domingo, 4 de abril de 2010

"The Trouble With Harry"


O falecimento recente de John Forsythe, um actor extremamente discreto mas seguríssimo que sempre admirei exactamente pela sua sempre particularmente convincente competência e caracteristicamente sóbria eficácia, trouxe-me, de uma forma especialmente viva, à memória o filme de Alfred Hitchcock, "The Trouble With Harry" que, pessoalmente, sempre associei ao trabalho e ao próprio rosto, imediatamente simpático e familiar, do actor agora desaparecido.

Não apenas a ele, é verdade, mas em qualquer caso indissoluvelmente a ele, também: mais do que em torno de um virtualíssimo e anónimo 'Harry' de quem conhecemos, praticamente, apenas os ostensivos e omnipresentes pés, o filme de Hitchcock gira em torno da figura de 'Sam Marlowe', a personagem de Forsythe que funciona, ali, como uma espécie de competentíssimo pivot de toda a acção assim como do conjunto [deliberadamente ausente---e aí se situa, a meu ver, aliás, um dos grandes motivos de interesse do filme] de questões de natureza 'moral' levantadas [ou... "levantáveis"] a partir da ideia de uma morte cujo sujeito/objecto não parece preocupar como quer que seja seja quem for, operando, pelo contrário, como um estorvo, uma tremenda maçada, na vida de cada um.

E é essa, embora nela se misturem aspectos de solidariedade, chamemos-lhe: relativa e lateral; o estreito círculo de interesses envolvendo as "paixões" de cada um [a de Forsythe/'Marlowe' por 'Jennifer'/Shirley McLaine ou a do 'Cap. Albert Wiles'/Edmund Gwen por 'Miss Ivy Gravely'/Mildred Natwick] que motiva as personagens para quem o morto e a sua morte [ironicamente devida, afinal, a causas naturais de cuja responsabilidade todos estão, por isso, de facto, inocentes---o que, numa muito suposta, aliás, trama policial, assume inegavelmente foros de insuportável humilhação para a vítima...] constituem, apenas e de forma [quase?] ostensivamente amoral, volto a dizer, antes de mais uma monumental fonte de incómodos e sarilhos para toda a gente.

O filme [de um modo sempre muito caracteristicamente hitchcockiano, aliás] brinca com [mas, sobretudo, subverte subtilmente] várias das "normas" estabelecidas "para bem escrever romances"---e, supõe-se: também "fazer filmes"---policiais: o facto de não haver crime mas morte acidental, a própria intervenção de uma criança, embora algo marginalmente, na trama policial, a questão da culpa [que aqui ninguém verdadeiramente sente---substituindo-a, como atrás digo, pela da conveniência pessoal pura e simples, nos termos que atrás também já vimos] mas, principalmente, o facto de a própria base de uma história policial clássica---o motivo primário do 'crime e castigo'---perder aqui o seu próprio fundamento vital e de a necessária base de sustenção, de onde tudo o mais deriva [a começar pela catarse e pela simbólica reposição da ordem original, circunstancialmente posta em causa por um criminoso, i.e. alguém que se põe deliberadamente fora dela e contra ela---poucos géneros são, em si mesmos, com efeito, tão intrinsecamente conservadores como o policial!] aqui inexistir por completo, recentrando-se a acção numa "comedy of errors" paródica e deliciosamente amoral onde cada um tenta salvar-se [e salvar quem lhe interessa salvar] como pode e onde os vínculos éticos são meticulosa e, às vezes, mesmo ostensiva---embora nunca grosseiramente---ignorados, como disse, por todos, "heróis" incluídos.

A "brincadeira" [a subversão] vai aqui ao ponto de Hitch ter feito um filme, de algum modo, completamente "circular", no sentido em que, recomeçando... no fim, virtualmente exactamente onde e como tinha originalmente começado, i.e. pela descoberta do corpo de 'Harry', o filme parece querer dizer-nos, em última instância, que não aconteceu efectivamente coisa alguma, i.e. que ele próprio não aconteceu; que foi tudo pura ilusão nossa e, por conseguinte, que com ele nada efectivamente mudou, como é suposto que mude nas "estórias" policiais onde o criminoso é castigado e a ordem original reposta, com o conjunto de valores que contém e que efectivamente reforçou e reconfirmou com o castigo dos que, como atrás disse, fora dela, ordem e contra eles, valores, a dado passo, se posicionaram e/ou situaram.

Isto é: que com ele, filme, Hitchcock pretende dizer que não contem consigo para "moralizar": a perspectiva ou questão---o ângulo---moral, que, como vimos, nunca chegou, de facto a existir, desaparece, então definitivamente, com a satisfação final das conveniências pessoais de todas as personagens, resultante da descoberta das verdadeiras causas da morte de Harry que os liberta a todos da ameaça de serem acusados de ter morto Harry e presos.
Ou seja: aqui, o crime ou crimes [envolvendo centralmente a despreocupação com a questão moral da culpa] foi recompensado pelas próprias circunstâncias e, portanto, objectivamente compensou.

É, assim, todo o filme, uma espécie de "segredo" perverso que partilhamos com o realizador---e esta é, sem dúvida, uma perspectiva---e uma proposta témica---verdadeiramente fascinantes, cimentando, entre a obra e o respectivo sujeito que somos nós, espectadores, uma cumplicidade que nos lisongeia e, até certo ponto, deslumbra mesmo---exactamente pela intimidade e pelo secretismo, francamente "naughty" uma e outro e que passam claramente por tornar cada um de nós um encobridor, senão do crime primário---que, como disse, não existe, embora durante quase todo o filme o ignoremos o que está longe de ser despiciendo...---mas da série de crimes "secundários" de que toda a gente é, ali, objectivamente culpada e que envolvem as sucessivas inumações e exumações do pobre 'Harry'...

É como se o realizador dissesse que, afinal, bem vistas as coisas, toda a gente tem "skeletons" no seu "cupboard" pessoal, a começar por nós próprios, cúmplices passivos da trama: ao terminar o filme numa espécie de novo começo, Hitchcock "pede", de uma forma muito velada e subtil, com efeito, ao espectador que não divulgue a verdade, envolvendo o "voyeur" que claramente somos no próprio crime ou sucessivos crimes que ali vão sendo, um após outro, como disse, cometidos...

Há, por outro lado, associado ainda a esta ideia de uma "circularidade", no fundo completa, perfeita, do filme uma subtilíssima possível sugestão lateral de "buraco negro onírico" [foi sonho?] que é algo que volta muito, mas mesmo muito, subtilmente a [não] acontecer em "Vertigo" [caíu 'Scotty', de facto, do telhado e "sonhou"---ou... "delirou"---tudo o resto?] e que representa uma linha de [sobre] interpretação ou de "leituração" que nunca deixa de entrar na fruição que, eu pessoalmente, confesso, gosto de forma especial de fazer de qualquer das obras citadas.

Embora, com efeito, por exemplo, Donald Spoto---sempre, de um modo ou de outro, uma das grandes referências hitchcockianas---veja no filme um objecto moralmente indefinido ou indefinível [nunca, segundo ele, se sabendo se Hitch critica o puritanismo, se o aceita, de facto, de modo implícito]---pessoalmente considero que o subtilíssimo cínico e céptico de génio que foi o realizador de "Vertigo" se diverte aqui, sobretudo, a desmontar, através da própria desconstrução imediata, do género policial, os mecanismos da moral, designadamente puritana, por trás da qual se encontra, sempre, segundo ele, operando como verdadeiro móbil, o interesse estrito e, muitas vezes, estreito, dos indivíduos e dos "grupos significados" i.e. das comunidades e/ou sociedades, por eles formados---e quem poderá negar-lhe razão, tendo em conta, para não irmos mais longe, todo o edifício institucional, histórico, mas, também, ético, cosmovisional, mental, moral, etc. do imperialismo britânico assente, precisamente, em termos ideológicos mais ou menos de base, no que respeita ao respectivo 'substracto cosmovisional' religioso, no 'pragmatismo' moral da visão puritana das relações entre os indivíduos e entre estes e o 'interesse'---leia-se: a propriedade, a riqueza, o capital?

"The Trouble With Harry" [que Donald Spoto parece surpreendentemente ter, por completo, despercebido] era, juntamente com "The Shadow of a Doubt"/"Mentira", um dos filmes preferidos do próprio Hitchcock e, ainda que Spoto o considere [para mim, de um modo absolutamente incompreensível, aliás, devo dizer] "uma obra insolitamente prolixa e, apesar do seu humor inexorável [?] ou da aparência ligeira" um filme que "poderá suscitar uma série de interpretações menos agradáveis", "The Trouble..." permanece, para mim, pelo contrário, um filme divertidíssimo e, volto a referir, um exemplo particularmente bem sucedido da "perversidade" [ou mesmo da perversidade-sem-aspas] latente na obra do mestre que aqui, consciente ou inconscientemente, converte, como acabo de dizer, directamente em narrativa, em "comédia negra", uma visão caracteristicamente cínica e crítica relativamente aos próprios fundamentos [ou à ausência efectiva deles!] da moralidade puritana, conservando, todavia, sempre o distanciamento suficiente do tema para não o sobrecarregar de retórica mas, ao invés, o abordar sempre num espírito muito subtilmente... "lubitscheano", muito lúdico, que identifica, em meu entender, aliás, topicamente o seu "humour" e constitui mesmo, em minha opinião, uma das grandes "armas" narrativas e conceptivas da Obra do mestre.

Analisando brevemente o filme, José-Augusto França refere-se-lhe no seu "Dez Anos de Cinema" escrevendo que "nunca um cadáver tinha sido objecto de tais e tão naturais tratos: a morte, assunto tabu no cinema «desacredita-se» neste filme".

É interessante que o diga porque, se não posso eu próprio jurar que é rigorosamente exacta a afirmação da originalidade absoluta no tratamento da morte ou dos mortos por parte do filme, a verdade é que até nesse pormenor este último confirma o seu carácter globalmente subversor e de hábil "tour de force"; um "tour de force" [e uma ousadia] tal como eu os vejo, verdadeiramente notáveis, ética e esteticamente---coisa, de resto, pouco de estranhar no homem que fez "Rope" [uma obra de ousadíssima "engenharia narrativa" e até, de mais de uma maneira, "moral"] que foi, de igual modo, o primeiro cineasta a conseguir utilizar no cinema a palavra "travesti" [que teve, de resto, de quase literalmente impor ao sempre muito renitente censor] e a exibir no écrã... um autoclismo e uma sanita, subtis referências iconoclasticamente escatológicas, tudo isto no seu referencial "Psycho"...

É também "The Trouble With Harry", já agora, sempre segundo José-Augusto França, o primeiro cineasta a mostrar no cinema pintura abstracta sem ser para troçar dela...

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