Revi ontem, a seguir, dois dos 'filmes da minha vida'.
Devo desde já dizer (ou recordar) que os 'filmes da minha vida' não têm de ser todos bons...
Há-os maus e até, num caso ou nourto, horríveis.
Os que revi ontem não são nem uma coisa nem outra destas duas últimas: um ("The Prisoner of Zenda") é um excelente "cloak-and-dagger" com um dos pares cinematográficos que, para mim, durante muito tempo, foram a epítome ou o paradigma último, acabado, da perfeição: Stewart Granger e Deborah Kerr (outro foi Cary Grant/Eva Marie Saint).
Do filme e do deslumbramento adolescente de visioná-lo (no 'velho' Jardim Cinema, numa das muitas matinés roubadas às aulas do não menos 'velho' "Gil"---daquele em que escrever nas carteiras dava, sem apelo nem agravo, bilhete só de ida para uma bela suspensão de não-sei-quantos-dias...) já falei noutro lugar.
Da novela original (que consta, aliás, há muito, numa muito bem cuidadinha edição 'pocket', da minha biblioteca, dificilmente conseguida sabe deus-com-que-sacrifícios e apenas depois de não-sei-quantas visitas à mítica "Barateira" do tempo do Sr. Romana) não valerá a pena falar muito: 'deixa-se ler', como dizia o outro.
É da "escola" dos "39 Degraus" do Buchan (que também tenho, aliás) e por aí fora.
Do filme do Thorpe (que era, vou já acrescentando um "relojoeiro" impressionante da narração: aquilo "encaixava" tudo como um puzzle; recordo-me, por---outro---exemplo, de um "Ivanhoe" dele com a Ava Gardner, a Taylor e o... Taylor, o Robert: um "Ivanhoe" cujos 'racords' podiam ser vistos acompanhados de um cronómetro, de tal modo tudo aquilo funciona organicamente, sem uma falha!); do filme do Thorpe, deste "Prisoner..." de que aqui volto a falar, quero eu dizer, impressiona-me sobremaneira, entre outras coisas (de que que, como digo, já falei) a ambiência, deliciosamente arcaica escolhida, aquela rústica e bucólica "Ruritânia" nebulosamente situada nuns Balcãs em que ainda apenas os "maus", como esse tenebroso "Rupert de Hentzau", matavam (foi antes das chacinas e matanças da recente guerra que resultou da trágica desintegração da Iugoslávia) e em que se podia, além disso, pescar tranquilamente trutas ou outra coisa deliciosamente improvável qualquer, ali mesmo, a dois passos de um palácio real onde, "to top it all" iria muito em breve reinar a Kerr...)
Desde sempre me impressionou (e fascinou!) essa Europa pré-I Guerra Mundial (o Chabrol tem uma espécie de análise interessantíssima da sociedade francesa do período num apenas aparentemente inócuo "Landru", salvo erro com o Charles Denner de barbas, como o original, que vi, há muitos anos no "Império") mas, hoje, a esse fascínio (que, devo acrescentar, nunca desapareceu por completo) veio juntar-se um outro relacionado com o que entendo poder ser considerado um curiosíssimo sinal cultu(r)al (e mais do que cultu(r)al, genericamente antropológico), aspecto em que o filme do Thorpe possui algo em comum com o outro que atrás comecvei por referir ter revisto, ontem, juntamente com ele e que é "The Prize" do Mark Robson, um digníssimo e nada negligenciável... "plágio" de "Torn Curtain" do Hitchcock.
O aspecto comum a ambos prende-se com a questão do dualismo identitário, algo que nos chega directamente, diria eu, da nossa condição filogénica, do modo como a "natureza" nos tratou construindo-nos gradualmente como uma espécie de "sistema integrado bilógico" dotado de uma consciência que, por sê-lo, o é também, de todas as múltiplas fissuras de um modelo que a natureza, volto a dizer, em momento algum, concebeu como um verdadeiro «objecto orgânico» (auto) reconhecível.
Se repararmos, com efeito, a duplicação identitária que, diria eu, 'trazemos directamente da natureza' em resultado do modo particular, específico, concreto, como esta nos 'desenhou' como espécie, i.e. , por étapas ou "estações funcionais" capazes de possuirem sempre uma espécie de visão destemporal, fixa, secundária ou terciariamente ulterior e de um modo ou de outro completamente imóvel, senão exactamente do processo como tal, admitidamente das suas formulações objectuais avulsas refractadas nessa mesma visão e, a dado passo, integradas mesmo tessitariamente nela; se repararmos bem, dizia, o único animal conscienciado (e não naturalmente consciencial...) que somos, que é cada um de nós é, está por natureza obrigado a representar-se por oposição ao ser-se (que é, como se sabe, um atributo das outras espécies não-conscienciadas) o que nos obriga, volto a dizer: como espécie, a retirar em todos os casos fatalmente o 'pensar' ao 'ser' e, mais grave ainda, o pensar do ser (pensar é na realidade, para nós, destruir metodicamente o ser reconstituindo-o, no fundo integralmente, do nada ou quase nada, um «pouco mais além»).
O que eu quero dizer é que a nossa desunidade ontológica não pertence primariamente à Filosofia: pertence primariamente à biofilogenia que, em nós, é, em dados momentos e em certas circunstâncias precisas, atravessada funcional (mas também muito superficialmente) por uma "consciência" que, relativamente ao eu próprio conteúdo em filogenia, opera como um espelho que tanto projecta como se reprojecta, tornando, no fundo, o "conhecimento" uma verdadeira 'lotaria'...
Seja como for, quando deixa de pensar directamente (na forma de um discurso formalmente "racional" onde apenas são utilizadas formulações ditas "nobres" e/ou "epistemologicamente fiáveis" da consciência") para fazê-lo indirecta mas, segundo julgo, muito mais genuinamente sob forma ficcional (ou, antes desta, ritual--de que a "ficção" representa, na realidade, uma manifestação objectual), o Homem regressa natural embora, de facto, "simbologicamente", ao contacto também ele, possivelmente natural com as múltiplas formas piossíveis da sua, inda e sempre natural, dualidade.
Pessoalmente, vejo, hoje, confesso, a ficção, sobretudo, como um alívio reflexional relativamente à pressão das formulações demasiado secundárias e redutoras da "razão"---um regresso simbólico às fontes mesmas da identicidade que, embora por definição insusceptíveis de serem efectivamente atingidas, ficam (em tese, pelo menos) desse modo, infinitamente mais próximas e perceptíveis--ou re/experienciáveis.
Não por acaso, duas obras de 'ficção' que vi (nesse caso, sim, coincidentalmente) no mesmo dia falam abundantemente, no fundo, uma e outra, no limite, dessa natureza multipolar ou efectivamente composicional-sucessiva do Homem, abordando-a em triunfo no único veículo de conhecimento que, numa sociedade in/essencialmente laica como a nossa, logra furtar-se à (o) pressão demasiado vigilante da "consciência", levando-nos de volta às nosas raízes filogénicas---ou, volto a dizer, aquilo que delas é hoje material ou possivelmente reconstituível.
[Imagem extraída com a devida vénia de coleccionadordefrases.wordpress.com]
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