quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"Uma Falsa Ideia de Progresso"


Muitas vezes penso que aquilo que verdadeiramente nos distingue dos animais é a percepção moral: os animais possuem-na naturalmente…

O carácter epistemologicamente credível, efectivamente fundamentado, de um sistema moral operando como autêntica teoria da realidade e saber genuíno é algo que, de um modo geral, não faz, com efeito, parte do arsenal representacional tópico dos humanos, em geral.

Quero eu dizer: alguns homens de excepção ao longo da História foram possuindo imagens próprias [em larga medida, ulteriormente trabalhadas e educadas, por cada um deles, à sua maneira pessoal de modo a configurarem no seu conjunto um verdadeiro conhecimento, uma filosofia] dessa espécie de percepção ecoforme da realidade que faz da experiência sensível e intelectual da mesma um acto [ou, em termos genéricos, uma acticidade] verdadeiramente necessários porque em autêntica consonância com as leis que regem o funcionamento [em tese, pelo menos] natural da realidade e permitem que a ela nos conservemos ligados por traços de, nesse caso, pois, genuína necessidade---no mínimo dos mínimos, crítica.

As religiões, por outro lado, como desmodelações puramente arbitrárias de um conjunto de conhecimentos originais que o que entendo constituir o fundo de expansão/dissipação material subjacente aos mecanismos básicos de geração de realidade deformou até tornar completamente irreconhecível e, sobretudo, completamente inútil como meio de representar o real; as religiões, por outro lado, dizia, deixaram já há muito de valer de forma efectiva como conhecimento possível, antes se interpondo, isso sim, frequentemente, de modo completamente disfuncional e disfuncionante entre o homem, a consciência humana e o seu apetite natural pela geração de imagens estáveis, tópicas e epistemologicamente acreditáveis do real.

As religiões e o cristianismo em particular introduziram entre os nossos modos característicos de conceber ou de inteligir abstractamente o real deformações persistentes [tão persistentes que passaram, a operar como uma componente implícita significadora do próprio olhar e mesmo, no limite, como o próprio olhar enquanto tal] que contaminaram não apenas a visão que num plano mais comum, mais laico, dele fazemos mas inclusive aquela ou aquelas que as ciências, em geral, são capazes de produzir.

A ideia de que o real possui um horizonte exterior a si e, por conseguinte, em geral pressupostamente um sentido e um significado finais, por exemplo, ainda quando não explicitamente expressa [ou mesmo quando à outrance negada] por exemplo, é um dos casos tópicos dessa contaminação que nos faz, por exemplo, partir implicitamente muitas vezes [demasiadas vezes!] do princípio de que o “progresso puro” e não-crítico [e/ou não-moral num sentido intelectualmente independente e nobre]; o progresso como um objecto natural situado não apenas fora do próprio real---numa espécie de futuro providencial imanente senão mesmo, para muitos efeitos e sob diversos aspectos, transcendente---mas situado, também, fora do alcance da consciência crítica e dispensando-a, em última instância, em resultado da sua suposta inevitabilidade objectual.

Tenho para mim que grande parte da des-ordem em que se situam as formas contemporâneas de “progresso”, técnico mas não só, provem daí desse “finalismo pressuposto” que infectou muitas das nossas formulações científicas e faz com que, fiados numa suposta natureza providencial do “progresso” que herdámos ou “transcrevemos” mais ou menos instintivamente do domínio formal do “sagrado”, utilizemos, muitas vezes, os objectos ou produtos do progresso como se este não tivesse de ser construído e, depois, escrutinado, passo a passo, como qualquer criação humana inevitavelmente falível e possuidora de efeitos secundários eventual ou potencialmente prejudiciais e aqueles produtos estivessem ao invés providencialmente isentos de riscos construcionais de todo o tipo oferecidos ao presente que os viu nascer por um qualquer futuro pré-significado que viesse, por seu turno, santificá-los, significá-los e, desse modo, e isentar o respectivo uso de qualquer mácula ou risco.

Temos hoje, como recordo noutro ponto, formas extremamente perigosas de agnosia e iliteracia que se prendem nuclearmente com esse modo à sua maneira pré-significado e arbitrariamente transcendentalizado de conceber o mundo que vê cada presente não como uma construção completamente original de si mesmo mas como uma mensagem imanente vinda de um futuro preexistente que muito mais do que ser construído com todos os riscos inerentes a uma construção tem, na realidade, de ser apenas descoberto, atribuindo-se desse modo à consciência o estatuto de uma grande memória de coisas que na realidade enquanto projecto de imanência ou mesmo, insisto, de transcendência não apenas já aconteceram como tinham necessária e, de algum modo, inevitavelmente de acontecer.


[Na imagem: Joan Mirò, "Hand Catching a Bird"]

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