sábado, 17 de abril de 2010

"Do Pensar Dicotómico Enquanto Ponto-de-Vista Teórico Sobre a Realidade"


Sempre considerei, confesso, um certo paradigma mais ou menos corrente [e, admissivelmente, em muitos aspectos, 'instintivo'] de "pensar dicotómico" que encontro documentado nos mais diversos sectores das sociedades, desde o que terá, para muitos, oposto Shakespeare a Marlowe na Inglaterra isabelina àquele muito mais recente que forçava uma boa parte da classe média-baixa caracteristicamente embrutecida do anterior regime a "optar" entre uma certa Madalena Iglésias e uma certa Simone de Oliveira numa espécie de paródia ainda mais provinciana e bacoca da que obrigava a análogas "escolhas" entre divass operáticas, algumas "de mera importação" na não menos campónia e pós-rural Lisboa de Oiotocentos.

Sou, porém, devo dizer, um 'crente' na utilidade possivel deste mesmo modelo de pensar dicotómico, usado com critério e conservado sempre na estrita [e dinâmica] condição de perspectiva ou ponto-de-vista dialécticos [e] instrumentais, sobre a realidade.
Creio, como já por diversas vezes, tenho dito na natureza [e, inclusive, no fundamento, infixo e especificamente expansional] da realidade e acredito, por isso, que apenas modos permanente dinâmicos e, de igual modo, infixos de abordá-la dispõem de alguma possibilidade teórica de "percebê-la" e, seja para que efeito e com que profundidade for, posteriormente representá-la.

É, desta perspectiva tética de princípio, que sou, devo dizer... "picassista" e "anti-daliísta".

Conheço razoavelmente a obra de ambos os artistas Picasso e Dali; fiz, tanto quanto a carteira e o tempo mo permitiram, os "percusos" respectivos de Málaga a Paris, no caso de Picasso, envolvendo aventurosas peregrinações a Cadaquès e a Figueres, no de Dali, tenho, com a superficialidade relativa do mero amador, frequentemente---num caso como noutro, por muito estranho que, perante aquilo que disse, possa parecer...--- "embasbacado", admito [e assumo!] pontos-de-vista pessoais sobre o talento quer de um quer de outro e, no fim [de facto, no princípio!] tornei-me, então, "picassista".

Só que, como disse, me tornei dialecticamente "picassista", tal como tento sempre que seja dialéctico o modo cvomo me torno qualquer coisa.

Fascina-me [é o termo!] o surrealismo daliano!

"Un Chien Andalou", feito de---empolgante! Intelectual e cultu[r]almente gigantesca!---parceria com Buñuel é, para mim, uma referência cultural e aqui, também abertamente cultual, 'absoluta'---se o modo como topicamente penso o mundo tolera e integra "absolutos"; delicio-me [empolgo-me interiormente!] com a "estória" que dele se conta de que um dia terá, na apesar de tudo conservadoríssima Catalunha do século em que nasceu, ido com um grupo de amigos e amigas nadar nu nas águas do mar fronteiro a Cadaquès e que, afrontado pelo pai que, escandalizado, verberava a "orgia", se terá deliberadamernte masturbado e lançado o sémen à cara do pai dizendo qualquer coisa como: "Toma! Aí tens o que te devo! Agora sou livre!"

Conheço, de facto, poucos instantes simbolizadores de um grito interior de... "sublevação edípica", real ou mítica, factual ou premeditadamente inventada---para o caso... a ideia é tão dalianamente brilhante que a verdade é aqui, em definitivo, de tudo, o que menos interessa!---mais geniais e definitivos do que este.

Só que [e, por isso é que eu, no fim, opto sempre por se assumir como "dialecticamente picassista!"] de algum modo "Dali acaba aqui", precisamente, na ideia ou no papel de Dali.

Dali é, para mim, com efeito, muito mais isso mesmo: a ideia de um Dali, o projecto global de um Dali---servido embora por uma técnica soberba, magnífica!---do que propriamente um Dali.

Deste ponto-de-vista, ele goza, de resto, de um mérito verdadeiramente único: o de desafiar a cultura a existir, o de forçá-la mesmo a existir.

O de 'encostar a cultura às cordas' e... possibilitar os Picassos, criar as condições essenciais para que haja Picassos.

Os Picassos que são, no fundo, quanto Dali não conseguiu ser: "apenas e só" um [extraordinário] Artista.

Há, no "Musée Picasso" em Paris uma "escultura", uma cabeça de touro, feita com... um selim de bicicleta onde está, no fundo, todo o Picasso, todo o imenso artista, o visionário total, que é Picasso.

Picasso não "teve tempo nem feito" para interpelar e desafiar a Arte: foi Arte.

A sua cabeça, os seus olhos, eram a Arte---que de um e outro, no limite, não se distinguiam.

Não precisou de "encenar" o olhar estético: ele de/corria nastural e instintivamente do seu próprio olhar individual.

Dali era um homem estruturalmente desprovido de imaginação, sempre o considerei.

Teve a inestimável felicidade histórica, epocal, de apanhar pelo caminho um surrealismo que lhe permitiu "colar" directamente o imenso talento manual que possuía a uma criatividade enormemente imperfeita e francamente discutível.

O surrealismo possibilitou-lhe o reconhecimento e o triunfo utilizando simplesmente o delírio [por vezes---ao contrário da sua própria ideia de que ele seria estimulante e profanador---apenas desagradável] como um sucedâneo eficaz da imaginação de que, insisto, era completamente desprovido.


E no entanto...


E, no entanto, "se não fosse" Dali não seríamos, talvez, capazes de situar, equacionar, perspectivar, fruir em pleno, apreciar exactamente o verdadeiro, o genuíno talento artístico---de Picasso, desde logo, mas o próprio conceito de talento artístico.

Claro que, no limite, deste cada um de nós tem o seu próprio.

O que eu digo, porém, é que, próprio ou não, ele teria seguramente muito maior dificuldade em estabilizar-se apropriadamente em fixar-se [se é que coisa alguma, na realidade, se fixa ou, fixando-se, funciona a partir daí, adequadamente mas enfim...] sem esse tipo de cruzamento ou de exercício ideal de aferição dialéctica constante que a "oposição" entre Dali e Picasso, tal como a vejo, permite.

Dali tem, como digo, o grande mérito de ter sido dos últimos artistas europeus [a América, como se sabe, não existe...] a funcionar como "consciência"---estética mas, de igual modo [muito por absurdo, aliás!] ética de uma sociedade que, daí para cá, deixou desgraçadamente de possuir "indutores conscienciais", individuais e, sobretudo, colectivos [uma intelligentsia estável] própria e estável que a reflectissem e permitissem que ela, no fundo, se fosse [como dizer?] refractando continuamente a si própria e, refractando-se, desse modo, se fosse, afinal, possibiltando a si mesma, sempre ulteriormente.

Isto é, que ela permanecesse, nessa espécie de "jogo especular consciencial" verdadeiramente inestimável e, de mais de uma maneira, "cúmplice" que jogava com os seus artistas e intelectuais, orgânica.

Que é algo que "Cultura" deixou, talvez definitivamente, de ser até hoje.

A propósito desta "metamorfose da cultura" e da própria identidade eu costumo falar, julgo que com adequação e fundamento, de sociedades [ou "societações"] "da tradição" ou ainda "verticais" ["trickle-down societatations"] e "sociedades/societações horizontais" ou "shedding societations".

Não cabe agora aqui retomar detalhadamente tais conceitos [de matriz freudiana admissível: conceitos como os meus próprios de "estruturacionalidade e substanciação edípica" cunhados a partir de Freud são-lhe fácil---mas não "facilmente"...---aplicáveis]; cabe sim perceber o nexo primário, essencial, que existe em toda esta fenomenologia da dissipação ontológica e cultural chegando a ela como conceito teórico justamente a partir das respectivas circunstâncias incidentais mas, em caso algum, acidentais.

E essa é que é precisamente a questão: a questão é, à medida que o própruio real no seu todo se vai tornando "naturalmente inorgânico" que consigamos nós mesmos que o olhar se sobre ela lançamos não caia ele próprio na tentação de tornar-se inorgânico.


[Na imagem, Pablo Picasso, "Guitarra"]

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