terça-feira, 31 de agosto de 2010

"«The Quatermass Experiment», de Val Guest [1955]"


A primeira coisa que impressiona no filme de Guest é, para além da evidente economia de meios técnicos utilizados [algo que "grita", a cada momento, "Televisão!" ao mesmo tempo que vai---num tom, aliás, em tudo semelhante---denunciando a "origem Hammer" do filme...] a, mau grado isso, extrema sobriedade e a assinalável eficácia global da narração.

É, de resto, esse um dos atributos mais notórios [e mais positivos!] que a Guest [e, muito em particular, ao argumentista Nigel Kneale] são mais comummente reconhecidos pela crítica e pelos historiadores: o modo como lograram renovar a teatralidade da linguagem televisiva [houve quem, a propósito do "genre" onde este "The Quatermass Experience" devia, por isso, supostamente ser integrado, tivesse utilizado a expressão "docudrama"] desde logo---um pouco "à Orson Wells" mas recorrendo a mecanismos de referenciação cultural subconsciente incomparavelmente mais subtis e apenas aparentemente "inocentes"---com, por exemplo, a "citação" das obras, à época ainda muito recentes, introduzidas pelo governo inglês na abadia de Westminster para a coroação da rainha Isabel, algo que trazia óbvia---e muito astuciosamente, repito---a problemática da "invasão" sobre a qual o filme gira para o centro do imaginário colectivo mais possivelmente inglês, jogando aí com terrores muito profundamente enraizados [a 5ª coluna, a blitz, os bombardeamentos sobre Londres como parte do projecto de invasão da Grâ-Bretanha nos anos 40 do século passado] muito aptos a "significarem" ulteriormente, de um modo ou de outro, todas as várias leituras que, como adiante se verá, do filme pudessem [e continuem a poder] ser feitas.

Apesar desta matriz inglesa muito clara, a produção recorreu a dois actores norte-americanos [Margia Dean, de resto, dobrada, no filme e Brian Donlevy] dos quais este último não seria exactamente bem-amado pela crítica [havia uma reputação de consumidor excessivo de álcool que a ele andava consistentemente associada] nem, aliás, pelo próprio argumentista que terá considerado a interpretação que Donlevy faz da personagem do professor Quatermass demasiado rígida, pouco flexível e pouco expressiva ["wooden" é um dos termos utilizados para descrever a sua actuação e especificamente o seu rosto].

Devo dizer que, pessoalmente, discordo das [no mínimo...] fortíssimas reservas de Kneale relativamente ao trabalho de Donlevy: entendo mesmo que, para além de ter sido [não apenas o filme como a série da BBC onde ele se origina e de que curiosamente restam apenas dois episódios] um marco nas "estórias de invasão" ["take-over tales"] e um antepassado ilustríssimo de filmes, hoje-por-hoje, de culto no "genre" como, por exemplo, "The Invasion of the Body-Snatchers" de Philip Kaufmann ou mesmo a famosíssima série "Alien", hoje-por-hoje incomparavelmente mais conhecidos, apreciados e citados]; discordando de Kneale, devo dizer, pois, que considero que há um outro interesse e uma outra originalidade possíveis no conteúdo, chamemos-lhe: latente, do filme de Guest e que se prende---justamente devido à forma cortante e intratável como Donlevy aborda a personagem de 'Quatermass'--- com o que parece ser a crítica a uma visão excessivamente tecnocrática e desumanizada da tecnologia, uma apocalíptica versão histórica da qual estava ainda tragicamente "fresca" na sociedade britânica [e não só...]---ela, 'versão', que havia, nas duas décadas imediatamente anteriores, conduzido o mundo a algumas das mais tenebrosas manifestações de selvajaria organizada, com recurso à técnica, culminando numa catástrofe literalmente à escala global, como foram o nazismo e a II Guerra Mundial com ele e, sobretudo, por ele trazidos...

É, no fundo, o velhíssimo mas sempre novo tema de Prometeu ou Ícaro retomado aqui num argumento onde tudo gira em torno de um cientista não exactamente louco, como é "da praxe", mas sem dúvida obsecado com os aspectos quase exclusivamente técnicos do seu ofício e, por conseguinte, em última instância, o "vilão" do filme---algo que a postura e, de um modo geral, a abordagem que Donlevy faz de Quatermass, nesse caso, serviria às mil maravilhas [1] .

E, se é verdade, que "The Invasion of the Body Snatchers" "é", como muita crítica tem por explícita ou implicitamente assegurado, "Rhinocéros" de Ionesco "explicado ao público de um cinema de bairro" e que "Rhinocéros", por sua vez, "nada mais é" do que uma sardónica "ópera bufa" teatral [um singularíssimo "zoopic", uma "fábula", na realidade] sobre o nazismo, parece-me, em certos momentos do filme, difícil não ver esse mesmo temário aqui plasmado pelo que os momentos finais do filme [esse famoso "Well, back the old drawing board!..." que aqui fica muito claro nas palavras finais de 'Quatermass'...] podem, afinal, ter uma outra leitura bem mais inquietante e mais, de resto, em consonância não só com o princípio envolvendo a ideia de dar continuidade à série [o que viria, de resto, a acontecer] mas, sobretudo, com um certo modo de acabar os filmes, especialmento os ditos "de terror" [Nigel Kneale não gostava do neologismo "sci-fi"...] deixando deliberadamente 'no ar' a sugestão-ameaça de um recomeço...

No que respeita aos efeitos especiais, o filme aparece, visto hoje, como comovedoramente rudimentar e cativantemente 'cru', no sentido anglo-saxónico do termo "crude": se a nave espacial das sequências iniciais é "pura televisão", o "monstro" [de facto, feito de luvas cobertas de pequenas plantas, accionadas pelo próprio Neale diante de uma ampliação fotográfica da catedral de Westminster] é francamente pouco convincente---e isto, para ser generoso...

Seja como for, a dinâmica narrativa de "The Quatermass..." é de tal forma envolvente e o tipo de problema que directa ou indirectamente suscita e traz à reflexão do espectador de tal maneira relevante que até isso acaba por passar para um plano, de alguma forma, secundário, relativizado, repito, pelo modo dinâmico, assinalaverlmente consistente e sempre muito sóbrio como a acção está construída, constituindo "The Quatermass Experiment", sem dúvida, um série B respeitabilíssimo que, se não envergonha quem o vê, não lança [longe disso!] tão pouco o opróbrio cinematográfico sobre quem o concebeu...

Era, suponho, Godard que dizia qualquer coisa como ser impossível amar um filme perfeito, privilégio reservado aos que o não são---o que sem dúvida qualifica, desde logo, "The Quatermass Experiment" [à frente de um número considerável de outros, aliás, às vezes, "com muito mais pano na carapuça" da fama] para tanto junto de muitos devotados cinéfilos como sem qualquer hesitação, rebuço ou reserva, admite humildemente ser, antes de mais e acima de tudo, o autor destas linhas...

NOTA

[1] A título de curiosidade [ou talvez não...] registe-se que Raymond Cartier, que colaborou com Kneale em diversas produções para além deste "The Quatermass Experiment" [incluindo uma adaptação de "Nineteen-Eighty Four" a partir da famosíssima obra de Orwell] era refugiado do nazismo, tendo emigrado ainda nos anos '30 para Inglaterra.

Sem comentários: