sábado, 30 de outubro de 2010

"Um Magistrado-Poeta ou Onde é Qu'isto Vai Parar?!"..."


É corrente falar-se no estado verdadeiramente lastimável a que chegou a Justiça [e o exercício da Justiça] num "Portugal... funcional" de hoje, caracterizado, desde logo, por uma gritante [e já quase... orgânica] incapacidade histórica para "se pagar a si mesmo"---o que tem, de resto, levado os sucessivos governos a acalentarem o projecto comum de "vender o Estado à iniciativa privada", com a subtilíssima [e meramente formal] "diferença" de uns pretenderem sempre parecer não fazê-lo, convertendo, todavia, outros, assumidamente, o negócio em causa num "projecto" [suposta ou instrumentalmente] político em si mesmo.

De um modo ou de outro, todos os dias nos chegam novas [e algumas delas bem eloquentes, bem esclarecedoras!] provas do estado verdadeiramente calamitoso a que chegou, com efeito, a [porém, central, essencialíssima!] componente jurídica do que chamo o «Estado consciência» moderno.
Dou um [absolutamente espantoso e em mais de um aspecto, inimaginável exemplo desse mesmo estado calamitoso a que a conduziram à-vez-à-vez "pê-ésses" e "pê-ésse-dês" extraído do "Correio da Manhã" de 20.10.10 [Cf. "Poemas com seios dão queixa de juíza" de Paulo Pinto Mascarenhas].

É o caso de um magistrado do Ministério Público, o Procurador-Adjunto do Tribunal de Trabalho José Vaz Correia ter, no dia 07 de Outubro, acordado tarde por... falha mecânica [do respectivo despertador não do magistrado, como é óbvio]---um "lapso evidente", diz ele, acrescentando, ainda, que foi, também, filho "único", uma vez que parece que, apesar do comprometedor lapso que atrasou uma sessão do Tribunal onde ia decorrer o julgamento em que o Procurador-Adjunto participava, a coisa é, em geral, fiável.

Bom, mas os vinte minutos de atraso para o "caso" que aqui vos trago hoje, até foram o menos: o mais foram as... poéticas explicações do magistrado que, como todos iremos poder ver, nos transportam, de facto, para o reino do surreal e do fantástico puro.

A páginas tantas, no decurso destas, terá efectivamente o atrasado Dr. Correia, declarado [e cito] que "escreveu várias quadras dentro do Metro, como aliás o faz frequentemente".

Mais: para que não ficassem dúvidas da verdade do que afirmava [não se percebe muito bem e o jornal também não explica a relação entre o... metropolitano e subterrâneo estro do Dr. Correia e o respectivo atraso à sessão propriamente dito...] terá mesmo, segundo o jornal, acrescentado ter já "solicitado há instantes ao seu funcionário que lhe trouxesse o casaco do gabinete pelo que passou a tirar do bolso e a ler algumas das quadras que havia escrito".

E, se até aqui, pode depreender-se que a coisa não ultrapassou o nível do caricato e do mero patusco, a partir daqui foi... a loucura-loucura, como diria um conhecido apresentador de televisão.

Ou seja: se até aqui foi "apenas" [adivinha-se sem dificuldade! Aliás, a juiza terá mesmo alegado "sentir-se indisposta" e interrompido a sessão por alguns instantes] constrangedora, causadora de incomodidade [sendo, isso sim, sempre reveladora!] daqui em diante a coisa tornou-se francamente inquietante.

E basta ler o resultado dos... subtérreos esforços literários do magistrado-poeta republicados pelo jornal para se ter uma ideia, então aí, inequívoca [e compreensivelmente muito preocupante, como digo] do estado a que chegou a Justiça entre nós e do nível verdadeiramente escandaloso de cultura e, em geral, de postura agora, sobretudo, intelectual de algumas das pessoas a quem cabe a respectiva administração, que é como quem diz, da sorte de quem por lá, por esta ou por aquela razão, com culpa ou sem culpa, tem de passar, sobretudo, se o fizer na qualidade de arguido ou réu cuja liberdade pode depender [também] do grau de esclarecimento e do grau de cultura e discernimento de quem lá está a administrar aquela Justiça.

Basta ler, disse eu.

Pois aqui estão, então, os poemas e que cada um faça sobre eles [e sobre tudo o que quiser em volta deles e directa ou mesmo indirectamente relacionado com eles...] o julgamento que lhe parecer apropriado---e justo.

Os comboios já vão cheios
muitos se levantam cedo, [comboiozinhos madrugadores, heim?...]
nas mulheres aprecio os seios,
mas têm outro enredo

Entram uns, saem outros
é o frenesim de manhã,
levam-se encontrões
levo eu e mulher minha [?]

Adoro levantar cedo [não parece!]
e ter a obrigação cumprida
dos falsos tenho medo
são o pior que há na vida

O ser humano é excepção
em qualidade dos animais,
quanto mais desumanos são
mais se parecem com esses tais

E, por fim, o triunfal coroamento da magistratal inspiração que é esta quadra absolutamente extraordinária, seja qual for o ponto de vista por que se aborde---e se aprecie:

São sete e pouco da manhã
viajo de Metro para o trabalho,
fi-lo ontem, farei-o [sic] amanhã
só sou aquilo que valho

Ora relativamente àquilo que este senhor magistrado vale, como diria um inglês, a partir daqui, "your guess is as good as mine".

Não tenho elementos que me permitam [em tese, pelo menos] pôr substantiva e categoricamente em dúvida que, do ponto de vista especificamente técnico, se trate de um excelente, de um competentíssimo profissional do foro que, uma vez na vida chegou tarde ao trabalho e, por uma razão qualquer "se passou de todo" na altura de justificar perante a juíza o atraso em questão.

Vamos mesmo dar de barato que o é!

É, pronto---embora a juiza pareça ter um ponto de vista, pelo menos, um nadinha distinto uma vez que apresentou queixa formal do procurador "para efeitos disciplinares" [não se fica a saber exactamente por quê, se por causa do atraso, se por aquela de ele "apreciar seios"---o que, dito em tribunal, ganha efectivamente um peso singular, muito próprio, convenhamos...; se por causa do "enredo" que o lábil e fecundo criador poético atribui às mulheres, inclusive, seguramente, a "mulher sua"...]---pronto! Competente o homem é mas... não seria bom que melhorasse um bocadinho, ao menos, o português?

"Faria-lhe" um ror de bem, atrevo-me eu a dizer---sobretudo se persistir naquela de acumular a jurisprudência com o [inspiradísimo, como se vê!] estro literário...

... além de que, como jurista que tem de arguir e que usa a língua como ferramente básica de trabalho, "daria-lhe", com certeza, não só um jeitão como à imagem de homem de leis culto e douto, "ficaria-lhe" seguramente muito bem...

Sem comentários: