse "progresso" e essa ideia de "progresso"] se distingue, exactamente, sobretudo pela disfuncionalidade que, na in/essência, a caracteriza e que ela projecta sobre toda a cultura que de si se vai continuamente gerando.

A disfuncionalidade do que chamo o paradigma de economicidade histórica «inversional» manifesta-se [e pode demonstrar-se!] em termos teóricos mas, de igual modo, práticos, no modo como os movimentos operados na componente motora "crescimento" ecoam de forma completamente descentral naqueles que, a jusante dela, são aplicados à componente instrumental "emprego", por exemplo---componente essa essencial porque é dela que sai secundariamente o mercado que permite ter toda a máquina da sociedade capitalista a operar com um mínimo de estabilidade e de normalidade.

É justamente porque a componente "emprego" é vista como algo completamente autónomo e ancilar relativamente à "essência" do sistema [que é "re/produzir continuamente capital"] e des/estrutural e nuclearmente desfuncionada a partir do próprio modo político de integrar a técnica [o saber, o conhecimento na forma de inovação tecnológica] no modelo, que todo o sistema ficou, a breve trecho, sem soluções [pelo menos sem soluções... "canónicas", convencionais i.e. que não implicassem alterações de substância no regime de propriedade].

A própria ideia de uma "satisfação" [e mesmo de uma "felicidade"] autonomamente técnicas do modelo-em-si operando, mais ainda do que na condição [apesar de tudo, indirecta] de estímulo, com o papel, pelo contrário, directo e angular, verticial---com o papel motor---de móbil acabou por conduzir à aberração teorética, hoje pacificamente aceite pelo conjunto dos teóricos do 'regime', de ser não só possível como, sobretudo, necessário que essa "felicidade técnica" se instale estavelmente no interior do sistema, segundo um tempo [uma "temporicidade" mais ou menos estrutural] própria e que o sistema se sinta "tecnicamente saciado e feliz" para que as sociedades que em seu redor e em função dele gravitam possam finalmente começar a funcionar.

De facto, é possível dizer que o que define filosoficamente o sistema é a esquizofrenia ou des-integração esquizóide nuclear dos módulos que o compõem [crescimento técnico e retorno social na forma de emprego e, por conseguinte, de salários] encontrando-se no seu interior completamente desarticulados, dissociados, excepto numa perspectiva indirectamente causal ou causante, como digo as unidades que o compõem, a ponto de uma delas [a comunidade na forma de trabalho ou capital variável, como lhe chamou Marx] a dado passo, tender progressivamente a tornar-se [ou ter-se já mesmo, em larga medida, tornado, excrescencial e dispensável.

Este carácter dissociacional e inorgânico do sistema [particularmente agudo no seu estádio actual de 'tecno-capitalismo'] fica ulteriormente demonstrado no modo como ele, enquanto "cultura", de várias formas institucionalizada, opera na sua ideia de indivíduo e cidadão um segundo corte gnoseológico tão completo quanto aquele de que acabamos de falar.

De facto, é toda a ecologia do próprio modo-de-produção que fica cada vez mais nuclearmente em causa quando o conceito de indivíduo, de pessoa e, como disse, cidadão, se cinde completa ou quase completamente em dois, ficando, de um lado, o indivíduo-produtor que deixou de ter utilidade [e, por conseguinte, lugar] dentro do sistema [o capital variável dando, naturalmente, lugar ao capital fixo].

Isto, enquanto que, por outro lado, esse mesmo indivíduo renasce ou é repescado [tem de nascer e ser repescado] para o sistema na forma de mercado, sem o qual, como vimos, naturalmente este---o sistema---está fatalmente condenado a implodir, tornando-se por definição im-possível.

Ora, esse tem sido o papel conservador---o papel sistémico---do chamado 'Estado social'---o de recapitalizar secundariamente o mercado, mantendo, desse modo, a ficção de um organicidade, ao menos teórica e... filosófica da ideia de pessoa que na prática o funcionamento normal do sistema havia, como vimos, cindido.

Quando ouvimos dizer que uma futura "retoma" vai levar ainda algum tempo [um lapso indefinido de tempo] a repercutir na entidade secundária e inorgânica "emprego" duas questões, tendo enm vista o que até aqui escrevi, se levantam, de imediato.

Primeira [e esta é claramente uma questão que, pela sua gravidade e previsível estabilidade sistémica, chamemos-lhe assim, me leva a admitir estarmos hoje-por-hoje, perante uma autêntica "esquina" ou "vértice civilizacional" muito mais até do que simplesmente político]: como vai o sistema repor o que poderíamos designar por 'níveis funcionantes' de "mercado", desarticulando, ao mesmo tempo, na prática, mas, como quer a direita... 'pura' que se anuncia como herdeira do poder em Portugal, também na "teoria", todo o edifício do Estado "social" que era o que alimentava realmente o sistema?

Segunda, decorrente directamente da anterior: até quando vai ser possível a esse mesmo sistema manter como pressuposto teorético [e, depois, prático] essencial o carácter "sacro" da propriedade que ele até aqui pôde atribuir-lhe precisamente porque era o conjunto da sociedade por meio do Estado "social" que "comprava" a si própria o mercado para o "oferecer" em seguida ao sistema, isentando, assim, na realidade, este último de custear a si próprio?...


[Imagem da Net de proveniência irreconstituível]

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