Começo por uma espécie de declaração de interesses introdutória que vai operar como o pano de fundo contra o qual vão, por sua vez, surgir as restantes considerações e reflexões constantes das linhas que imediatamente se seguem e que é a seguinte: há um determinado tipo de discurso antropológico e [com boa vontade, é verdade...] filosófico envolvendo determinadas áreas da cultura pop como o futebol que sigo com particular atenção e interesse embora nem sempre concordantes, um e outra.
Por um lado, é meu entendimento que não é honestamente possível ignorar que uma parte considerável da Cultura dita 'nobre', 'respeitável'---da Cultura formal---consiste precisamente em "recuperações" ou "resgates" mais ou menos tardios, mais ou menos secundários [ou até terciários] de domínios importados da subcultura e que, a prazo, vêm a ser com toda a normalidade assimilados ao cânone cultural---académico, desde logo---como partes integrantes do mesmo.
É o caso da banda desenhada---mas não só dela.
São, de igual modo, os "casos" da fotografia, a "irmã-enfant terrible" [e até "bête noire"...] da pintura, do cinema [que o foi do teatro como o romance seria o da epopeia da qual operou, muito poucos o ignorarão, como uma espécie de "herdeiro degenerado" senão mesmo de "degenerescência" pura e simples...] e por aí adiante.
Por outro lado, não é menos verdade que [é outra ideia que está longe de ser exclusivamente minha...] existe umas permanente dinâmica inter-osmótica entre os extractos subcultu[r]ais de uma forma geral [muitas vezes, a "lumpen-culturalidade" de uma dada época] e a respectiva Cultura formal sendo, por exemplo, no limite, possível, se assim quisermos dizer, 'estudar' o existencialismo europeu do pós-guerra [vê-lo distintamente reflectido] em 'westerns' como "They Came To Cordura" de Rossen ou banda desenhada [a de Hugo Pratt] por exemplo, para apenas referir dois "casos" entre muitos possíveis.
O futebol [que já desempenhou, de resto, um papel relevante na Cultura do Ocidente [na forma de disciplina escolar utilizada para treinar o carácter nas public schools inglesas] é cada vez mais um tema que vem regularmente à tona da Cultura fornecendo, hoje, matéria académica a outro nível [e com outra perspectiva] francamente menos intrumental ou menos utensiliar e mais virada para a re/produção industrial da própria modalidade enquanto "objecto-em-si" e produto".
Lembrei-me de tudo isto ao ler, hoje, um pequeno texto de João Lopes no "D.N." ["Do futebol como teatro"] onde me parece, todavia, que a tal [re?] visão antropológica e para-filosófica da subcultura, neste caso, claramente se ultraspasou a si mesma---ou, utilizando umm linguagem estritamente futebolística: se fintou até a si própria.
Aborda o texto em causa uma questão que começa já a ser hoje-por-hoje velha---a da "justiça" nos resultados do futebol---e é preciso dizer que, mau grado a comparativa "velhce" do tema, não vem mal ao mundo se, sobre ele se elaborar, como faz o crítico, o tipo de comentário ou de reflexão a que ele se dedica no texto referido, desde que quem o faz tenha a preocupação consistente de manter sempre algum contacto da sua própria reflexão com o solo, isto é, com a realidade sobre a qual essa reflexão incide ou se exerce.
O que não me parece seguro que tenha acontecido desta vez, devo dizer.
Senão vejamos: o futebol hojé é uma indústria ou um ramo, uma área, de uma indústria perfeitamente aceite, estabelecida---institucionalizada, até---que é a do espectáculo.
Pressupõe investimentos poderosíssimos, pressupõe uma prospectiva [que é, naturalmente, muito peculiar porque na essência do jogo se encontra, efectivamente, a in-certeza que não é, todavia, exactamente a mesma coisa do que o arbitrário, o aleatório ou---poderíamos talvez dizer abstractizando ou conceptualizando um pouco mais: a "aleatoriedade" ou a "aleação" puras e simples] pressupõe portanto uma certa "cientiticidade" que permite "calcular" antecipadamente determinados graus ou níveis de risco e apostar neles.
Ou seja: na realidade, já não se trata de Desporto---trata-se, como digo, de uma indústria.
Sendo uma indústria possui naturalmente lógica---resultante da acção dos tais mecanismos de antecipação genérica do futuro [da prospectiva] de que falo atrás.
Por isso, se investe [não se "atira" dinheiro à rua: investe-se] e por isso existe naturalmente um referencial---e mais do que um referencial: uma medida] para avaliar o sucesso e obviamente o insucesso no desportismo profissional: o capital investido e o respectivo retorno [ou a falta dele].
Aquilo a que chamamos "justiça" forma-se, pois, em termos latos---digamos assim: macrofuncionais---daqui, do investimento: quem mais investiu, mais probabilidades tem obviamente de alcançar o sucesso que é como quem diz: de obter resultados... "justos".
Em termos digamos microfuncionais, circunstanciais, a "justiça" mede-se pela acção pontual, casuística, do resultado do investimento em causa---que são os jogadores e que é a sua acção no jogo propriamente dito e que é, em tese, directamente proporcional à qualidade dos mesmos a qual é, por sua vez, proporcional---de novo, em tese---ao capital neles investido.
Ou seja: no primeiro caso, se não houvesse um rapport genericamente estável; um rapport significado entre investimento e sucesso, não haveria naturalmente nem investimento nem mais do que isso, indústria: só existem um e outra porque existem também níveis latos, genéricos mas, ainda assim, em termos amplos, antecipáveis, de previsibilidade que começam logo a excluir, por definição, a aleatoriedade enquanto tal: é aliás essa "educada exclusão" do aleatório uma das componentes essenciais que marcam a passagem do Desporto para a indústria.
No segundo caso, é preciso dizer que, se não houvesse a possibilidade material de medir o sucesso na contratação de jogadores, aqui outra vez, não haveria indústria.
Tudo isto somado, resulta em que, quando uma equipa de alta competição entra em campo para "jogar", existem quadros de previsibilidade perfeitamente reconhecíveis, macro e micro, pelos quais se mede e se define, na realidade, a "justiça" na competição.
Pelos quais é perfeitamente possível medi-le, defini-la e até, volto a dizer: antecipá-la---antecipá-la não não em termos abstractamente morais mas em termos objectualmente causais.
E medi-la, sobretudo, para corrigi-la em face da informação que vai sendo prestada i.e. da articulação entre as expectativas lógicas e a realidade competitiva como tal.
A confusão surge, a meu ver, de se abordar um universo industrial com uma lógica de desporto puro [a "gloriosa incerteza" e tudo isso] que já não existe, pura e simplesmente.
E/ou de se falar de "justiça" quando o termo mais apropriado seria seguramente "lógica": porque a "justiça" [termo que continuamos já de forma espúria exógena e, por conseguinte, inadequada, a empregar quando passamos do Desporto para a indústria] é uma categoria ética, moral [moral-em-si] que não figura entre os móbeis operantes básicos ou primários da indústria onde não se moraliza: se analisa---isto é: se mede e, depois, se age.
Fala-se de "justiça" quando deveríamos falar de "previsibilidade", de "previsibilidade operativa" ou, por exemplo, de "lógica funcional"---ou mesmo "funcionante".
A própria essência da indústria consiste, como digo, num certo sentido preciso, em reduzir a margem de intervenção nas representações concretas de si constantes do espaço de im-previsibilidade que se encontrava no cerne do Desporto.
É verdade que a indústria pode também subsistir porque não se retirou [do futebol, pelo menos] todo o conteúdo em im-previsibilidade que indústria herdou do Desporto.
Mas existem "modalidades" [como o "catch", por exemplo máximo] onde isso já aconteceu por inteiro e a essência do género foi toda ela transferida já do "jogo" para o "espectáculo"---e aí, por isso, "há sempre justiça" nos resultados.
Voltando, porém, ao futebol: se uma equipa com um plantel caríssimo joga bem mas perde porque não marcou na proporção do bem que jogou, não sei se há "justiça" ou "injustiça" noisso, agora ilógica e falha grave da prospectiva num plano macro-funcional e/ou disfuncionação das "pequenas lógicas micro-situacionais", inadequação pontual entre causa e efeito no âmbito estritamente micro-funcional, isso houve seguramente.
Se uma equipa joga muito bem mas não marca---tendo, porém, feito um investimento igualmente elevado, significativo---ou teve, pois, numa palavra, infortúnio e interveio o tal grau de imprevisibilidade que não se removeu totalmente [antes se reintegrou, se reincorporou organicamente] na modalidade quando ela passou a ser um "produto" industrial [im-previsibilidade, insisto, confundida com "injustiça", num plano ético que, de facto, já deixou há muito de estar em causa] ou, pura e simplesmente contratou maus profissionais no sector da concretização e vai, com certeza, corrigir ou tentar corrigir essa componente no futuro: é para isso que serve---e sublinho a palavra "serve"!---na competição, aquilo a que nos obstinamos em descrever pela expressão moral "injustiça".
Vai tentar corrigi-la porque percebeu que o que aconteceu é i-lógico, rompe com a "educada previsibilidade" sobre a qual assenta qualquer plano investimental e, por conseguinte, qualquer negócio ou indústria.
O que eu quero dizer é que hoje, o futebol profissional possui graus que são, sobretudo, "feedback industrial" de risco.
Dizer hoje que "em futebol tudo é possível" é apenas muito excepcional, muito extra-ordinaria [e até, num certo sentido causal objectivo] disfuncionalmente verdade.
Nenhum produtor cinematográfico ou accionista de empresa diz que tanto pode vender como não vender aquilo que produz ou que fabrica e que, nessa matéria, aproblematicamente, "tudo é possível".
Ele vai fazer tudo, sim, para que tal seja o menos possível... possível.
Mas isso só é... possível, pela tal quantidade genericamente mensurável de "lógica" que existe organicamente na actividade.
É engraçado, é [passe o pleonasmo] um jogo intelectual ainda hoje, apesar de tudo, interessante, cativante, jogar com as palavras e as ideias: "justiça", "não se pode medir" etc. etc.
A minha ideia, perante tudo aquilo que disse, é todavia, que neste caso não passa, na realidade, disso: de um mero jogo---jogo analítico, jogo intelectual---envolvendo um considerável grau de inadequação à realidade ou, como poderíamos daquela perspectiva estritamente moral dizer: uma, demonstrável dose de... 'injustiça'...
[Imagem ilustrativa, Pintura de Francisco Rebolo, 1936, extraído com a devida vénia de Todos Somos Portugal]