sexta-feira, 9 de abril de 2010

Texto a ser construído


Um texto do inevitável Pulido Valente no "Público" de hoje vem pôr uma questão, a meu ver, fulcral para a vida política nacional: a que se prende com a ausência de reacção política significativa ao que o próprio designa pel' "as desgraças da pátria".

As actuais, acrescento eu e, sobretudo, aquelas, ainda mais gravosas, que se anunciam com o tal PEC que manifestamente o partido no poder pretende disfarçar por trás de [mais] uma artificialíssima "polémica" envolvendo, desta vez, determinados aspectos, mais ou menos "bizantinos", do casamento homossexual.

Eu já aqui o disse por diversas vezes: não há---não pode haver!---em meu entender, direitos privados democraticamente referendáveis, i.e. democraticamente dependentes de homologação e de reconhecimento social como pressuposto estrito [e também estreito!] para poderem ser legal e legitimamente fruíveis.

A própria ideia de uma sociedade pretender reivindicar para si o "direito" de tutelar áreas [práticas, comportamentos, etc.] estritamente privados dos indivíduos representa, em abstracto, no domínio dos princípios essenciais, um uso completamente disfuncional, perverso e estruturalmente anti-democrático [porque arbitrariamente invasivo] da democracia, não podendo e não devendo, em caso algum, ser por esta aceite como prática sua.

Tudo quanto for transformar a vida privada das pessoas numa questão pública representa, em tese, o projecto de manipular e tutelar a própria liberdade daquelas utilizando, para o efeito, de forma perversa, conquistras civuilizacionais e, no concreto, mecanismos de organização social concebidos, exactamente ao contrário, para isentar aquela liberdade de tutelas abusivas e indesejáveis formas de condicionamento social e político.

Para mim, portanto, não há verdadeiras dúvidas nem verdadeiras questões nesta matéria.

Há-as, sim, noutra---precisamente naquela que comecei por referir: naquela em que [para aí pela segunda ou terceira vez em toda a vida...] eu e Vasco Pulido de Valente coincidimos em alguma coisa: na ausência de uma substantiva e consistente intervenção de Esquerda na vida política nacional, em especial agora que as condições de vida no contexto desta se agudizaram de forma drástica, nestes últimos tempos.

Há muito que se vêm, com efeito, a meu ver, podendo notar duas tendências básicas na Esquerda política nacional: por um lado, uma pulsão [em muitos casos, assumida] para que o olhar de Esquerda se torne gradualmente inorgânico, dividindo-se, cada vez mais por completo, de forma casuística, por diversas "causas" não necessária e não-organicamente associáveis, de forma directa, entre si---não sendo legítimo dizer que, na base deste olhar exista propriamente um modelo ou uma imagem teórica estável de sociedade mas, pelo contrário, resultando, de algum modo, a ideia ou imagem teórica tópica de sociedade para esta parcela da Esquerda, na soma final dessas causas e/ou das questões por trás delas e a que elas se reportam.

Por outro lado, para uma outra Esquerda mais antiga, mais consolidada e mais clássica---mais orgânica, também, essa---a pulsão vai diferentemente no sentido de uma certa gradual, pelo menos objectiva, institucionalização tendendo o olhar de Esquerda resultante desse "ajustamento" da própria Esquerda à realidade social e política existente como tal a tornar-se incomparavelmente mais reflexivo e simplesmente crítico do que propriamente transformador ou "transformacional", como já foi.

Sempre considerei, com efeito, por exemplo, que o Partido Comunista [a propósito do qual, nunca será demais reconhecer o imenso mérito que configura o ter logrado sobreviver à razia que se sucedeu ao fim do mundo de Leste anterior a Gorbachov---a cujo verdadeiro papel histórico, aliás, Álvaro Cunhal, um homem experiente, invulgarmente lúcido e excepcionalmente esclarecido nas suas análises, reservava mais do que compreensíveis reservas]; sempre considerei, com efeito, dizia, que o Partido Comunista deveria investir tudo, por um lado no retomar da actividade persistente de esclarecimento e de [por que não dizê-lo?] mobilização junto das colectividades populares à semelhança do que acontecia antes de '74 [muitas das condições de então encontrando-se, aliás, integralmente restauradas hoje e algumas até agravadas...] mas, por outro, também---e num certo sentido, sobretudo---em meios de informação [um jornal, uma estação de rádio, idealmente uma de televisão ou uma, no mínimo não-hostil, nela] que lhe permitissem concorrer num "mercado cultu[r]al e ideológico" hoje-por-hoje absolutamente crucial e determinante.

É hoje impossível a qualquer indivíduo ou organização fazer-se ouvir [e, por conseguinte, existir] no mundo fortemente "midiatizado" de hoje dependendo, apenas, da "generosidade" dos que na prática são, sob diversos aspectos, realmente concorrentes.

Os clubes de futebol de maior peso nos respectivos países ou possuem órgãos próprios ou planeiam possui-los [entre nós, por exemplo, o Benfica possui um canal de televisão, o Sporting, ao que se diz, tem o seu próprio na calha e até instituições menores como o Vitória de Guimarães projectam intervir deste modo no universo mediático recorrendo à Internet]; alguns, por outro lado, como o Benfica, firmam regularmente protocolos com instituições da mais diversa natureza por meio das quais visam obviamente chegar, com actividades ligadas à actividade a que estatutariamente se dedicam, aos mais distintos sectores da população.

O que isto significa, em termos práticos, é que "toda a gente" faz hoje militância e 'agitação' de um tipo ou natureza quaisquer; que está, pela própria lógica sistémica do universos sociais circundantes, forçada a fazer quer uma, quer outra e que quem o não fizer acaba necessariamente desprovido da possibilidade efectiva de fazer uma ou outra por ter provavelmente perdido jás a maior parte da relevância que o permite e justifica, em primeiro lugar.

As modalidades demasiado estáticas e inertes de intervenção política [colagem de cartazes, por exemplo] deixaram de possuir qualquer verdadeira e reconhecível eficácia comunicacional no mundo de hoje e, por isso, cada vez substituem menos o debate e as formas de intervenção directa em tempo real---ou tão real quanto possível.

Eu iria mesmo mais longe no que diz respeito àquela questão que comecei aqui por apresentar e diria que a questão da forma das mensagens no mundo de hoje está longe de ser uma qwuestão apenas exactamente de forma, uma questão, na essência, despicienda e acrescentaria inclusivamente que, pelo contrário, qualquer esforço de modernização ou reforma nos partidos políticos [interessam-me naturalmente os de Esquerda] tem necessariamente de passar por aqui, pela adaptação básica, pré-condicional, das formas de acção política a um certo espírito comunicacional muito concreto e muito definido de época, não, insisto, em resultado de qualquer pulsão de eventual novo-riquismo puramente ostentatório e exterior mas por razões intrínsecas e essenciais de eficácia política.

No fundo, trata-se de levar ainda mais longe em termos práticos aquilo que Lucacs, por exemplo, percebeu a propósito da noção de consciência de classe quando a fez derivar toda para o que designou por "psychologische Klassbewusstsein" opondo-a às formas meramente objectuais dela.

A ideologia não existe sem a respectiva interiorização---e, se me é permitido o neologismo, uma muito precisa e essencial "re-experiencização".

Hoje menos do que provavelmente em qualquer altura antes, não chega ter razão; ou melhor: não existe "ter razão" sem quie ligada a ela exista o saber social e comunicacionalmente tê-la.

Ttrasta-se, de resto, de uma "coisa" muito marxista: as coisas e as ideias não existem fora da sua circunstância.

Inexistem, de facto como categorias fora da História.

Para um marxista, sendo o real orgânico---dialecticamente orgânico, seguramente---este princípio é aplicável às ideias, também.

Num certo sentido, até, sobretudo a elas.

Ora, aquilo que eu vou ao ponto de afirmar para concluir é que o risco que se corre em não entender a importância do que acabo de dizer [e, muito sinceramente, não sei se isso não estará já na prática a acontecer] é o de as próprias ideias, deixando de circular, se extingam elas próprias, a prazo, de forma afinal tão natural quanto inevitável.

A minha dúvida---aquela com que termino esta "entrada" é: será isso precisamente o que está já a acontecer e que explica a falta de aparente reacção de uma Esquerda que, resistindo à tentação de des-integrar-se e tornar-se inorgânica e casuística, não soube resistir à de deixar de se fazer ouvir?


[Imagem extraída com a devida vénia de sjsdny]

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