Do Afeganistão, chega-nos [discretamente e, no fundo, como se esta trágica realidade da guerra, da brutalidade a ela naturalmente associada e da morte a que ela inevitavelmente conduz a uma escala inimaginável fosse hoje algo a cuja existência já todos nos habituámos e cuja realidade, por issdo, já ninguém questiona e se incomoda]; do Afeganistão, chega-nos, dizia, a notícia de mais um "acidente" envolvendo a morte de civis.
Civis que, nos também eles inquestionados comunicados de guera não são, afinal, civis: são sempre temíveis terroristas, assassinos sem piedade cujo desaparecimento deixa o mundo um pouco mais limpo e a guerra também um pouco mais ganha...
Foi assim em Angola, foi assim na Guiné, havia sido assim no Vietname, antes na Coreia, antes ainda em Little Big Horn ou no ghetto de Varsóvia, numa "reserva" qualquer algures no Arizona, é assim hoje na Palestina como um pouco antes fora na África do Sul, num infindável trajecto de abjecção e de barbárie, pelos vistos, sem pátria e sem fim.
O que há de medonho na guerra é, a meu ver, antes de mais qualquer outra vileza ou cruelade, este abrir formal do saco dos ventos da abjecção e da pura selvajaria que nega a própria civilização naquela que esta tem de mais dificilmente adquirido mas também de mais intrinsecamente digno e nobilitante da própria condição humana como tal; que a faz, como se dizia de Hitler e do nazismo, recuar o próprio relógio da civilização de volta à sua 'hora zero', não de qualquer forma teórica e/ou confortavelmente abstracta mas naquele exacto e muito concreto, muito reconhecível [e profundamente desprezível!] sentido em que entrega todo o trabalho de apuramento e realização material da "justiça" não já a seres humanos, a verdadeiros juízes que, com toda a falibilidade que rodeia e caracteriza as acções dos homens, são ainda, apesar de tudo, reconhecivelmente seres humanos genuínos, mas às armas e a essa aparência ou a esse repugnante e vil simulacro de humanidade que são os seres que elas usam para fazê-la.
Para que a "verdade" da guerra fique definitivamente demonstrada e "atestada" basta que destes saia a declaração de que os mortos eram, afinal [não o são eles sempre?---Magnífica infalibilidade a das armas dos vencedores que nunca se enganam nos alvos!] perigosos terroristas e nada mais se exige em matéria de esclarecimento ou até de simples luto.
Morrem crianças?
Não! Morrem terroristas em botão!
Morrem velhos e mulheres indefesas e completamente desarmadas?
Não! Morrem cúmplices dos primeiros, ardilosamente camuflados de gente---gente inimaginavelmente desgraçada e infeliz, entregue às feras que tão bem simulam exteriormente uma humanidade que tudo neles, porém, recusa e nega!
A guerra e as armas nunca erram: não disparam apenas projécteis cada vez mais mortíferos e sofisticados---possuem, além disso, o segredo da perfeita infalibilidade, miras que são outros tantos juízes e juízas seguros e perfeitos que num mesmo inimaginavelmente concentrado e apocalíptico instante julgam, sentenciam e executam sem uma hesitação ou uma falha os réus que vão, um após outro, implacavelmente, seleccionando sem parar.
Voltou a acontecer no Afeganistão, um destes dias.
Veio num ou noutro jornal, ouviu-se numa ou outra estação de televisão.
Indignaram-se uns quantos---aqueles escassos que estão atentos e a quem estas "coisas" da guerra e da inominável [e indesculpável] regressão civilizacional que ela configura ainda "incomodam", passaram adiante todos os demais, aqueles a quem o odor---porém, acremente... irrecusável e revelador!---dos crematórios não chama nunca a atenção nem acorda a consciência ou os outros para quem todo o Mal de é capaz um ser dito humano morreu quem sabe se de... fome e de frio num Gulag qualquer da Sibéria estalinista...
Os... "Hitler? Ni vu ni connu!", aqueles, os Henry Fords e tutti quanti para quem o autor dessa inqualificável abominação moral e inimaginável aberração intelectual que é "Mein Kampf" foi durante muito tempo um utilíssimo e eficaz 'combatente do comunismo' com algumas ideias, afinal, excelentes que justificavam o silêncio cúmplice e o lavar criminoso de mãos, são esses os maiores fabricantes de Hitlers [e de Bushes e de Netanyahus ou de Sharons; de Auschawitzes, de Treblinkas, de Baune-la-Rolandes, de Buchenwalds, de La Monedas, de Faixas de Gaza, de Guantánamos ou de Abu Ghraïbs] de que há memória---e, apesar de tudo e para vergonha desses [se a tivessem!...] e de todos quantos com esses partilham, nem que seja por cobardia e simples inacção, condutas e posicionamentos de monstruosa cumplicidade e de indigníssimo silêncio, ainda há memória, ainda vai existindo---e resistindo---apesar de tudo, memória!
Todos os dias ocorrem infelizes "incidentes" como o de ontem ou anteontem no Afeganistão ocupado;
..................................................................................
É a Morte?
Não, para alguns; para muitos em todo o mundo, para demasiados em todo o mundo, é simples [e cada vez mais naturalmente] a vida...
2 comentários:
Que posso dizer mais?
Que se pode dizer face a uma análise brilhante do que é a vergonha da guerra e a hipocrisia de quem dispara?!
A foto ? Impressionante e trágica, por isso a coloquei há tempos no meu blogue.
Quanto à música , é belíssima!
Tudo de bom.
É isso, São!
Se não for ISTO, que mais se pode dizer---ou fazer?
Mas, se muitos de nós, fizermos, como tu e eu, ISTO, aí, então, talvez alguma coisa coisa mude mesmo!
Um beijinho amigo e solidário!
Tudo de bom para ti, também!
Enviar um comentário