domingo, 9 de maio de 2010

"«Odete» de João Pedro Rodrigues e «Alice» de Marco Martins" [Inc. por rever]


Depois de ter, por uma razão qualquer que desconheço [talvez, ignorância e insensibilidade natural, pura e simples...] decidido extinguir o anterior "Cinco Noites, Cinco Filmes" da programação da RTP2, determinou a televisão [ainda?] pública apresentar "casais" mais ou menos temáticos de filmes, aos sábados, num horário que começa depios das 22.30 e se prolonga até bem de madrugada.

Para alguém com responsabilidades dentro da "coisa", deve ser isto a coisa mais parecidacom fazer fomento da Cultura e especificamente, do Cinema que conseguem produzir...

Enfim...

Seja como for, no ânmbito do que chama "Sessão Dupla", passou a RTP2 ontem dois filmes portugueses: "Odete" de João Pedro Rodrigues e "Alice" de Marco Martins.

A uni-los e a explicar a sua junção num curtíssimo ciclo dual, estará a circunstância de ambos, de modos todavia bem distintos e diferentemente contextualizada em termos narrativos e concretamente cinematográficos, lidarem com formas de alienação mental.

É provavelmente, para além do facto cinematograficamente muito mais irrelevante e imaterial de serem ambos filmes portugueses, a única explicação para o "casamento" de ambos num único programa duplo.

Devo começar por adiantar, abordando-os, que se trata de dois filmes de intreresse e qualidade, a meu ver, muito distintos.

"Odete" parece-me, mesmo, um exemplo tópico do imenso equívoco [estético, cultu(r)al, etc.] que é hoje-por-hoje, o cinema português, de um modo geral.

Já aqui o disse: falta ao cinema nacional uma indústria que permita em tese resolver e legar a cada novo cineasta devidamente resolvidos certos aspectos básicos de linguagem cinematográfica que evitem, de uma vez por todas, que o cinema português se sinta tentado a reiniciar-se do zero [ou de muito perto deste em inúmeros casos] a cada novo filme.

Claro que a originalidade é um valor em Arte e claro, também, que a indústria não é [está longe de ser!] panaceia para os males específicos da expressão artística, podendo mesmo ser, verificadas determindas circunstâncias particulares, em vez disso, um problema adicional.

Claro, ainda, que em Portugal até já existe uma indústria do espectáculo [ou do livro, noutro plano distinto] e que isso não resolveu coisa alguma, nem bno cinema nem na literatura---pelo contrário.

O que quer apenas dizer que uma daquelas "circunstâncias" de que falo dois parágrafos atrás se verificou.

Claro ainda e também que é muito fácil dizer [decretar?] que o cinema nacional "precisa de uma indústria" para ajudar a resolver determinados problemas de linguagem mas a verdade é que uma indústria não nasce sem público ou públicos e estes, provavelmente, não nascem sem uma indústria e portanto, por aí, posta a questão nesses termos apenas, voltamos, afinal, ao zero.

Falta, obviamente, ao cinema português um Estado com inteligência e sensibilidade para formar públicos mas também para formar cineastas.

Públicos, primeiro, cineastas, depois.

O Estado que temos tido forma, sobretudo, por acção mas também por inacção, audiências, não exactamente públicos.

A este propósito, o caso da televisão pública é, aliás, paradigmático: basta passar os olhos pela respectiva programação...

O Estado que temos tido [de] forma, sobretudo, gente [e audiências] para esses desoladores e desesperantes Centros Culturais de Belém e/ou superproduções-La Féria cinematográficos que são as telenovelas e que é a estética-zero telenovelesca.

Quer-me, por outo lado, parecer que nas Escolas de Cinema existentes falta, de igual modo [é uma ideia minha que não as conheço o suficiente para apresentar esta hipótese como tese formal, devo com toda a frontalidade e honestidade dizer] uma perspectiva global que "cole" nos estádios finais da formação dos alunos as diversas conmponents curricularers [o argumento, a técnica, a direcção de actores, etc.] num único projecto que se fosse consolidando ainda dentro do âmbito do universo formacional académico.

Faltará uma filosofia, uma referencialidade teórica integrandora---não uma cartilha: um ponto de vista epistemológico definido, inteligentemente optado e corajosamente assumido---como a que existiu e imagino que continue a existir, por exemplo, no famosíssimo Actor's Studio com Stanislavski.

E isto porque um dos defeitos de compêndio do cinema português recente consiste [im?] precisamente na ideia de que um filme pode naturalmente dispensar-se de ser um 'objecto orgânico', obrigado a "contar uma história a partir de uma perspectiva, de um ponto de vista, pessoais que a individualizem e tornem [como dizer?] argumentativamente relevante para outrem que não o próprio realizador".

Isto é, um filme não tem necessariamente de ser uma reflexão [ainda por cima nunca completamente concluída, em muitos casos] sobre a matéria cinematográfica como tal que é o que são muitos dos objectos que passam correntemente por filmes, hoje, entre nós, feitos por portugueses; não tem de ser isso mas também não tem de ser um exercício de estilo ou, noutros casos ainda, tentando avulsamente reagir contra este esteticismo obsessivo de alguns, uma mera enunciação de factos, sem o suporte de um ângulo ou de uma ideia, cinematográfica ou não, pessoal e interessante ou "apenas" estimulante.

Ora, este parece-me ser, muito claramente, o caso de "Odete", o filme de João Pedro Rodrigues.

Se há coisa que gritantemente lhe falte é esse ângulo, essa perspectiva, essa "mensagem".

Falta-lhe uma visão global da realidade que dê verdadeiro significado àquilo tudo de que o filme fala ou que ele mais do enunciar, se limita, em última análise, a enumerar.

Nesse sentido, estamos claramente muito mais próximos da estética telenovelesca do que do Cinema.

É certo que, ao contrário da telenovela, o filme tenta "falar cinema" e, às vezes, até consegue.

O problema parece poder ser o de ele, no fundo, não ter realmente nada para nos dizer.

Ou melhor: de ter mas não ser capaz de se afastar o suficiente das coisas que vai filmando [pecha da imaturidade cinematográfica e de uma certa possível 'militância' que faz com que a adesão ao universo específico ali retratado seja dada por adquirida de forma implícita] a fim de pensar também sobre elas nunca deixando de dar a esse pensamento expressão cinematográfica autêntica, genuína, específica---e necessária, digamos assim.

Assim, como tudo "aquilo" nos chega, o que resulta é, por muito violento que possa parecer dizê-lo deste modo, uma espécie de "Freaks" de Tod Browning trazido para o século XXI de modo a incluir temas e motivos que à época do filme de Browning seriam pura e simplesmente impensáveis no cinema.

Não de "Elepant Man" de Lynch ou até de "La Strada" de Fellini...

Eu diria que, num certo sentido muito concreto, a perspectiva... a-teórica resulta basicamente a mesma do filme de Browning.

Se transpuséssemos o temário gay do filme para o plano etnográfico [que é algo que o filme acaba por ser, aliás, ele próprio...] por exemplo, teríamos quase inevitavelmente o típico filme "pitoresco" e a curiosidade como única [ou predominante, principal] reacção exterior.

A actriz principal, Ana Cristina Oliveira é demasiado inexpressiva e demasiado incaracterístico o modo como se movimenta ao longo de toda a narrativa [há um certo registo subliminar de "nouvelle vague" em algumas coisas que diz e faz e no modo como as diz e faz mas, em geral, aquilo não "sai", não impressiona, não convence] Nuno Gil não está propriamente mal [até poderia ser interessante jogar no contraste entre a sensibilidade e a delicadeza potenciais da personagem e o seu ar quase violentamente rude e ostensivamente revoltado] mas o papel não ajuda, de facto: não tem substância, não vive cinematograficamente---e esse é outro problema do filme: a "estória".

Não sendo uma "estória" realista haveria, mais do que em muitos outros casos, que cinematizá-la muito cedo, digamos assim, logo à partida, asinda asntes de as ideias sobre o filme começarem a formar-se, nele próprio e em cada um de nós.

Havia que falar do drama da solidão, da angústia existencial e da metamorfose limite imposta pela sede desesperada de amor com imagens mas imagens que não tentassem obstinadamente descrever senão que sugerir e mesmo recriar plasticamente essas mesmas 'figuras existenciais', chamemos-lhes assim, da solidão, da marginalidade, da angústia cultural, etc.

Nas realidade, o que faz um Wim Wenders, por exemplo, num filme magnífico recentemente reeditado em DVD, "Land of Plenty" onde as imagens e o seu fluir são aquilo que na fita "pensa" e "fala".

Ou o que o mesmo Wenders [e poderia citar inúmeros outros "casos" de outros filmes e de outros realizadores] no anterior "Der Stand der Dinge", igualmente editado em DVD e distribuído com um jornal diário.

E o que faz Marco Martins no seu "Alice", também, de resto.

Porque o filme de Martins não é, de facto---essa uma das suas grandes virtudes, aliás!---a "estória da menina que desaparece e que pai desesperadamente procura"": esse é o conteúdo imediato do filme.

O seu conteúdo real tem a ver com a solidão moderna, com a desumanização da vida moderna, a desertificação existencial das sociedades contemporâneas, o vazio das existências que nelas tão infatigável quanto mecanicamente erram em todos os sentidos---e isso é [i] uma perspectiva, um ponto de vista integrador, situador e significador de tudo quanto aparece no écrã sendo, ao mesmo tempo [ii] uma matéria que se transforma instantânea e até, num certo sentido, instintivamente em imagens [as câmaras, os écrãs sem cor, sem feições, oferecendo apenas fragmentos assustadoramente neutros e impessoais de um anonimato universal onde a---vou dizer assim deliberada e premeditadamente---personagem kafkiana e beckettiana de 'Mário' fornece o contraponto humano inevitavelmente levado pela onde gigante à desintegração final, sempre muito sobriamente dada, aliás, no écrã: sem exageros, sem excessos estéticos ou técnicos, sem demasiadas palavras, com inteligentíssimas pausas, esclarecidíssimas elipses no discurso, subtilíssimos gestos ou supressões deles, etc. etc.

A ideia de sugerir, a um tempo... o próprio Tempo, o tempo histórico e cultu(r)al moderno [o tempo da obsessiva e violenta "monitorização" da próprias existências individuais e colectivas] mas também frieza das relações entre os indivíduos [sempre mediados por alguma coisa que, por completo, os despersonaliza e torna meros objectos sem rosto---veja-se a fotografia da menina que não 'tolera' a aproximação de 'Mário', ficando, a dada altura, sem rosto, com o rosto num "blur" inquietante, um pormenor magnífico, muito bem cinematizado por Marco Martins e defendido por Nuno Lopes] a invasão do espaço de liberdade do humano, do indivíduo, com as câmaras é, de facto, notável de sensibilidade cinematográfica apontando ainda, de uma forma muito clara, para Orwell.

Mas também Kafkla anda muito subtilmente por ali---assim como Beckett: já se pensou como a busca de 'Mário', o "processo" a que se encontra submetido, é acima de tudo, uma busca, uma procura, uma espera por um Godot pessoal que nunca chega, como o do próprio Beckett, trazendo, finalmente, sentido não apenas à busca como a tudo o que a antecede e prepara?

No filme, Beatriz Batarda tem um desempenho fabuloso, Nuno Lopes apenas é traído pela voz [não se teria podido corrigi-la com um programa qualquer de computador?] e as sequências que mostram a errância louca de 'Mário', constituindo, assim como as imagens dos écrãs, um leit motiv unificador poderoso e eficacíssimo, possuem uma inquietante sugestão de obsessão e de trágica, desesperada, loucura que são as de 'Mário' mas também a de todo um mundo e de todo um tempo possuem uma força incrível que arrebata, a expressão definitiva e limite do vazio da sociedade contemporânea.

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