Devo dizer que sempre achei que a menoridade intelectual nas suas múltiplas formas [e a TVI é, indiscutivelmente, não só das mais comuns, das mais divulgadas como também das monetariamente mais bem sucedidas nessa 'nobre' tarefa a que, desde a sua fundação, devotadamente se vem entregando de multiplicar o seu persistente primarismo e a sua distintiva falta de gosto, espalhando-os generosamente pelos quatro cantos do País...]; devo, pois, dizer que sempre considerei que a menoridade de espírito vai invariavelmente de braço dado com a hipocrisia e o preconceito que, entre indigentes culturais substitui, como se sabe, com evidentes vantagens em termos de quietação crítica e "repouso cultural", o esclarecimento e a lucidez, que é como quem diz: a inteligência, mesmo em doses mínimas.
Ora, o anúncio da Sra. Pinheiro vem, em meu entender, demonstrar como é selectiva a moralidade dos medíocres: pode-se, em televisão, fazer praticamente tudo em matéria do populismo mais primário, da inutilidade mais escandalosa e até ofensiva, do voyeurismo mais saloio, mais soez, mais farisaico e globalmente mais indigno---tudo isso passa, tudo isso é "entertainment" legítimo, tudo isso é "televisão pop", tudo isso é horário nobre, tudo isso é bom e respeitável negócio de milhões...
Pode-se, especificamente, penetrar na intimidade de um lumpen mental e cívico muitas vezes no limite da marginalidade pura e simples [e isto, a avaliar pelo que vem continuamente a público sobre a gente que frequenta o programa, é já ser optimista e generoso, ham?...]; um lumpen que vive dessa singularíssima profissão muito caracteristicamente... "pós-moderna" que consiste em abrir a braguilha em público [as diversas braguilhas de que é composta a privacidade de qualquer pessoa minima e realmente respeitável]; pode-se aceitar receber diariamente em nossa casa gente que faz do indecoroso desbraguilhamento individual e colectivo uma próspera indústria e até uma verdadeira 'cultura' de... massas]; pode-se, dizia eu fazer tudo isso [e ganhar dinheiro com isso!] mas...
...mas a pilinha e o pipi são o limite: não o céu, como no cliché---a pilinha e o pipi!
Sucede que eu sempre defendi que existe [e está muito divulgada entre nós, aliás e desde há muito!] uma anti-natural e genericamente repulsiva "pornografia obsessional da pudicícia" que o é também da auto-repressão e do farisaismo potencialmente psicopatológico, impendentemente patogénico, gerador tendencial de quadros neurotiformes [senão mesmo abertamente neuróticos] cuja evidência enquanto fenómeno social [e especificamente criminal] se tornou ultimamente, aliás, por razões que não vale a pena aqui voltar a especificar, absolutamente inescondível.
Esta cultura da elisão, do "raffoulement" ou do "empochement" completamente arbitrários---da "fetichização negativa" "por... sinédoque" de partes do corpo---confundindo estas com o respectivo uso tem, em meu entender, tudo a ver com o modo como a visão judaico-cristã do mundo, em geral, opera, no plano da formulação de representações tópicas da moral que acabaram por permear para ["that eventually oozed into"] a tradição moral formal ou teoricamente laica ocidental, especificamente católica.
Trata-se de um quadro moral estruturalmente autoritário onde se verifica muito claramente uma dissociação nuclear particularmente disfuncional entre a experiência concreta e os mecanismos básicos de construção de cultura, individual e colectiva.
Ou seja: esta visão essencialmente contra-reformista da realidade moral integra extremamente mal a ideia de autonomia dos indivíduos no que diz respeito à construção e à organização abstracta [mas também concreta!] da propria realidade---pelo que começa logo por cercear-lhe à partida, "roubando-lhe" o corpo, a possibilidade de eles, indivíduos, fazerem verdadeiras opções independentes e, por isso, efectivamente morais nesse domínio.
É uma visão que, em meu entender, não se pode dissociar, como digo, do modo como a tradição judaico-cristã vê topicamente 'o Livro', 'a Palavra', por oposição ao modo como vê ambos a tradição luterana ou calvinista divergente, ao menos como forma ou como «arquitectura genérica do olhar cognitivo e representacional», digamos assim.
Para a tradição autoritária contra-reformista, com efeito, o corpo e o pecado não podem, em última análise, dissociar-se um do outro porque se, teorética e epistemologicamente, puderem ser apresentados como entidades [ao menos tética e dialecticamente] autónomas, existe de imediato, ipso facto, a possibilidade instantaneamente percebida e representada como "disfuncional" de o indivíduo, por um lado, se reapropriar do seu próprio corpo na forma de uma ideia própria deste mas, sobretudo, por outro, de ele se apropriar autonomamente dos usos desse mesmo corpo, questionando, assim, frontalmente a Autoridade na forma de um pensar [e, a partir dele, com base nele] de um agir independentes.
A tradição contra-reformista convive, com efeito, mal ["to say the least"...] com a liberdade em geral; com a liberdade como categoria condicional básica do conhecer, preferindo sempre usar a História e tudo dentro dela como uma ilustração e mesmo como uma demonstração passiva da eternidade, situada esta sempre para além do ["jenseits", numa semântica... nietzschiana] alcance im/possivelmente transformador e até conceptuador [ou re-conceptuador] autónomo da consciência individual.
É verdade que o cristianismo introduziu na História da Cultura Ocidental relativamente às formas anteriores de conceptuação e representação do funcionamento moral da realidade [gregas e romanas] a ideia de "pecado" enquanto representação do comportamento [mais] marcadamente individual enquanto agente no processo de representação teórica do funcionamento global da realidade, retirando-o à arbitrariedade da acção pura ou quase pura do Fado.
Mas não soube---e isso é particularmente evidente, volto a dizer, no caso das sociedades onde a Contra-reforma triunfou sobre a Reforma; não soube libertar verdadeiramente o pecado, tornando-o uma verdadeira e uma genuina "propriedade moral" dos indivíduos.
Essa possibilidade é, de imediato, reinviabilizada pela proibição severa dos usos quer do corpo, quer, noutro plano, da própria História, forçando o indivíduo a cumprir esta última, num sentido amplo, global, em lugar de protagonizá-la e mais ainda: obriga-o a cumpri-la como uma forma de obediência-valor moral que rapidamente se torna também uma realidade política, como amplamente provou o facismo.
Esta "cultura" [e esta obsessão!] da castração cultu[r]al e mental; da ablação teórica do corpo [e especificamente dos órgãos genitais] fica muito clara na ideia inteleccionalmente monstruosa [e objectivamente obscurantista!] de que a questão da Educação Sexual nas escolas [outro problema importantíssimo do nosso tempo e especificamente da sociedade em que vivemos] é antes [e acima] de mais qualquer outra coisa, uma "questão" moral que obviamente não é.
É uma questão científica que não pode evidentemente ser tipificada a partir do seu próprio objecto, que o mesmo é dizer: enquanto área ou domínio do Conhecimento e da Cognição ou da cognicionalidade com expressão académica, designadamente institucional e ainda mais especificamente curricular, nada deve legitimamente "distinguir" a Educação Sexual da Educação Física, Literária ou Linguística ou de outra qualquer das múltiplas Educações que constituem o Conhecimento científico moderno: verdadeiramente científico e verdadeiramente moderno.
Nada deve, dito de outro modo, "significar" [verbo transitivo] "moralmente" à partida a respectiva natureza especificamente epistemológica como o respectivo estudo.
Não é o facto de incidir sobre o corpo [sobre esta ou aquela parte do corpo] que deve estabelecer a base ou o eixo, o vértice tipológico e tipificador dos conhecimentos, do que chamo cada uma das "ciencialidades" que o compõem enquanto objecto íntegro global----do mesmo modo que não é, no caso do tal "programa" de televisão que comecei por referir, a exibição da nudez frontal ou não que estabelece com um mínimo de substância e, sobretudo, de fundamento epistemológico a fronteira moral.
É esta incapacidade nuclear in/essencialmente contrária à possibilidade objectiva de formulação um pensamento verdadeiramente científico; esta incapacidade de discernir entre o corpo e os seus usos [a moral deve naturalmente incidir sobre os usos, não sobre o corpo em si que, como é óbvio, é algo moralmente neutral, algo intrinsecamente objectual] que explica que se continuem a considerar pornografia o conjunto da maioria dos actos que têm o sexo e a sexualidade por objecto.
Que se considere pornografia o que os tem porque os tem.
[Existe, como é sabido e consta, aliás, da própria lei uma "distinção"---tão desprovida, de resto, de fundamento credível como aquela de que atrás falámos---entre sexo com e sem penetração: o primeiro---que curiosamente envolve ou pode envolver, representações sublimadas ou sublimacionais de auto-repressão...---é legalmente "erotismo"; o segundo é, nos termos da lei, "pornografia"...]
Não deixa de ser curioso [e nada gratuito, nada mesmo!...] que o sexo "bom" [ou "menos mau" porque, no fundo, "não há" sexo "bom"...] seja o que assenta, afinal, no escamoteio e na auto/repressão implícita, pressupostamente revalorada da própria natureza: há, de facto, uma ecologia da sexualidade que é ali a priori violada---nesta se reflectindo, aliás, o próprio fundamento, a essência mesma, do que chamo a "pornografia da pudicícia" ou "por pudicícia".
Mas voltando um pouco atrás, insisto: é aquela incapacidade des/estruturalmente acientífica e mesmo anti-científica para distinguir entre fenómenos ou [seja-me permitido que recorra aqui ao uso de uma semântica completamente pessoal:] "sequências causantes ou causacionais", fenomenológicas puras e meros epifenómenos---entre corpo e respectivos usos---que bloqueia qualquer projecto de moral fundamentada e acreditavelmente substanciada por parte de quem a integra nas respectivas formulações teóricas; é aquela incapacidade, dizia, que explica que a verdadeira pornografia [que é aquela que pode ser essencialmente definida como todo e qualquer comportamento que envolva [e, sobretudo, que valorize utilizando-a para atrair] a "colonização" de uma sexualidade por outra e de ambas por terceiros---como acontece, aliás, topicamente nos chamados "reality shows"] do que não passa de actos ou funções ["acticidades" e "funcionalidades"] absolutamente normais e naturais do corpo.
São ainda aqui e sempre os usos do corpo que permitem estabelecer de forma substanciada a fronteira moral: os usos [e os abusos] de uma sexualidade por outra; os usos [e os abusos] por parte das várias sexualidades espectadoras de ambas as anteriores, designadamente para compensar falhas e taras existentes ao nível da "cultura" individual e colectiva, no âmbito da referida 'ecologia da sexualidade'.
A ideia de que, se eu vir um corpo nu me... "corrompo" ipso facto, é absurda.
De facto, é essa ideia, ese princípio, em si mesmo monstruosamente anti-natural: começando desde logo por ser pouco lisongeiro para o corpo, ele coarcta de imediato, de forma claríssima, a minha liberdade, inclusive a de fazer por escolha pessoal independente aquilo que o código moral referencial, ortodoxo, acha o "Bem" na [moral e intelectualmente absurda] medida em que obriga---me condena---em todos os casos, a fazê-lo...
Claro que não se pede à TVI que contribua para o que quer que seja em matéria intrinsecamente cultural: o papel do entertainment privado encontra-se infelizmente reduzido, em última análise, ao de alimentar continuamente fantasmas cultu[r]ais de todo o tipo, colocando-se num lugar perversamente privilegiado para redifundi-los entre a comunidade onde se originaram.
Esse papel de formar públicos devia, como tantas vezes tenho dito, estar entregue a um televisão pública, seguramente a um canal dela.
Mas devia sobretudo está-lo a um Ministério da Educação que soubesse realmente o que anda a fazer e que infelizmente nunca teremos tido entre nós em momento algum desde os tempos de um ministério Sottomayor Cardia de má [de péssima!] memória.
Concluo deixando por responde [para que cada um o faça por si, livremente] uma questão que é: terá alguma relação com essa inexistência o facto de, se ela não se verificasse, a "grande indústria do obscurantismo, do atraso e da ignorância" que hoje faz fortunas [também] no entertainment televisivo ficar, a prazo, fatal e, também irremediavelmente, comprometida?...