O "Expresso" de 24.07.10 incluía, entre os numerosos "exemplos" de palavrosa inutilidade que caracterizam o conteúdo habitual do semanário, uma reportagem sobre a "questão" do uso do véu islâmico entre as comunidades árabes residentes na Europa, designadamente em França e Espanha.
O tema é, de facto, cada vez vez mais importante e premente e, sendo bom que o "Expresso" o tenha trazido para as suas páginas, seria óptimo que todos nós, portugueses, aproveitando o ensejo fornecido pela reportagem de Paulo Gaião, lhe dedicássemos a séria reflexão que merece.
Nesse sentido e com esse objectivo em mente, é preciso começar por dizer que a questão do véu islâmico não é, de facto, a questão do véu islâmico: é muito claramente, como o próprio jornal sugere, uma questão de natureza económica e política que apenas pode ser resolvida no âmbito da seriíssima e cada vez mais urgente reflexão colectiva sobre o sistema económico hoje-por-hoje em vigor [e em profundíssima crise!] nas sociedades europeias e especificamente "europeias".
"Europeias" com aspas e "europeias" no plural.
A "Europa" como é sabido não existe: é uma ficção económica e financeira, pretextualmente política [ou ancilarmente politiforme] que reproduz, na sua génese, os defeitos gravíssimos em matéria de organização e [des] estruturação social, económica e política, de cada uma das sociedades/nações que a compõem onde, como tantas vezes tenho repetido, a "aparelhagem institucional" da democracia é instrumentalmente utilizada, de forma habitual e consistente, de forma substantiva, como dispositivo de legitimação formal da infra-estrutura económico-financeira estável, fixa, solidamente "aparafusada" ao "chão da História", "chão" esse de a "Política" opera sempre como mero "revestimento politiforme" móvel e insubstantivo em si mesmo.
Essa ideia de que a "democracia" deva responder na realidade [de facto, senão completa e assumidamente de direito] perante o modelo económico-financeiro que lhe subjaz e não, de forma autónoma e substantiva, perante a sociedade ou sociedades e os seus interesses colectivos básicos, essenciais e legítimos, no seu todo, adequadamente expressos de forma naturalmente independente das respectivas formações ou formulações de índole instrumentalmente possibilitante como a própria economia constitui mesmo, a meu ver, o que poderíamos chamar "o erro de Descartes" das formas mais comuns de "democracia" vigentes nas sociedades do Ocidente, hoje.
Essa ideia de que a Democracia é, na realidade, "um capítulo funcional da economia" e não um domínio genuína e intrínseca, indissociavelmente político vem há muito contaminando e disfuncionando todo o modelo civilizacional ocidental, primeiro, no plano nacional, nos diversos planos nacionais e, em seguida, no "europeu".
Já por diversas vezes me referi, nos mais diversos lugares e ocasiões, à ideia, estritamente pessoal, de que, longe de estarmos como realidade económico-política, como sistema, a viver a 'simples' "crise" de que todos falam, estaremos, isso sim, próximos de atingir um verdadeiro "vértice civilizacional" cujo fundamento disfuncional se situa basicamente no modo como o capitalismo geriu a integração sistémica do conhecimento convertendo-o sempre topicamente numa propriedade e num primeiro capital destinado a ser utilizado significada e estreitamente na re/produção contínua do próprioo capital e a prazo como vertente necessariamente desequilibradora da equação capital variável/capital constante sobre a estase global da qual assentara, "tant bien que mal" mas ainda assim reconhecivelmente, a ecologia do modelo nou modo de produção industrial.
Ou seja, fala-se hoje, continuamente na crise [ou mesmo alguns no fim] do chamado "Estado social"; a hipótese muito séria que eu ponho é a de que deveríamos [a Esquerda seguramente!] já estar sim a equacionar, em termos tanto práticos como, siobretudo, para já, teóricos, a viabilidade ulterior do próprio modelo demo-capitalista como tal e, muito em particular, os modos de considerar a forma sistémica do respectivo "aftermath" institucional mas também civilizacional de um modo que não repita ou não replique simplesemente as taras e os defeitos do modelo anterior ainda vigente.
Concretamente nas relações internacionais, trata-se de [deixem-me que recorra aqui uma terminologia pessoal que julgo, porém, suficientemente eloquente e expressiva] "des-reduzi-las" ou mesmo "desrelativizá-las" da ideia de "mercado" que as tem, no in/essencial [no caso "europeu", isso é evidente!] obsessivamente caracterizado, recorrendo à teoria [à "velha" e nobilíssima ideia do "internacionalismo", um motivo-chave do ideário da Esquerda] a fim de, no limite [e por paradoxal que possa imediatamente parecer...] repossibilitar não apenas diversas formas de "ecologia social e política" interna, hoje-por-hoje também elas em profunda "crise" conforme reporta o dossier do "Expresso", como, no limite, o próprio mercado cuja crise não é, nos tempos que correm, menos evidente, sendo até, para alguns [a meu ver e por quanto já vimos, muito redutoramente, mas enfim] a causa mater da própria "crise".
Ou seja, é vital que percebamos que só generalizando sistémica e também estrategicamente formas de verdadeira democracia económica global [o que implica, desde logo, à partida, reeequacionar por completo o papel do conhecimento na forma sobretudo---mas não só...---de tecnologia na produção de capital assim como o próprio objectivo ou objectivos finais da produção que hoje se limita, de facto, à de... capital, o produto real do modo de produção de onde derivam diversos "subprodutos" que não passam do respectivo conteúdo aparente: os bens de consumo]; é vital que percebamos, por outras palavras, que só libertando a política da sua presente condição de refém [as] sistémico da economia vendo nela um meio de humanizar todo o processo ou processos de produção de bens; só assim, dizia, restabelecendo, pois, a ecologia global do desenvolvimento é possível por um lado evitar as crises [que não são abstractamente "da economia" mas do modo como ela se posiciona relativamente à Política e à própria Civilização] e, por outro, controlar os surtos de disfuncionalidade social e política cada vez mais frequentes e tópicos e de que a xenofobia é apenas o rosto ou dos dos rostos imediatos.
Ou seja, dito de outra forma ainda: o velho modelo des-igual e, no fundo, realmente unidireccional do colonialismo clássico [que foi possível assegurar em determinadas circunstâncias tecnológicas e populacionais associadas, desde logo, às quantidades de tecnologia existentes "em suspensão" nas sociedades envolvidas no processo assim como à sua relação mais ou menos estável e até, num certo sentido, estrutural com as de capital variável igualmente delas contantes]; o velho modelo do colonialismo clássico encontra-se historicamente esgotado e só novos paradigmas de relacionalidade global baseados em formas politicamente muito mais avançadas de redistribuição global da economia e da capacidade estrutural local para gerá-la e fixá-la localmente em condições de incomparavelmente maior igualicidade podem permitir não apenas económica mas também social e políticamente a realidade concreta de um Progresso.
Não é por muito mais tempo possível continuar a drenar sistemática e, sobretudo, sistemicamente as diversas economias marginais, instrumentalizando-as no sentido de continuarem a alimentar unilateral, contínua e sobretudo exaustivamente as economias centrais, esvaziando [ou permitindo sem intervir que permaneçam marginalmente esvaziados em nome precisamente da própria natureza intrinsecamente des-igual do modelo] a capacidade produtiva e originando, desse modo, maciços movimentos migratórios para o "centro" onde, devido exactamente aos novas paradigmas de relacionalidade sistémica entre o capital constante e o capital variável, o seu papel é ulteriormente excedentário]; não é, por muito mais tempo, possível assentar nesse modelo a própria ulterioridade do sistema sem gravíssimoas consequências de natureza social e política como aquelas que o "Expresso" reporta no caso francês e cujo sinal exterior é a "questão" do véu islâmico.
Quando, como reporta o jornal, 40% da população dos guetos suburbanos franceses se encontra desempregada [e está-o porque a própria dinâmica interna e externa do capitalismo francês força a essa situação na medida em que a importação de matérias-primas de que se alimenta a sua indústria e a própria ultra-economia que a partir dela se forma pressupõe nuclearmente a "rarefacção industrial significada" no plano local] [1]; quando assim é, dizia, e quando as perspectivas sistémicas internas e externas não variam [aprópria "Europa" como comecei por dizer mais não faz do que internacionalizar as disfuncionalidades dos próprios modelos locais] que outra coisa esperar senão que qualquer "questão" [2] como esta do véu que agora tende circunstancialmente a polarizar as diversas insatisfações envolvidas no próprio processo que aqui estivemos muito sumariamente a analisar.
[1] É a velha questão da "justificação" histórica, política a até civilizacional do capitalismo como sendo capaz de "produzir riqueza".
De facto, como tantas vezes tenho dito, ele produ-la só que [a] a produz mas "se esquece depois de redistribui-la" equiatativamente pelo conjunto daqueles de quem se serve para produzi-la e hoje, sobretudo, para consumi-la: está-lhe vedado mesmo que o quisesse porque se trata de um sistema intrinsecamente des-igual e [b] apenas pode produzi-la, interna ou externamente, a partir da produção prévia de "quantidades significadas" de "carencialidade sistémica" de onde, na sua lógica particular, ele faz emergir o que chama "valor".
O "valor capitalista" é, pois, na sua in/essência, uma variável da quantidade de carência ou necessitação por esvaziamento sistémico possibilitante que a sua componente funcional "política" [sem esquecer a jurídica...] introduz como "pressuposto funcionante" do próprio sistema enquanto tal.
Hoje, com efeito, promover o desenvolvimento estratégico dos diversos mundos [daqueles que ainda o não fizeram mesmo daquela forma asmbiental e até socialmente discutível que conhecemos...]; dialogar com os povos no sentido de facilitar os diversos desenvolvimentos locais [em África, por exemplo, no caso português] não é apenas um problema de solidariedade e/ou generosidade desinteressada: configura, como disse, um desígnio civilizacional mas, também do ponto de vista do próprio demo-capitalismo em vigor, um verdadeiro pressuposto de sobrevivência material, objectiva, a vários [senão a todos!] os níveis.
[2] Utilizo aqui o termo "questão" naquele sentido significado muito específico que ela adquire em expressões ideogramáticas do tipo "question juive" ou "question homossexuelle", num certo sentido, uma "herdeira" cultu[r]al, concepcional e política da anterior, uma clássica forma de historicização e até de conceptualicização tópica da discriminação e da intolerância com os trágicos resultadosd que todos conhecemos.
[Imagem extraída com a devida vénia de "Flat Rock, The Journey Matters"]
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