Um filme do desigualíssimo mas quase sempre, de um modo ou de outro, estimulante António Macedo.
Francamente interessante a mais de um título, o filme de Macedo [que possui a originalidade de pretender apresentar-se, antes de mais, como uma espécie de ilustração encriptada das ideias esotéricas do seu autor---propósito para o qual "inventa" e "enxerta" na "estória" original imaginada por Namora, um "segundo" filme de sua exclusiva responsabilidade que se propõe precisamente constituir uma espécie de contextualização doutrinária da narrativa-base] resulta, porém, do meu ponto de vista sobretudo importante, em termos históricos e cultu[r]ais mais latos, por constituir, juntamente com "Verdes Anos" de Paulo Rocha, por exemplo, um documento extremamente relevante da década portuguesa de '60, uma altura histórica, cultu[r]al e até [pasme-se!] política em que começa a ser difícil à ditadura manter o país isolado dos ventos de agitação e de mudança que vêm "de fora" [que vêm de uma África que começa a drenar substantivamente o País de energias e até de simpatias, internas e externas e inicia o gradual bloqueio do que à época se designava cautelosa---e cautelarmente...---por "o regime" mas que vêm, de igual modo, da Europa e que hão-de conduzir, por exemplo, ao Maio francês e às sucessivas repercussões que este viria a ter um pouco por todo o mundo]
O grande mérito de um Macedo ainda muito jovem e imbuído de lições cinematográficas várias [e fecundíssimas!] foi, a meu ver, o de ter, afinal, com ou sem propósitos de afirmação esotérica, sabido [como Rocha em "Verdes Anos" e, por isso, os citei juntos] traduzir em Cinema, em Cinema com maiúscula, aquilo que era à época a percepção que uma certa burguesia urbana intelectual [universitária, desde logo] tem de si mesma e do País.
De si mesma no País.
Baseando-se na obra homónima de Fernando Namora, o filme conta a "estória" de um amor impossível e trágico condenado à partida pela sombra imperndente e inevitável da Morte.
Visto no contexto histórico em que foi produzido, o filme [sobre o qual paira uma atmosfera opressiva e desesperada de "Fim", como no título famoso de António Patrício cujo nome e cuja Obra não cito aqui por acaso embora seja mais ou menos evidente ou, pelo menos, demonstrável que o propósito real de Macedo é o de discorrer de forma críptica sobre o que a sua perspectiva esotérica de abordagem do real entende serem os limites da possibilidade humana de conhecer] parece surgir como uma espécie de metáfora de uma sociedade tragicamente impotente para "curar" a realidade social e política que agoniza vítima de uma anemia justamente incurável que lhe cerceia os horizontes, lhe veda o acesso ao futuro, atirado tragicamente para esse "domingo à tarde" que nunca há-de chegar, esse simbólico "jour où l'on arrive jammais", porque a morte, o tal "fim" de que Patrício falava no seu drama ou um "fim" com evidentes analogias estruturais com ele, se interporá fatalmente.
Para além de alguns desplantes formais que, vistos de hoje, resultam quase ingénuos e, se calhar, não absolutamente necessários [ao contrário, o pormenor simbólico da língua "estranha" falada pelo "Impostor" e pelos outros personagens do "segundo" filme---que mais não é do que português reproduzido ao contrário---é originalissímo...], o filme joga muito bem com a frieza labiríntica e a secura claustrofóbica do hospital [um "não-lugar" ecoando a neutralidade da relação das personagens com o próprio real e uma referência tópica de absurdos no sentido preciso em que, existindo óbvia e primariamente para curar, revela afinal, a cada passo---reflectida verticialmente na figura desesperada de 'Jorge'---toda a sua trágica [e, admissivelmente metafórica] impotência a que Macedo atribui, aliás, um "significado esotérico" muito próprio.
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É [tendo sempre presente aquela dupla linha de leitura que a obra, em tese ao menos, permite] um filme ele próprio seco e profundamente desencantado, lento e narrativamente "pantanoso", assumidamente "circular" e "viscoso", quase sem música onde a angustiante cisão do País em, por um lado, uma elite intelectual urbana completamente isolada e impossibilitada de intervir para corrigir aquilo de que tem, como na própria "estória" original de 'Jorge' e 'Clarisse', porém, um diagnóstico mais ou menos claro e definitivo---consensual até, em muitos aspectos---e, por outro, um povo atrasado, naufragado entre as suas inúmeras limitações de visão histórica, de consciência social e política; um povo de estranhos, de quase oníricamente improváveis mujiks que parece saído do cinema social e politicamente surrealizante de Fellini e cujo destino parece ser o de sofrer sem sequer se dar conta dos fundamentos efectivos do seu próprio sofrimento.
O filme de Macedo "é" [e vale] sobretudo, [pel]a lucidez de um estilo, i.e. desse registo que o realizador foi capaz de encontrar e genericamente manter para "dar" esse País escuro, encalhado e dividido, esquizofrénico, forçosamente lento e até um pouco louco que, por vezes [como 'Clarisse'] parece procurar a vertigem desesperada do suicídio como única saída.
Um país no qual a tecnologia agride tanto quanto o desespero; um país "tête contre les murs" que começa gradualmente [e, como é natural, "por cima"] a dar-se aguda e tragicamente conta do "fim".
2 comentários:
Há uma memória que continuará a doer em todos os que viveram e sentiram a tristeza de um tempo da nossa História. Mas se essa memória e essa dor impedirem os branqueamentos desse passado, que se agitem, que gritem, que testemunhem!
:)
É isso, Amiga Ezul: é essencial que não se esqueça, é vital que não se branqueie.
Nós os que vivemos esse tempo de chumbo temos o dever absoluto de o não permitir!
Que bom saber que há, de facto, mais quem partilhe desse compromisso!...
Um beijinho cordialíssimo!
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