segunda-feira, 4 de outubro de 2010

"As Eleições no Brasil Vistas de Portugal"


Contrariamente ao que pensava o meu ex-colega Cardigos [um professor da "velha escola" com quem trabalhei na minha passagem por uma escola de Lisboa e com quem mantinha uma prática tertuliana diária de sala de professores, ao sabor dos "furos" de um horário copiosamente "decorado" com eles...] não há muitas coisas que me liguem afectivamente [de modo particular, pelo menos] à América do Sul e especificamente ao Brasil.

O modo como em Portugal se foi consistentemente deturpando a imagem da antiga colónia, permitindo que a manipulação... "de vidro" praticada, sobretudo, pelas chamadas "telenovelas" [que, a partir de "Gabriela", literalmente submergiram o País televisivo, devolvendo-nos todo o impacto da o/pressão colonial de outrora, agora insidiosamente... "culturalizada"] admitidamente, muito contribuiu no meu espírito, para que a proximidade intelectual que Homens e Obras como a de Jorge Amado, Drummond de Andrade ou, noutro plano, de Carlos Marighella ou ainda de um Homem que, de modo especial, admiro, Augusto Boal, tinham ajudado a induzir, se fosse gradualmente desfazendo, ao longo dos tempos, a breve trecho, transformada num imenso enfado e mesmo [tenho honestamente de reconhecê-lo!] numa franca hostilidade que esse mesmo tempo e a prática televisiva recular tornaram, por fim, natural e quase... instintiva.

Em resultado da manipulação em causa, todas as clamorosas contradições de uma... "rica sociedade de pobres" viriam, como por encanto, a desaparecer do alcance do nosso olhar crítico e da nossa [onde a houvesse----mas essa é outra questão...] consciência social e política ou até simplesmente humanitária, perversamente substituidas pelos problemas e... probleminhas de uma classe média completamente "insular" e atípica, obcecada com o sonho de tornar-se numa outra, "alta"---sob diversos aspectos, não menos atípica, aliás---numa sociedade, ainda hoje, 'de coronéis e Odoricos Paraguaçús'; onde as multidões sem terra lutam há anos por ver reconhecido o direito básico à própria sobrevivência material e onde a selva amazónica ["com os índios dentro"...] é regularmente dilapidada por fazendeiros sem coração e sem o mínimo de escrúpulos e de percepção das calamitosas consequências da sua gula e da sua avidez; onde nas cidades, a polícia militar [!] "resolve" os problemas sociais executando mais ou menos regularmente franjas consideráveis da criminalidade e onde as classes económica, social e até politicamente marginalizadas de onde esta, de forma regular---e natural---consistentemente emerge, "resolve" os seus organizando a sua própria exclusão económica e social em gangues que são cada vez mais "partidos" políticos sem o saberem...

O insidioso poder da manipulação que assim converteu ["ad usum... pacoviorum", se me é permitido o sarcástico macarrónico...] uma nação com tantas riquezas como contradições num falso paraíso de "resorts" e "bungalows" que são o sonho caracteristicamente estouvado de uma vida para uma classe média nacional portuguesa «alegremente endividada [e, agora, cada vez mais... triunfalmente falida»...] fez de mim um observador atento, sim [o Brasil é, de facto, hoje-por-hoje, tenhamos nós disso ou não consciência] uma potência... em potência a cuja evolução social e política é impossível permanecer muito tempo alheio] mas prudentemente distanciado e, até, até mais ver, em termos afectivos... "cautelarmente desafectado".

É nesse espírito, pois, que venho vendo o consulado do inquestionavelmente hábil Lula como presidente da grande nação sul-americana e, neste preciso momento em que escrevo, as eleições brasileiras.

... No contexto das quais, devo, aliás, muito claramente dizer que, muito mais do que a previsível vitória final da candidata "lulista" e reformista [em meu entender, sobretudo, do ponto de vista da própria sociedade brasileira---que é o que está imediatamente em causa nestas eleições, como é óbvio---uma espécie de "boa condenação" ou de "condenação" mais ou menos fatal ao bem---ao bem possível, em todo o caso]; muito mais do que isso, dizia, foram os números obtidos pela candidata "marginal" Marina Silva que, até ao momento, mais me impressionaram e entusiasmaram.

Por vários motivos, aliás.

O primeiro, diria eu, tem exactamente que ver com esse estatuto de marginalidade que atrás lhe aponto.

Da minha perspectiva pessoal e falando, agora, sobretudo, como português, é, com efeito, cada vez mais vital que os eleitorados [de facto, as sociedades que através deles se exprimem politicamente] deixem definitivamente de estar reféns de uma espécie de pulsão, de... "tenaz não-institucional" [porém, em termos práticos, já, sob inúmeros aspectos, institucionalizada] dual, artificialmente induzida nos mecanismos de "respiração eleitoral" regular, por quem já há muito percebeu que o velho método de interrogatório policial do "polícia bom" e do "polícia mau" pode, com grandes hipóteses de sucesso, ser aplicado à política...

Fazem-no [têm-no consistentemente feito] os norte-americanos com o chamado partido Republicano e o Democrático e não menos classicamente os ingleses com os Trabalhistas [hoje muito mais... Trapalhistas do que propriamente Trabalhistas mas enfim...]; imitaram-nos docilmente os sempre dóceis imitadores que são os portugueses [a quem um tal Frank Shakespeare chegou, em tempos a deslocar-se expressamente dos E.U.A. a Portugal para "ensinar "bipartidismo aplicado", durante um dos pouco... "lembráveis"---"to say the least"...---consulados soaristas, salvo erro...]; fazem-no aqui ao lado os espanhóis e um pouco mais adiante os franceses, fazem-no os italianos [que recoseram ou recozinharam---como se sabe, para nada, mas enfim!...---a velha "geometria" do poder partidário saída do pós-guerra; fazem-no um pouco por todo o mundo ocidental os seguidores do modelo democapitalista que, aliás, assenta precisamente, em larga medida, nesse dispositivo de controlo e tutela "transparentes" da "respiração política" básica das sociedades onde impera.

A verdade, porém, é que, inclusive nos Estados Unidos [que, para alguns, são ainda, por uma razão qualquer mais ou menos---muito!---vagamente tocquevilliana, o modelo último da democracia] sinais recorrentes de ruptura ou, no mínimo de fuga à influência dominante desta "pinça institucional de facto" que tem vindo a assegurar na prática a imutabilidade do percurso político das sociedades onde vigora e que as tem, a meu ver, impedido de se renovarem e encetarem autonomamente processos de auto-saneamento e revitalização espontânea [fenómeno, aliás, curiosíssimo num mundo conceptiva e até cosmovisionalmente moldado pela ideia de liberdade do "mercado"...]

Ora, a possibilidade de um candidato "maverick" vir, no caso brasileiro, com a relativamente imprevista Marina Silva, impactar significativamente contra essa i/lógica ou essas i/lógicas de poder dual que, em si mesmas, queiramo-lo ou não, servem, em abstracto, para reconfirmar ulteriormente a "normalidade" de funcionamento do sistema económico-politico, tal como ele vem há já décadas existindo, possui, a meu ver, a promissora virtualidade de poder configurar ao menos a sugestão de um tendencial, mais ou menos próximo-futuro, "arejamento conceptual e cosmovisional" de todo o modo de expressão política do 'regime' e finalmente a hipótese de mudanças significantes [a meu ver, essenciais, cruciais mesmo e dificilmente adiáveis por muito mais tempo!] no seu interior.

Ponto um, pois.

O ponto dois, tem que ver com questões mais concretas ou com aspectos mais concretos dessa mesma questão do futuro próximo do 'sistema'.

Num país como o Brasil, com efeito, onde se situa grande parte da floresta amazónica---que é, como ninguém ignorará, um património [entre outras coisas] biológico e ambiental verdadeiramente crucial para a sustentabilidade da vida do planeta, é absolutamente fundamental a consolidação de um pensamento e de uma consciência ambientalistas que possam por sua vez, ganhar expressão política e passar a determinar ulteriormente soluções igualmente políticas muito concretas, juntando-se tessitariamente à dinâmica específica de crescimento económico e técnico que o Brasil está demonstravelmente a atravessar.

Pode, aliás, não estar em si mesmo vazio de significado o facto de Marina Silva ter saído das fileiras do partido pelo qual se candidata a grande favorita Roussef, isto no sentido em que é admissível que o seu aparecimento, a sua emergência, configure, por parte de certos sectores menos facilmente negocistas dentro das fileiras da esquerda social institucional brasileira representada pelo "lulismo", a necessidade sentida de reforçar a componente anti- ou assistémica do movimento funcionando como uma espécie de reserva ou expressão possível de um escrúpulo intelectual e até especificamente ético [ambiental mas não só] afirmando-se de modo autónomo relativamente ao paradigma dominante ou mesmo oficial, chamemos-lhe assim.

Finalmente [ponto três] porque, como Roussef, Marina é mulher---com a "vantagem/agravante" de ser negra [como Obama, por exemplo---Obaba que, queiramo-lo ou não, gostemos ou não do que ele significa realmente no plano político e geo-político, tem o seu significado, que, em meu entender, nem sequer é assim tão pouco como tudo isso, bem pelo contrário].

Em países e sociedades [e paradigmas de "economicidade"!] gerados a partir de modelos expressamente escravocratas como os Estados Unidos e o Brasil, [tudo] isso tem forçosamente de querer dizer, hoje-por-hoje, qualquer coisa...

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