quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Cultura ou Mercado? A Opção É Sua--e Minha e de Todos Nós!"


Retomo aqui a questão da gratuitidade dos museus nacionais portugueses.

É para mim uma questão extremamente relevante---tão relevante que é mesmo essencial!---e prende-se obviamente, na própria base, com um conceito de Estado que, para mim, é, muito claramente, não tenho quaisquer problemas em assumi-lo, aquele que assuime, entre as suas competências e deveres básicos o assegurar a existência efectiva e permanente de formas básicas, devidamente institucionalizadas e operantes, de assegurar o fomento da formação intelectual dos cidadãos, garantindo que, destes, nenhum é, por razões monetárias, impedido de àquela formação ter acesso.

Claro que, numa sociedade que entende que nem o própria Educação formal [que é, porém, diria eu, uma espécie de "núcleo celular" activo e/ou "unidade básica" de qualquer modelo minimamente estável e consistente de formação cultural]; claro numa sociedade assente nesse tipo de pressuposto, dizia, este princípio de que a Cultura deve ser entendida como um serviço básico do Estado, do Estado-consciência tal como eu o concebo, e, por conseguinte, adequadamente gratuita, essa outra ideia de que as formas complementadoras ou continuantes, continuacionais como o Teatro, a Literatura ou o Cinema [formas essas que são, de resto, também, num sentido preciso e possível que mais adiante explicito, uma espécie de horizonte quasi-final da própria formação pessoal dos indivíduos] o devam ser também não colherá naturalmente muitos apoiantes...

De facto, se é possível dizer que a Cultura nas suas formas mais evoluídas [a fruição de uma ópera, de um bailado, de um livro, de um poema, de um quadro] "serve para" enriquecer o indivíduo e as múltiplas formas de potencial ou efectiva inteligência da realidade que ele possa formar como parte do seu património cognicional estrito [mas não estreito...]; se é possível dizia, descrever a Cultura e o seu papel na sociedade é, de igual modo, possível afirmar, de um modo mais lato e socialmente orgânico, completando essa "descrição" que ela "serve" cumulativamente "para" criar, através precisamente da acção natural dos indivíduos por meio dos quais ela se efectiva imediatamente na sociedade, condições para que essa mesma sociedade, enquanto identidade ou consciência colectivas, enquanto entidade orgânica, permaneça materialmente possível, formando sempre à sua própria luz e à dos valores que transmite continuamente pelo simples facto de existir, novos indivíduos e garantindo, desse modo, a sobrevivência efectiva e dinâmica, sempre viva, da própria História e da Civilização de que esta é---de algum modo, perfeitamente reconhecível e objectualmente demonstrável, aliás---agente.

Dito de outro modo, a cultura é, enquanto mecanismo ou conjunto articulado de mecanismos possibilitadores e, de alguma forma, funcionais, o meio de chegar idealmente a uma espécie de objectivo ou meta final que é, em última instância... ela própria, que é a própria Cultura como posicionamento intelectual e/ou mental; como projecto organizado de relacionamento da consciência com o real nas suas múltiplas formas sem esquecer o projecto organizado e orgânico de relacionalidade que ela envolve ou [que ela é] da consciência consigo mesma.

A cultura é, pois, um meio e um fim e, só sendo fim, ela pode ser meio mas também só sendo meio pode alcançar e ser esse fim que deve ser...

Numa sociedade como aquela em que vivemos [não consigo, confesso, forçar-me, por uma conjunto muito preciso e forte de razões de ordem política e até civilizacional, dizer: "como a nossa"...]; numa sociedade como aquela em que vivemos, pois, dizia---uma sociedade em que, como tantas vezes tenho defendido, o conhecimento se tornou já uma forma ou numa 'unidade básica de capital' usado para produzir... capital, não é, com efeito... natural que o saber e a Cultura e, por conseguinte, a Educação possuam aquela natureza e aquele estatuto básicos de valor-em-si, de valor de humanidade e humanismo e de valor civilizacional autónomo que eu próprio lhes atribuo e que acho que devem idealmente possuir.

Não é natural que possuam aquele estatuto de Valor que teriam obviamente noutros modelos de "societação" em que a cidadania consistisse ela própria numa meta civilizacional e por conseguinte política, em si mesma.

Vivemos numa sociedade [e numa "democracia"] estrita-e-estreitamente funcionais---e por isso, de resto, as desprezo a uma e a outra e recuso assumidamente integrar-me nelas de outro modo que não seja concedendo-lhes a atenção e o envolvimento estritamente necessários para que seja possível, a mim e aos meus, ir sobrevivendo sem, todavia, lhe sacrificar o essencial da minha própria consciência e, de uma forma mais lata, do meu próprio código pessoal de valores de Cultura e de Cidadania.

Valores nos quais se integra, muito claramente, a ideia que comecei por espender da gratuitidade de todo um acervo de formas conducentes ao desenvolvimento natural da consciência do indivíduo visto aquele desenvolvimento exactamente como um valor em si.

Como um valor de civilização.

Defendi e defendo que não apenas se devem separar nuclearmente, no plano teórico e especificamente ideológico, a Economia da Cidadania como, em caso algum, é civilizacional [ou até, apenas racionalmente...] argumentável que, no plano da definição e estruturação ideológicas das sociedades humanas, a segunda daquelas entidades possa constituir uma variável instrumental da constante referencial e referenciante que, nesse quadro, possa, por seu turno, constituir a primeira.

No âmbito concreto desta questão da gratuitidade e do serviço público, isso significa que, volto a dizer, em caso algum, a Cultura deve surgir como um negócio em si podendo e até devendo, todavia, existir mercado cultural por exigência ou por procura da própria sociedade sendo, aliás, horizonte cultural da minha própria ideia de boa sociedade que todo o mercado seja, num sentido muito preciso e muito nobre, ele mesmo, cultural.

Deve ser mercado só não deve ser é [1] selectivo segundo as suas próprias leis como mercado e, sobretudo, não deve [2] constituir nunca o seu próprio objectivo apontando, em vez disso, sempre de forma clara e efectiva para o tal referencial ideal da formação da consciência dos indivíduos---e aí é que reside a diferença.

Diferença essa que fica, de resto, perfeitamente esclarecida no seguinte---e muito esclarecedor aspecto: quando aborda a questão num artigo da sua edição de 18.05.10 [cf. Alexandra Prado Coelho, "E se os museus do Estado tivessem entrada gratuita?"] refere a jornalista alguns dos argumentos pró e contra a tal gratuididade [ao que parece o actual poder "socialista" aceita hoje equacioná-la não sendo, todavia, como é, de resto, hábito nele fácil perceber para quando e, sobretudo, se se trata de considerar com seriedade a questão se apenas atirá-la para o ar a fim de criar a ilusão de se possuir uma política ou até só uma ideia cultural e/ou de Cultura]; diferença aquela, dizia que fica, então, clara no tal artigo, quando, como também dizia, ao elencarem-se os "contras" relativamente à ideia da gratuitidade dos museus nacionais, entre eles se inclui, citando o Dr. José Alberto Ribeiro, director da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves [que, curiosamente, foi meu oftalmologista, em criança] que a gratuitidade [cito] "não forma novos públicos, atrai os mesmos mais vezes".

Ou seja, aquilo que devia ser entendido como um avanço significativo importantíssimo em matéria de formação de uma [eu não quero chamar-lhe 'elite' que o termo é 'feio' e presta-se a toda a espécie de equívocos e ambiguidades mas] seguramente de uma consistente vanguarda cultural e mental capaz de dinamizar por via, desde logo, familiar toda a sociedade em redor---isso que é, no fundo, um objectivo intermédio essencial no âmbito de uma verdadeira política de fomento cultural é aqui entendido, exactamente ao contrário, como uma situação, em si mesma, completamente indesejável porque, diz o depoente, conduz à extinção "de uma fonte de receitas significativas para o IMC"!

Ou, como diz, no fundo, corroborando este entendimento redutoramente mercantilizado da fruição cultural como um mero consumo e um mercado [deslocando-se, assim, implicitamente, o foco do projecto ou mesmo apenas da ideia de valoração do indivíduo e da formação e consolidação do seu gosto e, por via dele, das formas de inteligência da realidade que a Cultura naturalmente favorece, proporciona e induz] para o mero jogo contabilístico das "entradas a tanto dando no fim do dia tanto"; ou como, dizia, aduz, corroborando, de algum modo, esta visão redutora e disfuncionalmente "pesetera", objectivamente não-cultural, da própria Cultura, a directora-geral da Fundação Serralves, Odete Patrício, "manter um pagamento é um princípio".

Pois, será---mas é um princípio culturalmente errado ainda que possa ser "contabilisticamente adequado".

Só que fazer Cultura [ou pretender fazê-la] por via da contabilidade [que é como quem diz: da sua mercantilização; da conversão primária da cultura e dos seus objectos num mercado] tal como está estruturada a sociedade em que vivemos, é uma atitude política que apenas pode conduzir, ela própria, à degradação substantiva da própria Cultura na medida em que, por um lado, arrasta de forma quase inevitável a desvirtuação consistente do próprio conteúdo dessa mesma Cultura forçando esta a responder sempre secundariamente e na forma de mero efeito às exigências do mercado [o que tende obviamente a padronizá-la e esvaziá-la da sua tão essencial autonomia e aptidão para renovar-se espontaneamente] enquanto que, por outro lado, restringe a capacidade socialmente auto-multiplicadora da própria cultura limitando-a tendencialmente a um público economicamente em condições de pagá-la só se alargando possivelmente este público a outros se, a montante e por razões que nada têm a ver com aquela capacidade socialmente auto-multiplicadora das dinâmicas cultu[r]ais como tal, aumentar o poder de compra da sociedade, em termos gerais.


O que explicita bem que conceito de "cultura" neste caso temos: o da Cultura como um objecto que se compra e vende muito longe, pois, da ideia de Cultura como um património básico da consciência, ao nível das outras formas geralmente reconhecidas [ainda por alguns reconhecidas, pelo menos...] de Saúde e/ou de Justiça: como um serviço que o Estado deve obrigatoriamente prestar..


[Na imagem, "Minerva" por Boticcelli, pormenor]

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