quinta-feira, 27 de maio de 2010

"Razão, Inteligência e Civilização: Para Quê?"


Numa crónica recente do "Público" intitulada "Um mundo sem privacidade" [cf. "Público" de 24.05.10] recorda o historiador Rui Tavares alguns dos inomináveis abusos [abomináveis arbitrariedades e, em geral, dificilmente perdoáveis abjecções] praticados ou levados a praticar pela Inquisição em Portugal.

Refere especificamente o também deputado do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu, entre as execráveis impiedades, arbitrariedades e exacções cometidas pelo impropriamente chamado Santo "tribunal', o encorajamento à delação [conducente à dificilmente evitável punição] de "práticas perigosas" como eram---reporta o autor do artigo---varrer o pó doméstico para o centro da casa [!] e recolhê-lo, em seguida, a partir daí, em vez de fazê-lo directamente para a rua [prática essa denunciada por judaísmo, interpretação que, por sua vez, se baseava na prática judaica de respeitar o "mezuzá" ou "umbral" da habitação] ou outras igualmente "graves" para a saúde da alma ou até para a da própria sociedade portuguesa e especificamente para a sobrevivência e estabilidade da igreja católica assim como do espírito do cristianismo que numa e noutra, sociedade e igreja, devia, pensava-se à época, prevalecer como o usar camisa lavada à sexta-feira ou a recusa do consumo de carne de porco.

Constituía o perversíssimo projecto de envolver o conjunto da sociedade portuguesa na denúncia destes factos---alguns deles apenas conjecturalmente "sinais" de uma religiosidade obsessiva e hoje-por-hoje inimaginavelmente intolerante---em si mesmo uma coisa abominável e repugnante que é como quem diz uma irresponsável prática oficial de convite ao "vigilantismo" indiscriminado capaz de apanhar numa inimaginavelmente vasta e cega rede condenatória [persecutória?] "culpados" e "inocentes" ao sabor da ignorância pura e simples e/ou, de um modo geral, de ondas de histeria colectiva objectivamente impossíveis de controlar?

Claro que sim, que constituía tudo isso---que mais incompreensível e imperdoável ainda se torna se pensarmos que tinha por centro inspirador determinante uma igreja, i.e., uma instituição religiosa, cristã, de onde era suposto que brotasse, ao invés deste tipo de prática indeculpavelmente brutal e indiscriminada, uma cultura de são humanismo e de sólida tolerância que os factos, todavia, repito, gritantemente negam [1].

Extinta [tardiamente, embora!] a negregada Inquisição, seria de supor que este tipo de prática brutalmente intrusiva e arbitrariamente invasiva do domínio da estrita-mas-não-estreita privacidade de cada um; de um espaço onde cada um é livre---deve ser livre!---de conduzir as práticas intrinsecamente adstritas a essa "privaticidade" como melhor [ou... pior! É um direito o fazê-lo da "pior" forma, também---é parte da liberdade de agir que cada um deve ver reconhecido nesse âmbito que é, de algum modo, o prolongamento natural do Eu ou dos vários "Eus" que compõem o universo familiar [2]

Terminou, porém, de facto, o resíduo mais ou menos "subculturalmente inerte" desse espírito de intolerância "vigilantista"---encontram-se hoje-por-hoje completamente extintos os efeitos, chamemos-lhes... "transparentes" ou pelo menos, "translúcidas" e [quase?] invisíveis desse espírito perversamente apropriador das formas mais básicas e elementais de liberdade e de "privaticidade" que Inquisição devassou de uma forma escandalosamente discricionária e inimaginavelmente intrusiva e iníqua, autocrática?

É legítimo e é correcto pensar que assim sucede realmente?

Se a esta pergunta respondermos apenas "não!" provavelmente seremos considerados perssimistas incuráveis [ou, pelo menos, dificilmente reformáveis...] e maus analistas da realidade social e cultural contemporânea.

Se, porém, nos dermos ao trabalho de observar com escrúpulo analítico e crítico ceros aspectos daquela mesma realidade torna-se, pelo contrário difícil não constatar como aquele "ímpeto" ou aquele... "fôlego abstractamente residuante" de velhas práticas retintamente intolerantes e inquisitoriais não apenas persistem, de facto, na sociedade portuguesa como tendem, segundo alguns, a passar a uma situação que já não é apenas de facto mas se torna claramente "de direito", "de jure".

Basta ver o que se passa com a recentíssima "questão" [utilizo aqui o termo naquele significado muito específico que assume em expressões como "question juive", por exemplo...] do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Ainda ninguém conseguiu de forma minimamente credível [intelectualmente credível, filosoficamente credível, substantivamente credível] explicar por que exacta razão ou exactas razões duas pessoas, dois indivíduos, dois seres humanos adultos [dois "consenting adults", para utilizar outro expressão, desta vez, inglesa dotada de uma carga conceptual e até filosófica muito própria] que pretendem exercer a liberdade estritamente individual de juntarem as suas vidas e rodearem essa união de um conjunto de direitos e garantias institucionais básicos hoje-por-hoje, já reconhecidos no caso de se tratar de pessoas de sexos diferentes; ainda ninguém conseguiu explicar de forma aceitável, sem recurso a qualquer "fundamento revelacional" ou convicção estreitamente pessoal, essas pessoas devem pedir autorização para fazê-lo ao conjunto da sociedade em que vivem que o mesmo é, num certo sentido muito reconhecível ou pelo menos muito demonstrável muito dizer, pedir licença para tanto às convicções religiosas em suspensão nessa sociedade, algo que me parece, desde logo, entre outras coisas, em clara contradição com a ideia [e com o valor intelectual, social, cultural e político] de 'Estado laico' ou de laicidade do Estado.

Na mesma edição do "Público" onde foi dado à estampa o artigo de Rui Tavares, insere-se um outro, da autoria de António Pinheiro Torres ["Presidente: para quê?"] onde é perfeitamebnte reconhecível aquela [a meu ver, efectiva ou espiritualmente---formalmente---inquisitorial] condição da sanção social e/ou cultu[r]al/política ["política" de "polis", é bom recordar] como algo de obrigatório para que a vida estritamente individual de cada um um possa [?] então, a partir daí, existir e passarem então a valer os direitos a ela intrinsecamente adstritos [que deviam ser automáticos numa sociedade verdadeiramente democrática, moderna e civilizacionalmente coerente consigo própria e com os valores de efectiva modernidade intelectual, filosófica, mental e política que lhe devem ser, em todos os casos, indissociáveis].

Será que a "decisão [presidencial de não vetar a lei que consagra o referido casamento] "desiludiu" efectivamente "todos os portugueses", como diz o autor do segundo texto.

Claro que não!

Mas o problema não é esse: o problema [o verdadeiro problema que continua a ser por uma razão ou por outra completamente despercebido por alguns a quem a lei sim desiludiu---o artigo é prova disso] é: e se desiludisse nem que fosse [vamos ser deliberadamente exagerados!] digamos 95 % dos portugueses?

É aos "portugueses"---aos portugueses em geral, aos portugueses como sociedade--- que compete validar [ou não] o direito de cada um às formas estritamente individuais de liberdade

São eles [devem ser eles] a ter na mão o poder de consentir [ou, pelo contrário, de proibir] que essa liberdade exista efectivamente e os direitos que lhe são inerentes possam ser exercidos?

Não continuamos nós, afinal, como comunidade a exigir o "direito" a espreitar para dentro da casa do vizinho para ver como "varre ele o chão" ou "quando veste ele camisa lavada"?

Não continuamos nós, como sociedade, a pretender que nos seja reconhecido o [porém aberrante, impensável, inargumentável e, na realidade, inargumentado] "direito cívico" a determinar, agora com recurso a um instrumento nobilíssimo da parafernália democrática como há-de o "homem ou a mulher da porta ao lado" limpar o chão da sua casa ou vestir-se?

Que raio de "democracia mental" ou de "democracia intelectual" [já nem falo em democracia política e, por isso, atrás me referia a uma espécie de espírito perverso que... residuou de velhas práticas inquisitoriais tornadas "cultura" e que pretende agora contaminar ou infectar a própria democracia, o aparelho demo-formal apropriando-se da sua forma para lhe deformar e espírito]; que raio de "democracia mental" é esta, dizia, que pretende este tipo de coisa---este género ou esta espécie de... "direito"?!

O "sentir da sociedade portuguesa"?

"Uma exigência popular"?

O "apelo da voz autorizada dos bispos"?

"Defraudou" Cavaco o seu eleitorado e/ou o País?

Mas é a Cavaco, é ao presidente da República que deve pedir-se que sobreponha abusivamente as suas convicções pessoais em matéria moral às dos indivíduos sobre quem incide o conteúdo de uma determinada lei e a substância de um determinado direito, tutelando, desse modo, de modo impensavelmente paternalista, o exercício das formas autónomas individuais de moralidade, no estrito caso em que estas não vinculem ou forcem quem quer que seja ao que quer que seja, além dos próprios?

Esgrimir com números [o artigo fala de "92.000 assinaturas", fala de "mais de uma centena de autarcas" e por aí adiante] muda alguma coisa de substancial e de essencial nesta problemática?

Pergunta o autor do texto intitulado "Presidente: para quê?" se o Tribunal constitucional é quem veta as leis, em vez de ser o presidente---e pergunto eu se é o número e não a razão, a inteligência, o despreconceito e a modernidade efectiva da visão, a consonância com uma mentalidade e um tempo intelectual e filosófico que devem substanciar a prática da democracia.


NOTAS


[1] Veja-se, por exemplo, o que escreve Béatrice Leroy em "A Espanha dos Torquemada", trad. port. Catarina Horta Salgueiro sobre as chamadas "leis de Valhadolide", promulgadas em 1412 no reino de Castela e confirmadas por bula papal de Bento XIII.

Segundo esta autora "a partir de então [os judeus] têm de passar a viver nas juderias delimitadas por muros, com as portas fechadas durante a noite e, mais importante ainda, não podem sair dos seus bairros ao domingo e nos dias de festa para não chocar o olhar dos cristãos [...] É nessa época que o sinal distintivo, a rodela amarela, o chapéu, e o casaco curto e arredondado, é imposto aos judeus do reino".

Mais: "[Lei XI] Nenhum judeu, judia ou mouro poderá ser merceeiro, boticário, cirurgião. Não deverá vender vinho, óleo, manteiga, nem qualquer outro produto alimentar aos cristãos. Não deverá possuir nenhuma loja nem nenhum açougue em público ou em privado, para vender os ditos produtos. Quem quer que faça isso, judeu, judia ou mouro, terá de pagar uma multa de 2000 maravedis. E poderemos prender a sua pessoa e condená-los a uma pena corporal, de acordo com aquilo que consideramos aderquado por nós.

Já agora, os judeus estão também proibidos por lei, a lei XVIII, de "visitar cristãos ou cristãs sempre que estes estiverem doentes, nem dar-lhes medicamentos ou ervas, nem levá-los a banharem-se nos banhos dos judeus ou dos mouros. E que os cristãos não se banhem com os mouros ou com os judeus, que as judias e as mouras não se banhem com as cristãs".

E,como se não bastasse, estas "leis" que, recordo, foram objecto de benção papal por bula, dizem ainda [lei XIX] que "ninguém, nem cristã casada, nem concubina, nem celibatária, nem mulher pública, poderá entrar no recinto do bairro onde, doravante, passarão a viver os judeus e os mouros, tanto de noite como de dia. Qualquer mulher cristã que aí entre, se for casada, paragá 100 maravedis por cada infracção. Se for solteira ou concubina, que fique sem vestido. Se for mulher pública, que lhe sejam dados 100 golpes de chicote pela cidade e que seja expulsa da cidade, aldeia, ou lugar onde ela vive".

Estamos perante autênticas leis raciais e é impossível, ao ler, por exemplo, referências como aquela à obrigatoriedade do uso do círculo amarelo ou ao confinamento no bairro ou judería não pensar de imediato em "coisas" bem mais recentes e de tenebrosa memória cuja referência directa nem será necessário fazer...

E isto, recordo ainda uma vez, com aprovação papal expressa...


[2] Falo aqui obviamente de "pior" [com aspas] referindo-me especificamente a comportamentos que cada um de nós não adoptaria, por razões de cultura, ideologia ou gosto, por exemplo, excluindo, todavia, por razões óbvias de humanismo primário, desse conceito, quaisquer práticas que envolvam violência ou brutalidade de qualquer membro da família sobre os restantes.

Entendamo-nos.


[Na imagem: o tribunal do Santo Ofício, gravura da época]

2 comentários:

Ezul disse...

Essa prática invasiva e denunciante caracterizou, não só o quotidiano da época da Inquisição, como voltou também a ser um dos instrumentos ao serviço do Estado Novo. E não me refiro apenas aos agentes da PIDE mas a toda a camada da sociedade que suportava essa “moralidade” em que se pretendia formatar tudo e todos. Se assim não fosse, como poderia uma ditadura ser tão duradoura? São estas pessoas que assumem o tal “direito cívico” que lhes confere legitimidade para moralizar e condenar as opções e os direitos dos outros, e não apenas no domínio dos afectos e da sexualidade. Creio que é à luz dessa atitude que se pode avaliar a actual “opinião pública” portuguesa: é a vontade de olhar para o quintal alheio e de criticar quem pode ser atingido mais facilmente pelos sectores do poder, seja o professor, que é acusado de não querer ser avaliado, o grevista que dizem não querer trabalhar, o desempregado que é classificado como alguém que vive à custa do subsídio, o funcionário público que é, à viva força, um malandro que nada faz… Porque em relação aos outros, onde está a boa da opinião pública e onde se exerce o tal direito cívico? Vá lá que se peçam beijinhos numa qualquer acção de campanha eleitoral, que se acenem uns lenços à passagem do tal senhor vestido de branco (enquanto aumentam os impostos a um povo tão entretido e “feliz”), que se teçam miragens com campeonatos mundiais de futebol ou então…ala para a praia, que está bom tempo. E aí, sim! Aí, poder-se-á actuar porque sempre se encontra alguém menos vestido e menos decente!

Carlos Machado Acabado disse...

É isso!
É isso mesmo!
É exactamente isso!
É, de facto, arrepiante ver como a abjecta prática da delação foi sofrendo sucessivas "mutações" até se atingir o presente estádio em que ela sob diversas formas se institucionalizou já ou, noutros casos, se pretende que se institucionalize sendo recebida [por alguns de braços abertos...] em pleno seio do que, mau grado isso, nos obstinamos em continuar a designar por 'Democracia'...
É a reivindicação ao "direito... cívico" a tutelar "democraticamente" a vida privada dos cidadãos e é, como muito lúcida e muito esclarecidamente observa Ezul, a sua transformação, a sua institucionalização como método de... "avaliação" [no caso dos professores onde a inominável aberração intelectual e ministerial que foi Maria de Lurdes Rodrigues pretendeu consagrá-la subrepticiamente como critério idóneo de avaliação... técnica da prática docente] ou de "valoração" mais informal como no caso de uma certa imagem de funcionalismo público que Ezul tão bem descreve ou no dos desempregados, as "baixas" de uma economocracia impiedosa que cada vez mais vai tornando as pessoas excedentárias...
Em todos estes casos, existe um traço comum que vai mudando circunstancialmente sem, em caso algum, mudar substantivamente.
É a isso que eu chamo o "eco residuante" de uma espécie de perversíssimo 'espírito' que é, afinal, o alimento preferido de todas as Inquisições, sejam elas quais [e como] forem...