O "Público" de hoje inseria, a dada altura, uma notícia extremamente interessante que, discreta embora [e até aparentemente um pouco estranha, à primeira viata, bizarra mesmo] me chamou, de imediato, a atenção.
O título era---é: "Juízes aprendem a disparar para julgarem melhor".
Depois, a gente lê a notícia propriamente dita e descobre que os juízes que vão ter aulas de tiro, afinal, são apenas doze, as acções de formação resumem-se a três, cada uma delas de uma semana mas a questão até pode ser vista de um ângulo que ultrapasse---e muito---o plano da mera e simples artimética e vá situar-se no plano verdadeiramente crucial da perspectiva, do ponto de vista---teóricos ou epistemológicos, uma e outro.
No espírito.
As sociedades modernas [como, de resto, as pós-modernas] são sociedades onde a tecnologia que existe em suspensão na própria sociedade é qualquer coisa de literal e virtualmente inimaginável.
A forma e o conteúdob dos juízos que sobre a realidade proferimos têm inevitavelmente de ter sofrido e continuar a sofrer profundas deformações que radicam na nossa própria, muito distinta, capacidade para nos apropriarmos do conhecimento que deu ao origem a cada um dos objectos que nos rodeiam.
O modo estruturalmente des-igual como os meios de re/produção de tecnologia se acham social e politicamente distribuídos nas sociedades contemporâneas em geral deu origem a um fenómeno---senão mesmo, a toda uma fenomelogia---caracterizada basicamente por terem sido criadas, num meio onde paradioxalmente a tecnologia intervém e está presente em tudo ou quase tudo o que existe---formas e paradigmas completamente novos de agnosia e/ou iliteracia [a um autêntico "neo-totemismo"]; formas e paradigmas esses resultantes básica e precisamente da "totemização" dos objectos cujos princípios científicos desconhecemos, deles "conhecendo" apenas aparências" [ou, como lhes chamo muitas vezes: simples "aparencialidades funcionantes" completamente---vou dizer deste modo, de forma intencional---alienadas da respectiva estrutura causal].
A nova agnosia não se caracteriza tanto pelo deconhercimento objectivo da ciência [embora também a haja, claro!] mas muito mais, sobretudo nos centros de uma cultura estrutuiralmente urbana e/ou urbanizada pela mutação tópica sofrida pela própria ideia de "conhecer" que hoje tem já estavelmente muito menos a ver com a ideia de funcionamento global e orgânico da realidade [é o fenómeno comum da "morte da filosofia" que é, de facto, a morte do pensar filosófico quando não do próprio pensar tout court] do que com a de imaginar a realidade em termos genéricos como algo de des/estruturalmente granular e descontínuo, in/essencialmente desprovido de Tempo mas, de igual modo, de génese; algo que emerge na forma de objectos não necessariamente resultantes de leis e de sistemas de leis [físicas, químicas, eléctricas, etc.]; algo que é sobretudo a própria forma contendo funções que são o seu próprio fim sem passagem quer por uma reflexão orgânica, quer por uma génese específica; algo que se utiliza mas, sobretudo, algo que não escede ou não ultrapassa a sua própria aptidão "mágica" ou---lá está!: totémica, "totemizada"---para "deixar-se utilizar".
Algo cuja única "lei" é "deixar-se utilizar".
Esta nova agnosia revela bem o tipo de insuficiência cultu[r]al e política que está na base mesma; no cerne das sociedades ou das "societações" modernas e pós-modernas---a que noutro lugar chamo também "endo-coloniais" por uma série de razões que na ocasião expus e que prendem exactamente com o modo estável, tópico mesmo, de utilizar politicamente o saber.
A prazo, derivando, por um lado do modo específico, concreto, como os indivíduos se apropriam [ou não, no caso das classes menos favorecidas] dos 'meios de produção social' de saber; por outro, da extrema complexidade dos próprios saberes como tal [que conduz a formas profundamente especializadas de perícia---tão especializadas que exclui, de facto, o conhecimento das restantes; a prazo, dizia, a própria agnosia se complexifica e "especializa" ela própria---há um paradoxo evidente no processo: quanto mais sei, menos sei]; a prazo, dizia, a agnosia que começou por existir fora do saber, retorna sobre ele, contamina-o, desfunciona-o inevitavelmente, volto a dizer: a prazo.
Porque, de facto, eu "não sei" [voltando ao conteúdo da notícia do "Público"] e/ou o meu saber revela-se estrutural---epistemologicamente!---inútil [in-útil] se apenas "sei Direito", por muito Direito que eu "saiba".
E quanto mais eu "souber", menos espaço tenho para outros saberes sobre os quais e relativamente aos quais o Direito devia operar ganhando aí afinal a sua verdadeira substância.
Mais: ao especializar-se ulteriormente, o Direito tendo a autonomizar-se ou "alienar-se" da sua própria utilidade começando, no limite, a actuar como um saber em si, desligado da sua verdadeira função que é interagir com um grande número de outros sabveres pasra os quais deixou de ter "espaço" e "tempo.
Não tem, obviamente, de forma necessária, de ser assim.
É-o porque a pragmatização ou funcionalização obsessdiva das sociedades, rejeitando por razões topicamente "pragmáticas", a organização de um olhar "puramente" filosófico sobre si própria conduziu, de forma inevitável, à desorganicização do mundo mas mais: à desorganicização do olhar ou olhares "de episteme" sobre ele lançados, no presente mas, sobretudo, na forma já de toda uma "civilização" ou "civilizacionalidade" , no futuro.
É por isso que eu saúdo de uma forma especial a tentativa agora feita de conferir expressão e conteúdo [eu diria: mais ou menos simbolicamente] social ao Direito, reaproximando o olhar epistemeoforme próprio dele dos restantes.
É uma 'coisa' in/essencialmente "simbólica'?
Admissivelmente.
Mas, pelo menos, há alguém que parece preocupar-se com estas coisas---o que talvez possa ser visto como um sinal.
[Imagem extraída com a devida vénia de pingodepapo-dot-wordpress-dot-com]
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