terça-feira, 10 de agosto de 2010

“«Amityville, The Possession» de Damiano Damiani"


Uma curiosidade: um filme “de terror” feito por um autor “neo-realista”, confesso admirador de Rossellini e De Sica ["Pela parte que me toca suponho ter sido influenciado por Rossellini e De Sica”, dirá numa entrevista a José Ángel Cortes]; o homem que trabalhou cinematograficamente Elsa Morante, Leonardo Sciascia [“Il Giorno della Civeta” é baseado numa obra do escritor] e Morávia [“La Noia”] e que fez cinema político com “Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República”.

É verdade que Damiani já tinha tentado o “western”, em “Eu Sou A Revolução” [“uma película”, dirá precisamente José Ángel Cortes que o entrevistou: “mal amanhada na qual os personagens não estavam à altura da ideia”] mas resultaria sempre irresistível ver como o cineasta “sério” que dirigiu “A Ilha de Artur” lidaria com um cinema francamente comercial e pop, ainda por cima trabalhando sobre uma temática já consideravelmente esgotada como a do filme em epígrafe.

E o facto é que Damiani não se sai nada mal da empreitada.

Amityville” não é [obviamente!...] um grande filme mas, tal como sucede com o “sub” cinema de Carpenter, por exemplo, possui o considerável mérito de não ser, em caso algum, ideologicamente desprezível nem gratuito.

Entre outras coisas, “Amityville” é [onde muitos filmes de terror configuram, em geral, um tipo de discurso estruturalmente conservador e mesmo reaccionariamente timorato sobre o “pecado”, sobre as culturas jovens e, implícita mas reconhecivelmente, sobre a impotência da sociedade em geral para lidar com ambas essas realidades]; onde muita da filmografia “de terror” era isto, dizia, o filme de Damiani representa muito mais esclarecida e muito mais inteligentemente uma espécie de reflexão fabular sobre a desintegração familiar nas sociedades modernas abrindo a porta à emergência do Mal.

Como Tobe Hooper fez com a televisão e a desumanização por ela induzida [e meticulosamente 'cultivada'...] em “Poltergeist” e Carpenter com o automóvel e a alienação de uma cultura assente na fetichização-totemização das máquinas em “Christine”, Damiani procede relativamente aos mecanismos de dissolução familiar assim como a uma certa violência latente nas sociedades modernas [note-se, desde logo, o modo como o pai nos é mostrado logo no início, i.e. como um educador violento relativamente ao filho e também o modo, “muito americano”, muito... N.R.A., como ele recorre ao uso das armas, que possui, aliás, em profusão, com uma facilidade, em si mesma dificilmente justificável].

O filme mostra com uma subtileza narrativa francamente apreciável [um site, na Rede, acusando-o embora de "pilhar" "O Exorcista", chega mesmo, por outro lado, a comparar alguns aspectos do trabalho de Damiani a Kubrick [*] e a Scorsese...] o modo como a família americana aparentemente normal e até ideal esconde, à semelhança da própria casa [uma metáfora da alma humana mas, de igual modo, da própria sociedade norte-americana, contendo um subterrâneo cheio de fantasmas, algo que já em “Poltergeist” de Hooper, por exemplo, surgira como o elemento verdadeiramente desencadeador da acção: a Némesis índia que aqui regressa, aliás, um tanto... "envergonhada" mas, apesar disso, de um modo perfeitamente reconhecível]; o filme, dizia, mostra como a família americana esconde por debaixo da aparente normalidade subterrâneos de maldade e disfuncionalidade e é, afinal, por diversas razoes que se prendem com uma realidade que é cultural---e cultual! [mas, de igual modo, histórica e, por conseguinte, colectiva] frágil e vulnerável, sobre ela impendendo, de forma mais ou menos permanente, o espectro aterrador da culpa e do consequente castigo, algo francamente puritano, fortemente arraigado à tradição mental e cosmovisional ianque mas algo, também, que outros europeus como Simone de Beauvoir, por exemplo [que, através sobretudo da sua relação com Nelson Algren conheceu seguramente bem diversos aspectos tópicos da “Americana”] já haviam identificado com perfeita clareza.

No conjunto, este “Amityville” é um filme que não envergonha quem o fez tal como não embaraça quem o vê---uma obra onde se destaca uma excelente intérprete [a mãe, papel a cargo da actriz Rutanya Alda].


[*] Para além da cena referida no site em causa [bokadoinferno-dot-hpg-dot-ig-dot-com-dot-br] aquela em que o crucifixo aparece tapado com um lençol há, de facto, uma outra em que um rio de sangue corre pelo set e que evoca irresisativelmente "The Shining" de Kubrick tal como a propósito de outras ainda, no fim, é impossível não pensar no já citado "Exorcista".


[Na imagem: Rutanya Alda, Diane Franklin e Burt Young em "Amityville, The Possession" de Damiano Damiani]

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