sábado, 29 de maio de 2010

"Uma Consciência para o Mundo de Hoje"


Um dos grandes [um dos provavelmente insolúveis!] problemas do catolicismo romano tal como chegou até à actualidade, na sua versão canónica e "papólatra" [como lhe chama Fr. Bento Domingues num texto do "Público", cf. "Público" de 04.04.10 "A ressurreição da Igreja"] emerge da fortíssima [da fortíssima, dupla e tendencialmente bipolar] tensão que, sobre ele, essa mesma "actualidade", a "acutualidade cognitiva" [e "cognicional", que não é exactamente a mesma coisa] inevitavelmente há-de exercer.
Mas emerge, de igual modo---e emerge, de algum modo, até sobretudo!---do modelo em geral escolhido pelo catolicismo romano para lidar com essa mesma inevitável 'tensão epocal ínsita', chamemos-lhe assim.

É verdade que uma religião "revelada" não tem, por definição muito para onde evoluir, muito por onde 'crescer': limita-a [passe a redundância] naturalmente a sua natureza "revelacional" que é obviamente definitiva e, em mais de um sentido, terminante e final.

Há, todavia [e uma igreja astuciosamente "estratégica"; uma igreja que ao longo dos tempos sempre foi uma igreja muito imediatamente histórica e muito tentacularmente política---como designadamente a católica---devia ser a primeira a conhecê-los...] modos e formas---eu diria "sabiamente pragmáticos" para evitar dizer esclarecida e mesmo "educadamente cínicos"...---de fazê-lo [i.e. evoluir] não parecendo---como seria, desde logo, o de deixar, na prática, estrégica e inteligentemente "cair" certos conteúdos umbilicalmente ligados a uma estrutura ou um edifício epistemológicos, hoje-por-hoje e num mundo como o de hoje, manifestamente insustentáveis a não ser em sociedades "residuante e/ou consistentemente primitivizadas" [como a do sul dos Estados Unidos, por exemplo, onde a questão criacionismo vs. evolucionismo ainda hoje continua a ser... uma "questão"]

Em troca, há um papel social e moral [admissivelmente até civilizacional!] potencialamente relevantíssimo [num certo sentido: vital, mesmo!] susceptível de ser desempenhado a partir de 'Roma'---de uma Roma qualquer, aliás, mas esta é, em última análise, por um conjunto de razões hiastóricas e cultu[r]ais muito fortes, tão boa como qualquer outra...---que ela poderia com grande vantagem para todos [a começar por ela própria] desempenhar e que era o de "fiel" ou mesmo idealmente de "consciência" não limitadamente "moral" e muito menos absurdamente epistemológica mas mais alargadamente ética de um mundo onde ela ainda consegue, mau grado os constantes erros cometidos, ser ouvida, embora [exactamente, entre outras coisas, como resultado inevitável desses erros] com crescentes limitações e dificuldades: o "ocidental".

Se ela fosse, com efeito, capaz do "golpe de asa" de esclarecimento e de lucidez que consistiria em "empocher", em "pôr entre [sábios...] parênteses" a maior parte da carga de "conhecimento" e de "cognições" [todo um "estômago ou ventre cognicional"] que ela trouxe consigo imutável da "Idade Média" [das sucessivas "Idades Médias mentais, intelectuais, inteleccionais, etc." por onde errou sem destino ao longo de séculos] e não soube nelas deixar e de todo esse património potencialmente civilizador, agora sob forma inquestionavelmente mais mediata e menos politicamente interveniente do que dantes tivesse sabido construir um "espelho reflector consciencial", "reflexional" e, como disse, "ético" para o nosso tempo; se isso tivesse, dizia, podido acontecer e, em lugar do "estômago" ela se ativesse inteligentemente a um cérebro onde fosse capaz de converter em inspiração um tronco básico, cultu[r]almente transversal ou "transversante" de princípios de ética humanista e natural [no sentido que ao termo "natural" foi dado pelos enciclopedistas franceses quando falavam, por exemplo, de "religião natural"; se ela tivesse sabido operar em si essa "mutação estratégica" possivelmente vital para si e para a própria civilização, eu creio que haveria no mundo de hoje um lugar para a igreja que de outro modo não me parece francamente, de todo, que possa existir.

Mais: o papel de manter-se exactamente como está teimando em impor-se a um mundo [que, todaviu e sem que ela aparentemente tivesse dado por isso, "voluíu" significativamente desde a Idade Média ou a Contra-Reforma] com o estatuto aberrante de "referencial cognicional e epistemológico" e/ou "gnoseomórfico"; é um papel que eu não apenas constato que como, sobretudo, desejo que não exista porque a igreja "papocrata" [e escessivamente institucional, demasiado secular e inteleccionalmente ominipresente] das "aparições", das "guerras do preservativo" ou dessa inqualificável "cultura" de "apartheid de género" que se obstina em manter e que remete as mulheres para um limbo aviltante, inargumentavelmente ultrajante e obscurantista; a igreja-"conhecimento" que pretende dar lições de... "Tudologia Teórica" e ao poder político e à sociedade em geral, teimando cegamente, à revelia de qualquer forma demonstrável de esclarecimento ou de 'inteligência da realidade', em permanecer amodorrada no sonho, hoje cientificamente absurdo, de ser uma espécie de "gnoseologia" e "moral de Estado"; desejo, dizia, que essa igreja não exista pelo sinal de atraso mental, intelectual, cultural e civilizacional que a sua sobrevivência dá do mundo---e ao mundo ou aos mundos---dos nossos dias.

A igreja [ensimesmadamente "papocrata", repito, e escandalosamente política] teologicamente facilitista e intelectualmente medievalizante de João Paulo II ou a igreja inteleccionalmente retrógrada de Bento XVI [que mais do que encontrar maneiras epistemológica e, em geral, inteleccionalmente fundamentadas ou, pelo menos, fundamentáveis de "evoluir" se obstina---como, aliás, observa e reconhece explicitamente Fr. Bento Domingues no artigo do "Público" que astrás cito---em argumentar e, pior ainda, em tentar substanciar o seu próprio imobilismo e a sua extra-temporalidade mental "de episteme"]; essa igreja que fala continuamente para dentro---um "dentro" cada vez menos extenso, aliás---essa igreja consitui hoje-por-hoje, não mais do que uma bizarria, uma curiosidade e um objecto-de-feira sem lugar no Tempo e na História e condenada, por isso [graças a Deus!...] a desaparecer.

A igreja da "Congregação para a Doutrina da Fé" e da "Humanae Vitae", a da [como discrimina e enumera o insuspeito Fr. Bento Domingues] "recusa das críticas ao celibato obrigatório dos padres", a que defende que "as mulheres, por serem mulheres, escusam de pensar na possibilidade do sacramento da Ordem"; a que considera como princípio moral absoluto que os "divorciados recasados continuem a ser considerados católicos e a serem incentivados a ir à Missa mas a não poderem ["inexplicavelmente", refere de forma expressa Fr. Bento Domingues] participar na comunhão eucarística que devem [porém e contraditoriamente, relevo eu] recomendar aos próprios filhos"; a igreja-fábrica de "santos à la chaine" muitos deles evidentes marotos [velhacos e crápulas sem nome alguns, antisemitas por inata vocação e por aí fora] que mais digno seria piedosamente esquecer de uma vez por todas; essa igreja é uma aberração completa sendo que constitui um verdadeiro 'dever intelectual" e um genuíno "imperativo civilizacional' combatê-la e pôr-lhe fim sem demora em nome de um projecto de higienização civilizacional básico que, desgraçadamente para alguns países como o nosso, continua a tardar.

O próprio modo de relacionar-se com o conhecimento e as formas de representá-lo no tecido básico da Cultura, típico de uma certa igreja mental que se obstina em continuar a sobreviver-se não tem [nem deve ter!] qualquer lugar nos dias de hoje em nome do próprio progresso das sociedades humanas.

Falo especificamente da igreja que Fr. Bento descreve de forma clara neste parágrafo do artigo do "Público":

"A Congregação para a Doutrina da Fé---presidida durante muito tempo pelo cardeal Ratzinger---não foi capaz de viver descontraída perante o debate doutrinal e as novas exigências pastorais. Regressou à repressão dos teólogos que não reproduzissem o seu estilo. Amontoando documentos, julgou que podia parar as vertiginosas mudanças do mundo e ocultar os sinais dos tempos".

A pergunta-chave com que encerro esta reflexão, parte desta citação de um autor da igreja, de uma pessoa que a pensa e sobretudo se obstina em dá-la a pensar e é esta: pode-se ser mais claro?
É possível ser-se mais mais explícito?


[No topo: imagem de Richard Dawkins extraída com a devida vénia de contagemregressiva-dot-blogspot-dot-com]

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