Uma ideia [não sei se é legítimo que diga: uma "tese"] que venho defendendo, há muito, assenta na ideia de que, para o capitalismo de hoje, a "solidariedade", interna e externa, e, de um modo lato, a "generosidade", colocadas exactamente onde o socialismo coloca o internacionalismo, se tornaram paradoxalmente essenciais tendo em conta a respectiva sobrevivência material.
A sobrevivência material de um modo de produção, precisamente ao contrário do socialismo, nuclearmente assente na concorrência e no interesse...
A verdade, porém, é que, vivendo primária e in/essencialmente, da «desigualicidade estratégica» que introduz a montante de si [e como «pressuposto funcionante» de si!] nas sociedades onde impera, i.e. assentando toda a sua lógica e a sua possibilidade nas desigualdades des/estruturais que gera e de onde retira, de facto, a sua própria ideia de "valor", o capitalismo apenas pode subsistir se dentro desse quadro primário de "desigualdade estratégica" que gera a fim de extrair "valor" de tudo, conseguir manter [é esse, de resto, o papel histórico do Estado dito "social"!] valores de estase [ou seja uma ecologia económica, social e política] determinados e precisos.
A partir de determinados valores de ruptura dessa "ecologia" [isto é, a partir de deternminado nível de «disfuncionalidade possibilitante» introduzido nas sociedades e nas classes sociais onde se instala e onde opera o sistema torna-se objectivamente insustentável e bloqueia.
Onde há capitalismo, há necessariamente aproveitamento de matérias-primas alheias.
Então, há também a necessidade de impedir que localmente, nas sociedades e nos países de onde provêm essas matérias-primas, se desenvolvam indústrias que possam naturalmente utilizá-las retirando-as da exportação e, por conseguinte, impedindo que cheguem aos países importadores onde vão alimentar a produção de "valor".
Mas não só: é vital [e para isso volta a servir o Estado na forma de exércitos e alianças militares, no duplo sentido da palavra "aliança"...] que também outras potências acedam às mesmas matérias-primas---pelo menos, em iguais condições de aquisição.
É isso que explica as guerras como a que decorre mais ou menos em permanência no Afeganistão, por exemplo e as invasões como a do Iraque, circunstâncias que devastam os países em questão, impedindo-os de estabilizar e de se desenvolverem mesmo somente de acordo com os padrões de desigualdade estável e des/estrutural do próprio capitalismo.
Só que essas políticas de esvaziamento sistémico local, em sentido lato, possuem, por vezes, lógicas e dinâmicas próprias que o próprio sistema não prevê e sobretudo não controla por inteiro---e as guerras em questão acabam por se transformar em sugadouros de capital que obrigam os países que as fazem a ter de, por outro lado, fazer concessões [como os E.U.A. à China e à Rússia e aos respectivos interesses geo-económicos e geo-políticos] com que não contavam e que vão, por sua vez, pôr política e geo-politicamente em causa os interesses da potência que desencadeou todo o processo.
Surge, então, a necessidade de "agir civilizadamente", isto é, de a potência ou potências militaristas se comportarem como verdadeiros Estados tolerantes, "solidários" e "pacíficos", senão mesmo ocasionalmente... "pacifistas".
O pacifismo e a tolerância surgem, assim, como uma necessidade secundária ou até mesmo terciária puramente instrumental de recuperar equilíbrios estratégicos, internos e externos, que a lógica inicial tinha acabado por romper.
A História recente da Europa fornece um óptimo-péssimo exemplo de tudo isto com Hitler e o nazismo cujas políticas expansionistas de pilhagem de matérias-primas e conquista de colónias que correspondiam obviamente, numa primeira fase, aos interesses vorazes do grande capital alemão que apoiava Hitler acabariam por dar origem ao quadro de democracia funcional para cujo seio o grande capital financeiro alemão, mesmo ainda antes do final da guerra, transferiu o seu apoio ou o seu investimento político quando perceberu que apenas "democratizando-se" e tornando-se "pacífico" lograria conservar a sua posição e o seu estatuto de verdadeiro e efectivo poder na Alemanha e fora dela até onde chegavam os seus interesses e a sua influência.
É por isto que é possível [e que é correcto!] dizer que a paz "deu um jeitão" ao poderoso capitalismo germânico na sua estratégia de sobrevivência a qualquer preço relativamente ao final da guerra e à queda de Hitler do mesmo modo que a "solidariedade internacional" inevitavelmente vai dar a uma "Europa" que começa a revelar-se dificilmente capaz de lidar com os movimentos migratórios que resultam, em última análise, de políticas de esvaziamento económico sistémico e "estratégico", destinadas a abrir caminho [e a manter aberto o caminho] aos fluxos constantes de matérias-primas da periferia para o centro do próprio modo de produção.
Ou seja: começam aparentemente a entrar em ruptura os valores ecológicos de rarefacção e desigualdade sistémica que o próprio capitalismo teve de criar e cultivar a fim de poder prosperar ou até mesmo simplesmente funcionar.
É claro que há os Berlusconis, os Finis, as extremas-direitas xenófobas que apenas querem ou dizem querer devolver os imigrantes [e às vezes não só: às vezes, com a água do banho, vai também o menino que é como quem diz com os verdadeiros imigrantes vão também muitos que o não são, apenas vêm de outras etnias que não as que o racismo, regendo-se por padrões arbitrários de cor ou fisionomia, "permite"...] para os países de onde provieram e onde não existem indústrias capazes de fixá-los ou até simplesmente alimentá-los.
Mas esses, de facto, não contam precisamente porque as análises que fazem da realidade social, económica, geo-económica, histórica, etc. se caracterizam pela superficialidade e, de um modo mais lato, pela total incapacidade para perceber o mundo em redor e antecipar as respectivas formas e modos, a prazo.
Também internamente, pois, a necessidade de "ser social" se impõe como pressuposto e condição de sobrevivência do próprio capitalismo: há, aliás, como é sabido, partidos que, simulando astuciosamente agirem "à esquerda do regime", jogam tudo ou quase tudo em termos daquela sobrevivência na defesa do que afirmam ser a "generosidade e/ou o empenhamento social solidário" cujo suporte ou suportes institucionais [o tal Estado Social] na prática, porém, desmantelam gradualmente, por inteiro.
O grande problema do regime [um problema que eu, pessoalmente, considero objectivamente insolúvel e, por isso, me permito avançar a tese de que, como sociedade histórica, nos acharmos perante, não um fim da História mas seguramernte em face de um verdadeiro---e, em tese, decisivo---"vértice civilizacional" que nos vai obrigar a rever praticamente tudo dentro da História e dos nossos modos de protagonizá-la a partir da Economia e da Política]; o grande problema do regime consiste, dizia, em seguir alimentando o Estado funcional [dito erradamente "social"] nos tempos que correm e com a «disfuncionalidade sistémica» do próprio regime a romper já o «equilíbrio funcionante» até há pouco existente entre o capital constante [i.e. a quantidade de conhecimento transformado em tecnologia usada na produção contínua de capital] e o capital variável [ou seja, a mão de obra que deveria por sua vez converter-se ulteriormente em mercado e que desactivada não pode fazê-lo sem uma mudança drástica no modelo "social"] no interior mesmo do próprio modo de produção.
É isso, aliás, que nos diz um texto do "Público" de 28.08.09, escrito por Carlos Fiolhais ["Portugal Desigual"] onde são citados valores numéricos que ajudam a perceber e a quantificar, no fundo, tudo quanto tenho vindo a dizer.
Escreve o autor por exemplo, citando uma obra inglesa ["The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better"] da autoria de Richard Wilkinson e Kate Pickett que "chamam a atenção para o facto de se nos países onde há maior desigualdade de rendimentos que há também maiores problemas sociais e de saúde, designadamente maiores taxas de criminalidade, de obesidade, de doenças mentais, de gravidez na adolescência, de insucesso escolar, etc. : os vários indicadores relativos à incidência deste tipo de maleitas estão bem corelacionados com a desigualdade social. Claro que correlação não implica uma relação de causa-efeito, mas Wilkinson e Pickett dizem-nos que essa desigualdade coloca um país sob grande tensão, gerando dificuldades acrescidas para todos: não são só os pobres, que sofrem sempre com o seu estado de marginalidade social, mas é também o resto da população de um país---classe média e ricos---que fica pior. Como resume o subtítulo: Sociedades igualitárias funcionam quase sempre melhor".
Citei o artigo de Carlos Fiolhais porque se trata de um autor insuspeito de ser comunista e estar, por isso, sistematicamente, "contra" o regime económico-financeiro e político em que vivemos.
De facto, aquilo que eu penso sobre esta matéria das desigualdades é berm maias grave ainda: por um lado, penso, como já por diversas vezes, afirmei que é uma questão sistémica e portanto que a geração de "dificuldades" como diz o artigo não depende, em última instância, da boa ou má vontade de quem protagoniza e de quem gere o próprio sistema: depende sim de factores endógenos cíclicos que o Estado dito "Social" e a que eu chamo por razões que julgo em si mesmas claras, «o Estado instrumental» foi conseguindo até há pouco mais colmatar do que propriamente controlar.
Mas, mais grave ainda do que isso, divirjo do artigo em quantidade, digamos assim, também no ponto em que considero que o problema vai muito mais além da obesidade ou do crescimento das taxas de criminalidade.
De facto, o problema é o da esquizofrenia assistémica do próprio modelo a qual eclode a partir de um certo valor teórico de inserção de tecnologia no próprio modo de produção, valor-charneira esse que, uma vez atingido, induz a desecologização atrás referida i.e. leva à ruptura da estase capital variável-capital constante, introduzindo um autêntico «corte epistemológico» na ideia cultu[r]al e política teórica mas também prática de "indivíduo", de "pessoa" e/ou "cidadão" que o sistema deixa de ser capaz de reintegrar continuamente enquanto produtor, necesitando, todavia dele, "mais à frente", como mercado.
Ora, se o Estado deixa, por sua vez, através da redução drástica do investimento no social, de ser capaz de capitalizar todo o modelo, a consequência apenas pode ser a falência dos diversos deste e a respectiva "morte".
É verdade que o caminho para a dilação desta só pode ser o da reinvenlção e da repossibilitação das formas de "generosidade sistémica" que permitiram ao modelo ir-se sobrevivendo.
O problema para o sistema é que isso, daqui em diante, só é já, em tese, possível com aquilo que, em meu entender, "já é Esquerda": verdadeira Esquerda: a reconsideração nuclear do papel económico e político da propriedade.
Ou seja: a "generosidade funcional" pode adiar a falência do sistema e, com ele, de "uma certa imagem da História" e de todo um quadro civilizacional em si, até mas apenas a verdadeira solidariedade que é estrutural e não funcional; que é política e não apenas ou não realmente económica pode salvar a História de se afundar com a economia "que contém".
[Na imagem:Specimen extraído com a devida vénia de graphicnovelart-dot-com]
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