sexta-feira, 14 de maio de 2010

"Depressão e Tanatopia Nacional" [Muito incompleto e por rever]


Conversa recente com uma pessoa amiga trouxe, de novo, para mim, à colação aquela que é, do meu ponto de vista pessoal, uma das constantes mais estáveis, mais notórias e possivelmente mais distintivas até da "alma nacional": a tendência cultu[r]al para a depressão.

Não sou psiquiatra: falo aqui de 'depressão' num sentido admitida [e reconhecivelmente] pouco técnico; faço-o, pelo contrário, numa acepção não nenos específica mas muito lata onde uma sempre latente pulsão envolvendo uma persistente deriva [ou um persistente escape] necrólatras uma e outra, com expressão, a um tempo, popular e culta, consistente, no imaginário colectivo nacional mais tópico e constante [falo, desde logo, expressão artística] ocupam uma espécie de 'lugar teórico', em meu entender, absolutamente fulcral, chave mesmo, tendo em vista a compreensão da nossa identidade colectiva.

Nem de propósito, um "Expresso" que, por mero acaso, me caíu também ainda não há muito entre as mãos [a edição de o9.05.10] incluía uma entrevista com o coordenador nacional para a Saúde Mental, José Miguel Caldas de Almeida onde mais uma vez o tópico da depressão associada a uma certa possivelmente característica "portugalidade interior ou mental" é abordado.

Ora, eu acho que, quando se fala de 'depressão' neste âmbito mais técnico que o termo pressupõe para um especialista, aquilo de que estamos efectivamente a falar é, sobretudo, de um "sintoma", de um epifenómeno concreto---e, de um certo ponto de vista antropológico particular---em tese, sobretudo, circunstancial do mesmo tipo de fenómeno que observo, como disse, na Arte, na poesia, quer culta, quer popular, nacional.

O fascismo, a ditadura, teve o papel antropologicamente curiosíssimo de fazer desta espécie de para-pensar neurótico ou 'neurotiforme' nacional---desta que entendo poder ser vista como a "personalidade neurótica" portuguesa estável e hoje-por-hoje até tópica, a sua própria cura, por assim, dizer.

Quando se diz, por exemplo [e eu, seguramente, digo-o!] que o "cinema do fascismo" foi a 'comédia de enganos' dita "à portuguesa" [a comédia de Lopes Ribeiro, de Arthur Duarte ou de Cotinelli Telmo] porque esta permitiu converter eficazmente [e levar eficazmente às massas, difundindo-a generalizadamente entre elas] aquele projecto de "exiguidade" e/ou de "humildade feliz" que formou o essencial do 'sonho mental'---da distopia---fascista à portuguesa nesse outro projecto de "pequenez triunfal" que caracterizou, em termos cultu[r]ais ou, pelo menos, propagandísticos, os seus anos "de ouro" anteriores a 1945; quando tal se afirma, ia dizendo, é exactamente do tratamento dado por um regime, dotado de uma durabilidade forçada mas real na nossa História comum, ao fenómeno primário de persistente "depressionação nacional" generalizada de que temos vindo aqui a falar desde o início e que tem, a meu ver, origem no modo como o País conseguiu, a dado passo alcançar um lugar de invulgaríssima preponderância geo-política e geo-económica, lugar esse que perderia, como é sabido, nas escassas décadas que se seguiram ao seu próprio "século de ouro".

A minha tese, envolvendo uma reversão tanatópica nacional da percepção colectiva da decadência, é que radica nesse século de ouro nacional uma espécie de imagem/auto-representação paradisíaca, sob diversos aspectos mítica, nacional que, colada ao [e potenciada pelo] motivário crístico da "queda" directamente sobreponível, por sua vez, ao temário também ele especificamente crístico, da morte-e-ressurreição [um e outro temas fortemente enraizados na cultura, no património representacional, nacional] acabaria por se constituir em traço tópico da nossa consciência e da nossa sub-consciência colectivas, sofrendo as sucessivas maneiras ou os sucessivos modos e paradigmas de percepção e/ou conscienciação da nossa própria realidade histórica a partir daí, diversas "mutações" de forma e circunstância ao longo do tempo, mantendo, todavia, todas elas, diria eu, uma base conceptual estável e característica comum.

A chave que permite explicar a formação, e a emergência objectiva, desse modo consistenttemente decadentista-ressurreccional de ver a História é, naturalmente, a necessidade sentida por uma sociedade pobre e infeliz mas, sobretudo, por razões diversas, com muito pouca "vocação" para intervir histórica e politicamente na realidade com o objectivo de transformar efectivamente uma e outra i.e. de encontrar formas operativas de "redenção" colectiva as quais, devido, precisamente àquela falta, àquela historicamente persistente ausência de uma cultura de intervenção organizada na realidade apenas podiam ser encontradas [como dizer?] já fora ou já depois, de a própria História ter acontecido.

Ou como se a própria História mais não constituísse, na realidade, do que um mero estádio ou estação evolucionais apontando consistentemente para fora de si ou até, no limite, como se ela representasse apenas e realmente uma espécie de condição obrigatória e mesmo forçada---num certo sentido fatal---de libertação ou apoteose finais situadas já claramente depois dela ou depois de ela cumprida, por assim dizer.

Como se o verdadeiro papel [a verdadeira missão] da História fosse o de conduzir-nos sempre consistentemente como indivíduos e como 'povo' para uma meta-historicidade apenas atingível após o percurso---após o cumprimento da condição---quase abertamente expiatórios um e outra de uma História que se interpõe afinal entre a consciência e a sua realização plena fora dela.

É impossível não ver, diria eu também, por trás deste modo muito específico, muito particular, de conceber a "condição humana" assim como a própria "condição histórica" o eco muito claro da velha oposição matéria-espírito que é, de resto, ainda e sempre, aquilo que, na realidade, permite entender o mito da ressurreição crística e o do paraíso perdido, obviamente a esse associado.

É, nesse sentido, a "tanatopia nacional" uma cultura ou uma culturalização secundarizante da realidade ou, se assim quisermos dizer, uma deriva neurotorizante persistente, convertida, de forma secundária ou terciária, como disse, na sua própria cura ---ou, se assim preferirmos pôr a questão: em [ou numa] "cultura".

E, em seguida, numa "identidade", num projecto, em certos momentos da nossa História colectiva, assumido de "identitarização".

Quando se não consegue mudar a HIstória, muda-se, naturalmente, o seu lugar teórico [e até ideológico! E até, às vezes, sobretudo ideológico!] na consciência.

Não se valorizam cultu[r]almente os transformadores da História---e da acção!---mas naturalmente os negadores e/ou os téticos superadores de uma e outra.

Valoriza-se a natureza instrumentalmente mediúnica e providencial dos heróis que aparecem topicamente [veja-se a ideia de História que prevalece claramente durante a ditadura] como meros instrumentos da vontade [e executores pontuais de projectos de acticidade trans-histórica] superior [de Deus] e releva-se, naturalmente, a pequenez tendo presente a visão de que quanto mais humilde for o 'herói' mais obviamente conforme com o designio que lhe está cometido.

Num plano mais quotidiano [que o fascismo aproveita e explora, aliás, politicamente com muita eficiência até um dado momento da sua---e da nossa---Histórias comuns] essa conformidade efectiva com desígnios consistentemente meta-pessoais converte-se numa evidente valorização da fé na providencialidade de uma entidade superior [falamos aqui ainda e sempre de 'morte': aqui é a morte política que está em causa ecoando e concretizando na prática as que lhe pré-existem no inconsciente colectivo, na "cultura"] substituindo o papel da vontade e a acção individuais na transformação efectiva da História.

Aquilo que o cinema do fascismo faz [algo que é rapidamente compreendido pelas massas] na sua comédia é precisamente celebrar esta valorização da fé, da obediência... 'inteligente e moral' à fé em detrimento da própria tentativa de mudar a História, neste caso, a história concreta dos individuos e das famílias.

Se repararmos bem, nessa espécie de 'transposição moralizante' da comédia de boulevard que a ditadura faz [è revelia, aliás, do seu "ministro da propaganda", António Ferro que sonhava, como é sabido, com um cinema "de heróis" que contrariava a própria realidade dessa identidade tanatópica nacional tal como temos vindo aqui a tentar defini-la e explicá-la, contextualizando-a; se repararmos bem, dizia, na comédia "à portuguesa", existe sempre alguém que se tenta tomar entre mãos o projecto de mudar as coisas em seu redor, ultrapassando, de modo claramente identificado à partida com transgressão, determinados limites de estatuto e condição prévios, terminando, sempre, porém, a sua "estória" pela assunção da natureza indesejavelmente transgressora das respectivas práticas; pela reconfirmação da bondade natural da própria ordem estabelecida cujo triunfo no fim é sempre inequívoco; pela censura à "pouca fé" do transgressor que se antecipou à própria realidade, interferindo disfuncionalmente com os seus ritmos "normais" e, em larga medida, espontâneos, autónomos---quase diria: providenciais ou [como dizer?] às vezes, apenas re-providencializáveis---de funcionamento, digamos assim; e, no fim, pela reposição da ordem interferida pelo transgressor, naturalmente expiada com mil e uma peripécias [algumas delas de invulgar criatividade, é preciso reconmhecer!] a respectiva transgressão.

Ou seja, também aqui, repito, na comédia de Lopes Ribeiro, de Arthur Duarte, de Cotinnelli Telmo, a morte da acção é, no fundo celebrada e a pequenez valorizada.

As auto-representaçõers cultu[r]ais da portugalidade surgem-nos sempre, naquele sentido lato particular que comecei por referir, "deprimidas" mas nunca clinicamente depressionais, digamos assim.

Porque a ditadura lida com um círculo mental fechado---fechado a comparações com o exterior, desde logo---em cuja génese se situa, aliás, de algum modo, como modelo negativo, um período que se caracterizou por ter havido 'demasiada acção histórica e política' [o conturbadíssimo período do fim da monarquia e implantação república com a I Grande Guerra pelo meio e os afloramentos de acção revolucionária na Alenmanha, na Rússia e até em França, por exemplo]; porque assim é, ela dispõe de margem de manobra para impor e consolidar a sua própria ideia de [não] História, aquela que melhor convém aos seus próprios desígnios de natureza económico-política.

E pode assim criar e impor, com maior à-vontade e hipótese de sucesso, a sua própria ideia de uma História [e de uma Política] completamente imóveis e planas onde a as únicas formas de [in] acção valorizadas são as que, por ausência de acção precisamente, permitem à História operar sem interferências. apenas uma longa e ininterrupta reconfirmação.

Mas... se tudo isto pôde aparecer, pelo menos, durante alguns anos, algumas décadas, aos olhos da sociedade portuguesa de então---de alguma dela, em todo o caso, das suas massas amorfas de onde não emergiu ainda um verdadeiro proletariado capaz de agir organizada e até, às vezes, organicamente nos mecanismos de transformação histórica e política da siociedade portuguesa seguramente---como algo até em última análise de positivo [o País escapou a uma guerra, é pobre mas pacífico, é miserável mas "sério", etc. etc.] onde é que entra verdadeiramente a 'outra' depressão, aquela de que fala o coordenador de Saúde Mental atrás referido na entrevista do "Expresso" quando afirma existir, em sua opinião, "nos portugueses [...] um lado melancólico e depressivo claro" e quando refere que "as consequências da depressão [no 'caso' português] são tão maecadas que é [sic] a primeira causa de incapacidade em Portugal e nos países desenvolvidos?

Está ou põe-se o problema, diria eu, quando se rompe definitivamente o véu protector da consciência e da sub-consciência nacionais que foi a ditadura e o problema de como agir na História se passa a pôr a cada português individualmente e à sociedade portuguesa, no seu todo.

Quando, por um lado, "de fora" chega continuamente a "informação" e os "exemplos" que apontam no sentido de que a Hiastória e a realidade podem, afinal, ser objecto de transformação e de mudanças e todo o peso de uma não-cultura de intervencionalidade histórica passa a fazer-se sentir na sociedade portuguesa.

Com isso, chega a percepção individual mas, sobretudo, colectiva de que, afinal, em Portugal, nunguém sabe verdadeiramente como organizar-se para mudar a realidade.

Inexistem formas, inexiste uma cultura, inexiste um saber social e político, sedeado ou centrado numa classe capazes todas essas coisas de permitir construir uma nova imagem mais abstractamente positiva ou optimista da sociedade no seu todo.

Inexistem precedentes como Cronstadt ou como a Comuma francesa que possam, pelo menos, operar como um património simbolicamente gerador de auto-estima nacional no sentido em que, em França ou na Alemanha, por exemplo, a sociedade pode semptre lembrar ao poder em determinados casos como agiu quando particularmente pressionada em determinado momento e em determinada circunstância concreta da sua História.

Mais: esse conhecimento existe no subconsciente da classe ou das classes dominantes, é uma fronteira mesmo se apenas muito remota, um marcador concreto onde o reflexo de uma vontade nacional está queiramo-lo ou não---queiram-no ou não essas classes dominantes---definitivamente impresso e expresso.
[Na imagem: "O Regresso dos Heróis", colagem sobre papel de Carlos Machado Acabado]

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