sábado, 10 de abril de 2010

"K de Keaton---e de Kafka?" [texto em construção]


O dia começou com... 'Buster' Keaton, para muitos, mau grado Chaplin, o maior cómico de sempre do cinema e o homem que Beckett escolheu para protagonista do seu único "Film".

Revi-o no fabuloso "The Goat", gravado da televisão, de uma altura em que ainda havia Cinema [com maiúscula...] a horas razoáveis na televisão pública.

Nunca me canso de ver este prodigioso "Frigo", entre nós, rebaptizado de "Pamplinas".

'Buster' foi [e nesse aspecto coincide rigorosamente com Chaplin] um "documentarista" extraordinário.

Quando se vêem os filmes que interpretou, reentra-se praticamente "sem escala" na América de Norris e de Carl Sandburg, a de "Chicago" ou até "de" von Stroheim que não era americano mas que soube como poucos captar a desoladora vulgaridade, a angustiante, omnipresente e obsidente "platitude", de uma impiedosa nação-empresa sem outras ideias para além do... dinheiro e de como ganhá-lo: Keaton dá-nos, com efeito, sem a desculpa do melodrama e sem o refúgio que é a poesia num Chaplin, "o outro lado" dessa "ideologia estreitamente rectangular e esverdeada em forma de nota de banco" que parece ser a única coisa capaz de animar e mobilizar aquela nação "sem Idade Média, sem castelos e sem verdadeiros poetas" que sáo os E.U.A.

O cinema de Keaton incide sobre o verdadeiro pesadelo que é viver do lado de fora da "Americana" em eterno conflito com ela, permanentente rejeitado por ela].

Há sempre qualquer coisa sombria, ameaçadora, "dark", impendendo sobre ele: a própria técnica do seu principal intérprete, esse inquietante recurso à estóica seriedade para despertar o riso e, num plano mais lato, ao paradoxo e ao próprio absurdo consistentemente usados como 'suporte témico' estável para o aparelho básico da comicidade perturbam exactamente porque nunca nos "recordam" para nos tranquilizar que "that's all folks" e/ou que "the whole thing is actually a joke"...

É num certo sentido preciso e mais ou menos claro, o cómico "da crueldade"---não naquele sentido instintivo e catártico, purificador, que Artaud atribuía ao conceito mas muito mais como o estabelecimento de um mecanismo impiedoso sugerindo uma conspiração premeditada dos factos, da realidade, para esmagar, para "anéantir", diria expressivamente um francês, o humano indefeso corporizado pelo próprio 'Buster'.

Poucas vezes a fronteira ténue entre a Comédia e a Tragédia terá sido tão inquietantemente posta em causa e subtilmente franqueada, num e noutro sentidos.

Ao estudar "le rire", Bergson debruça-se sobre as analogias estruturais entere o riso e o choro humanos.

Entre ambos existe a questão do posicionamento perante a ordem.

Ambos são possíveis porque existe uma ordem que é por ambos, a dado passo, quebrada, interrompida, posta em causa.

A forma geral dessa ideia configura aquilo que, pessoalmente, chamo um "naturema" e, noutra perspectivam, um "cognema" ou "representema consciencial": tudo, com efeito, na natureza, a começar pela própria consciência, pelas diversas formas de "consciência" existentes [ou de consciencialidade, incluindo as formas imediata ou directamente atómicas ou moleculares] existe porque interrompe uma ordem qualquer prévia, porque se interpõe entre essa ordem e ela própria, porque a "descola de um tempo e de um ser originais" e os absorve ambos segundo uma gravidade própria que fixa e desfixa essa ordem para sê-la de outro modo, para ser uma imagem teórica reutilizável dela.

A minha tese é que essa ideia da ordem que se interrompe e entra em crise para possibilitar a existência passa abstractamente para o próprio tecido da consciência [que é a mediadora concreta dela] e aí opera como inspiração última das diversas representações concretas que vão tendo origem na própria consciência e emergem no real na forma de "cognição" e/ou "conhecimento".

A arte é definitivamente uma dessas formas.

É um 'conhecimento do real' que tem a forma última da própria consciência enquanto objecto em si.

A diferença básica entre Comédia e Tragédia consiste em que, rompendo ambas uma ordem e sendo ambas objectualmente possíveis por isso, devido a isso, a Comédia termina com a reposição teórica da própria ordem ameaçada enquanto que a Tragédia encerra, exactamente ao contrário, com a imagem ou a percepção---o 'conhecimento'---da impossibilidade dessa mesma reposição.

A Comédia é aquilo a que poderíamos simplicando muito chamar em "género" cruel e 'conservador': coloca-nos sempre do lado da própria ordem contra os que a tentam quebrar ou, não tentando fazê-lo, de um modo ou outro provocam, induzem ou protagonizam a ruptura.

É também, por isso, um "género" eminentemente "gregário" e até "totémico" no sentido preciso em que nos une a todos contra alguém que está só.

Apenas aparentemente, num sentido profundo e quase abertamente ontológico, a comédia é algo naturalmente e em si mesmo "alegre".

A Tragédia, ao invés da sua irmã "para rir", vê sempre o mundo da lado dos fracos: é um "género"---potencialmente, ao menos---profanador, iconoclasta , tendencialmente dessacralizador e por isso possivelmente revolucionário.

De ruptura.

Se o mundo fosse todo "cómico" estaria completamente imóvel, condenado ao silêncio e, num sentido até integralmente literal, à completa apatia.

Quando se visiona "The Goat" de Keaton, percebemos de repente como um verdadeiro artista consegue criar formas completamente novas e originais de unidade ontológica e narrativa, uma Estética [e até, uma Ética---por que não?] "de fusão", como certas... "cozinhas" pós-modernas...

É, com efeito, impossível ver "The Goat" e não perceber como "aquilo" é Kafka e Hitchcock ["Kafka é Deus e Hitch o seu profeta"...] genialmente revistos ["avant-la-lettre"...] por um olhar que cola ou volta a colar minuciosa [mas não a-problematicamente!] o real todo a si mesmo num projecto visionário de Ontologia concebido para ficcionar exactamente a Unidade Utópica de uma "consciência" humana que apenas se tornou possível exactamente quando criticou e transformou em "impossibilidade ulteriormente possibilitante" a própria Unidade ontológica original.

Por isso, Keaton é, de facto, grande e certamente por isso Beckett não descansou enquanto não o chamou para o interior do seu próprio universo conceptual onde, como observava Julie Campbell ao falar da "dfark comedy" do criador de Godot, o cómico e o trágico nunca completanmnte se separam--ou mesmo, diria eu, no limite, distinguem.


[Na imagem: 'Buster' Keaton numa cena de "The Goat"]

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