sexta-feira, 22 de outubro de 2010

"Frei Papinha em Guantánamo"


Durante a minha adolescência, trabalhou em casa dos meus pais uma velha empregada doméstica brasileira, testemunha de Jeová, a quem pareciam sempre poucos os ensejos para troçar do seu grande inimigo, o catolicismo romano.

Depois de ter renunciado a converter-me à sua peculiar+issima confissão [o que terá acontecido, para sua grande decepção, para aí da segunda ou terceira vez em que, sem muitas subtilezas ou subterfúgios, aliás, praticamente no mesmo instante, o intentou e fracassou] contentou-se em exercitar a sua óbvia [e tenaz!] embirração com as práticas e, em geral, com os ideais do detestado papismo, recorrendo a um aparentemente ilimitado anedotário anticlerical, disciplina em que era pouco menos do que mestra...

Ora, uma das “estórias” que sempre se comprazia em [re] contar incluía um padre voraz, guloso [“como todos os padres”: tinha, como poderão constatar uma ideia verdadeiramente picaresca e muito… camiliana do clero vaticano] que queria, como explicava, “comer carne na Quaresma", esclarecendo, de imediato: "que os padres não podem”.

Impedido, pois, por imposição do seu rigoroso regimento ritual de fazê-lo, recorre, ainda assim, pávido e expedito, o sôfrego clérigo a um engenhoso expediente… semântico, muito próprio, aliás---comentava em excurso a impiedosa narradora---da sua particular raça, perita em farisaicos sofismas e cultismos...
Trazida para a mesa fumegante e suculenta peça de carne, faz-se ele, ao mesmo tempo, munir de água por si próprio ali mesmo expeditamente santificada, num ápice rebaptiza escrupulosamente o fervente e pecaminoso acém em inocente bacalhau [que, por ser peixe, é alimento piedoso e por isso desafrontadamente permitido] entrando, de imediato, a saborear a substancial vitualha, agora expeditamente miraculada, por obra e graça de capciosa semântica clerical, em aquático e por isso santíssimo cebo, admitido, como disse [e como sublinhava, deliciada com a truculência marota do sarcasmo, a velha Josefa] sem salvaguardas ou reténs, na austera quadra litúrgica.

Ocorreu-me muito viva e nítida a memória deste episódio de juventude ao ler num pela idade já venerável “Público” da minha bem suprida e impenitentemente caótica hemeroteca pessoal, o de 31.07.09, o curto texto noticioso intitulado “Sai em Agosto um dos detidos mais jovens de Guantánamo”.

Sucede que, informa o jornal, o preso em causa teria nada mais, nada menos do que 12 anos [!!] na altura em que foi detido e encarcerado na sinistra prisão norte-americana de Guantánamo.

Os advogados do jovem, de nome Mohammed Jawad, comprometem a sua palavra declarando formalmente serem os 12 anos a idade do preso .

O Pentágono, todavia, recorrendo ao que o jornal refere como “análises à sua estrutura óssea” jura a pés juntos que o rapaz tinha, não 12 mas 18 anos na altura da detenção.

Suponho eu, que não sou jurista, que entre gente séria e civilizada, na dúvida, se aplica um clássico princípio jurídico que diz “in dubio pro reo”, ou seja, na incerteza, dá-se o benefício da dúvida ao réu.

Dão-no os tribunais normais, pelos vistos.

Os outros, os políticos, os que escapam confessadamente, por imposição de normas de natureza inequivocamente politica, espúrias e dificilmente explicáveis numa sociedade onde vigoram---em teoria, pelo menos---o democrático Direito e a democrática [e civilizada!] separação de poderes; os que foram criados a outrance com o fundamento expresso e, na realidade, único de se integrarem dócil e conformadamente numa inflexível “luta antiterrorista” global---esses, ao que aqui se comprova, fazem como o padre da "minha" estória: rebaptizam, de forma... desembaraçada [tão desembaraçada, pelo menos, como o voraz padralhão do conto fez ao cobiçado e irresistido acém!] um menor de… maior; de maior no limite mesmo da imputabilidade [oh! Supremo e providencial Deus das coincidências!...”] passando por cima do “baptismo” uma demão de… ciência aplicada [que dá, como se calcula, um jeitão nestes “casos”…] e pronto, como o padre glutão, está servida a ceia [neste caso, jurídica e civilizacional] e, meus senhores, agora é… só comer!...


[Imagem ilustrativa extraída, com a devida vénia, de blogs-dot-myspace-dot-com]

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