Quando, aqui no “Quisto” inseri, em tempos, uma nota verberando a lastimável hipocrisia envolvendo uma suposta defesa dos “direitos dos criadores intelectuais” por parte de entidades para quem estes na prática coincidem, afinal, rigorosamente com meros direitos de natureza comercial [“atentar contra os direitos da criação, para estas entidades, não passa, em termos práticos, de duplicar peças—filmes, cêdês, etc.—comercialmente protegidos, retirando, desse modo, os contraventores para si lucros que, por lei, competem sobretudo à indústria e ao comércio respectivos e de que estes não estão na disposição de abdicar]; quando, dizia, certa ocasião assim aconteceu, comentou um amigo meu que leu a nota em causa: “Ena! Tu agora até discutes Direito!...”
Discuto, de facto!
Porque, ao contrário do que gostam de pensar—e de afirmar—os especialistas, o Direito não é propriedade dos que o fazem: é-o, sim, dos que... o mandam fazer.
Dito de outro modo: é propriedade de todos nós, comunidade.
Não é, apenas, direito-com-letra-pequena dos que, por contratação social expressa “encomendam" aos especialistas um Direito-com-letra-grande o falar desse mesmo Direito: de facto, trata-se de um dever absolutamente inalienável no contexto dos vários deveres básicos de cidadania que nos cabem a todos como comunidade, independentemente de o respeitarmos e cumprirmos efectivamente ou não.
O ângulo de abordagem é que é distinto para “especialistas” e para “leigos”: aos “especialistas” cabe a discussão em torno da adequação ou não do Direito a si mesmo; a todos nós, está cometido o ângulo da adequação ou não do Direito a um universo ético que é, numa palavra, a nossa ideia colectiva comum de “Moral”.
Sucede que este ângulo essencialista precede o outro ângulo técnico, existencialista e/ou formal.
Enquanto leigo em matéria [ou ciência] jurídicas, eu não tenho, com efeito, de saber se uma determinada lei se aplica neste ou naquele caso concreto ou se, aplicada e em abstracto bem, o foi de forma circunstancialmente correcta ou não: esse é o âmbito dos técnicos.
Aquilo que eu tenho de saber é se essa lei se conforma ou não com uma ideia de Ética que é a da sociedade histórica, cultural e politica na qual vivo e em que estou inserido.
Posso, por isso—na realidade, devo: é um dever de cidadania!—ter opinião sobre o que entendo, no caso em epígrafe, como comecei por dizer, configurar um problema meramente comercial disfarçado [muito mal, aliás!] de artístico e intelectual: esse envolvendo a duplicação de objectos onde se encontram registadas obras de arte, cinematográficas ou musicais.
Melhor: entendo que é redutor considerar que o crime contra a criação intelectual e/ou artística se esgota na pirataria para fins de negócio dos suportes referidos.
Ou seja: fazer um alarido imenso [a ponto, por exemplo, de inserir agressiva propaganda anti-cópia nos próprios cêdês e dêvedês não distinguindo, aliás, de passo, a cópia para uso próprio da outra, da que visa a comercialização clandestina do respectivo conteúdo] e considerar, ao menos de forma implícita, que termina aí a defesa da criação intelectual dos artistas envolvidos na criação dos conteúdos em causa configura uma mistificação, de resto, extremamente comum contra a qual é meu dever, repito, em nome precisamente da genuína defesa do valor criação intelectual e artística, protestar, denunciando de todas as formas possíveis ao meu alcance.
De facto, como na ocasião tive ensejo de afirmar, quando uma televisão emite um determinado filme cortando-lhe quase dois terços [um de cada lado] mutilando escandalosamente, em nome não se sabe muito bem de quê, uma obra de arte ou quando o emite chapando-lhe em cima, alarvemente [como se faz… às reses no matadouro…] um “logótipo” qualquer que se obstina, com um mau gosto, um novo-riquismo e uma insensibilidade estética e cultural que raia por vezes o… coice do asno ou a pistola de que “o outro” puxava, imenso bruto e inegável alarve que era, sempre que “lhe falavam de cultura”; quando, dizia, uma televisão faz isto, ela está claramente a atentar, aqui ou… no Cambodja, contra essa mesma criação intelectual cuja “defesa”, tratando-se de dinheiro, tanto mobiliza certos sectores da «polícia cultural» a qual, todavia, aqui, tratando-se de um modo que, não afectando o respectivo comércio, afecta sim [e de que maneira!] a respectiva fruição artística se mostra estranhamente silenciosa e objectivamente "tolerante".
Este é, insisto, um caso [um dos muitos casos nessa situação] em que os cidadãos que não são juristas têm, no mínimo, todo o direito de se pronunciar justamente porque o que está em causa aqui não é se a lei que rege especificamente os direitos da propriedade artística está aqui ou ali bem aplicada mas se ela defende realmente a respectiva criação ou se se limita a defender, sim, os direitos [à luz de um certo Direito, legalíssimos, aliás!] do comércio que resulta da criação artística e a tem por base ou objecto, como, do meu ponto de vista, resulta ser efectivamente o caso.
Esclarecido este ponto em que mais uma vez está em causa algo—a consciência e a responsabilidade cívica activas—que se encontra na própria base ou no próprio coração da Democracia [cuja defesa compete, por outro lado, num certo sentido imediato e directo, ao poder judicial uma vez que o Direito no fundo outra coisa não é senão a vontade da própria sociedade democrática de passar de ideia a facto] diria que é, do meu ponto de vista essencial que percamos todos o receio absurdo de falar “das leis”, de abordar assuntos de natureza jurídica, desde que em… “alternativa” o não façamos inventando leis ou invadindo de outro modo qualquer áreas de natureza estritamente técnica, antes o façamos sempre daquela perspectiva da adequação reconhecível e demonstrável do Direito à Ética Social e Histórica de que acabo de dar um dos muitos exemplos possíveis.
É por isso, porque entendo, insisto, ser este um aspecto absolutamente chave do próprio pensar e do agir [do intervir] democráticos que me permito [não sendo jurista, não me canso de repetir] chamar aqui a atenção para um texto de Francisco Teixeira da Mota onde ele recorda [no “Público” de 04.10.08, num texto intitulado “A responsabilidade do Estado e a independência dos juízes”] onde se regista um fragmento da lei 67/2007 que me parece absolutamente crucial.
Trata-se, segundo o autor, de uma lei segundo a qual [e cito] “o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais […]”
Discorre Francisco Teixeira da Mota a propósito: “Esta simpática disposição, um afloramento do princípio geral do “Estado pessoa de bem” que todos gostaríamos de ver consagrado e praticado no nosso País consta do muito discutido regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas públicas recentemente publicado”.
Ora, como cidadão, permito-me concordar incondicionalmente com o princípio a que se refere o autor, isto é, melhor dizendo, com a filosofia a que ele faz alusão como estando na base da lei em causa.
O Estado só em teoria, em termos teóricos, só no plano da reflexão filosófica e política, é uma entidade abstracta.
Para todos os efeitos da vivência cidadã é uma entidade concreta, com rosto, corpo ou corpos e muito em especial responsabilidade politica.
Ora, sendo o Direito, em última instância, um elemento absolutamente essencial no processo global de desejável conversão da Política [enquanto expressão operativa da própria Ética de uma dada comunidade humana com identidade jurídica, politica, nacional, etc. legal e legitimamente reconhecida como própria e independente] de ideia em facto, é fundamental que também no plano jurídico possua expressão demonstrável a apreciação e/ou o julgamento, a valoração, daquela responsabilidade, repito: originalmente política.
E é aí que, na esteira da lei e da filosofia que em meu entender lhe subjaz, intervém a minha tese envolvendo a criação de uma Mesa de Aferição Politica constituída à imagem do Tribunal de Contas com poderes sancionatórios formais para emitir sentenças onde a responsabilização por actos praticados no decurso do exercício da actividade politica mas com repercussões lesivas do interesse colectivo fosse reportada pessoalmente também ao agente que as decidiu.
Isto é: que à mera responsabilização politica expressa na não-reeleição dos maus políticos por causa de más políticas onde houvesse demonstravelmente [determinada em termos em tudo análogos aos que resultariam da acção de um tribunal vulgar] má representação do interesse colectivo devidamente comprovada; que, dizia, nos casos em que tal tivesse tido lugar à mera responsabilização política se juntasse a responsabilização jurídica e judicial formal pessoal na forma de eventual multa, censura, admoestação pública, suspensão temporária ou definitiva, etc. do agente directamente responsável, equiparando-se os actos comprovadamente considerados má representação [por negligência, incompetência, etc.] do interesse colectivo ao de crime público, dado tratar-se de agentes com poderes de representação da comunidade e agindo em seu nome.
É vital, do meu ponto de vista, que se crie e se consagre na lei e nas instituições em geral a ideia de que o politico responde sempre realmente perante a comunidade, não onde e como ele quer mas onde e como esta entende que melhor deve acontecer porque melhor serve também os seus legítimos interesses, no cumprimento da ideia-princípio referencial básica de que, em democracia, o povo cede sempre o exercício do poder, nunca o próprio poder e que é ao povo que compete, em tempo tão real quanto possível, validar a qualidade e a exactidão ou não com que foi levado a cabo esse exercício e a nenhuma outra entidade senão a ele.
2 comentários:
Boa malha! Particularmente sobre a parte do "direitos" de autor... não posso estar mais de acordo. Quase sempre não passam de uma aldrabice. Sobre a estória dos filmes e séries de televisão, teria muito para contar... :-)))
Abraço.
É verdade, Samuel! Um abraço cordialíssimo pela visita!
E... venham as "estórias", ham?
É preciso desfazer certos embustes e hipocrisias ligadas ao "tráfico da Cultura" e ninguém melhor do que quem conhece por dentro os mecanismos da mistificação e da exploração da criatividade alheia para expô-los a quem os não conhece.
Um enorme abraço, ham?
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