terça-feira, 14 de julho de 2009

"«Raintree County» (1957): uma visão pessoal"


Anteontem, dia 12, foi dia de rever (muitos anos após o visionamento original...) "Raintree County" (1957), o "blockbuster" de Edward Dmytryck, 'irmão' (consideravelmente) mais novo de "Gone With The Wind" de '39 (oficialmente de Victor Fleming mas, na prática, de mais de um realizador e, ao que se diz, inclusive também, um pouco---ou um muito?...---de um produtor, David O' Selznick, que no filme terá, também, deixado a sua marca pessoal na realização).

No que respeita a esta, andaram, com efeito, "por lá", como se sabe, além de Fleming, George Cukor (a escolha original e "o mais lírico" de todos os que participaram na direcção do filme, segundo alguma crítica) e Sam Wood (que rendeu Fleming na realização, durante a indisponibilidade temporária deste: "decidedly middle-class" em algumas sequências, diz a mesma crítica).

Quanto à hoje ultra-famosa "Scarlett" tentaram a sua 'sorte' relativamente ao desejo de protagonizá-la no elenco final, antes da 'divina' Vivian Leigh nada menos do que Paulette Goddard, Norma Shearer, Bette Davis (que receberia o "prémio de consolação"... antecipado intitulado "Jezabel", de William Wyler e que é, de resto, cerca de um ano anterior a "Gone With The Wind"), Joan Crawford, Miriam Hopkins, Jean Harlow ("the Bombshell"), Carole Lombard, Tallulah Bankhead (de quem se dizia que, por nunca usar roupa interior, fazia furor durante as filmagens...) Claudette Colbert (a primeira 'Cleópatra', a de de Mille e a "elusive daughter" e "spoiled child" do clássico "It Happened One Night" de Capra), Jean Arthur (a espantosa 'Marian Starrett' de "Shane" e actriz «repetente» de Capra), Joan Bennett and Irene Dunne.

Filme involuntariamente... 'colectivo', "Gone With The Wind", logrou, no entanto, ultrapassar as diversas vicissitudes da realização e acabaria por tornar-se uma referência absoluta na (e da) História do Cinema e "inspiração" para uma série de "mitos" da mais diversa natureza e objectiva relevância, por um lado (o "mito" da "compensação" de Davis é um deles, na realidade tão falso quanto o célebre "Play it again, Sam," de "Casablanca" que nunca foi, de facto, proferido naqueles exactos termos, como se sabe) e modelo directo ou indirecto de um número não menos considerável de outros filmes que tentaram, cada um à sua maneira, capitalizar no peso que a obra passou a ter no imaginário cinéfilo universal.

"Raintree County" é um desses casos de mais ou menos aberto e intencional 'mimetismo'.

Infinitamente menos conhecido (e reverenciado!) do que a obra de Fleming, "Raintree County" retoma, ainda assim, dela e do seu motivário particular, desde, diria eu, alguns aspectos importantes que vão da própria 'lógica global da narrativa' (decididamente "folhetinesca" no exacto sentido em que incorpora um número consideravelmente alargado de 'incidências narracionais' que se sucedem---e 'entrechocam'---numa espécie de 'movimento narracional contínuo' que pode ser visto como operando, em última instância, como o único objecto e 'fundamento retórico' de si próprio---amores contrariados e/ou dilacerantemente não-correspondidos, grandes (e tácitas) "lições morais" e/ou "de vida", uma 'heroína' que traz consigo toda o oblíquo fascínio erótico mas, também, toda a marca da "maldição" que, desde Eva, a cultura puritana nunca deixou de associar, de forma intrínseca e (literalmente!) inextricável, à Mulher---ou "vulva devoratrix" que é, na realidade, em termos antropológicos, o exacto oposto da perspectiva representacional que presidiu ao culto primitivo da fecundidade---sendo que a sua "estória" cobre, ao mesmo tempo, um longo período de tempo, desafiando, assim, a ideia aristotélica da unidade---ou unidades narrativas clássicas).

De "Gone With The Wind" vem, também, obviamente, a Guerra da Secessão---aqui, porém, filmada com muito maior modéstia de meios e, até, de um modo quase abertamente pretextual (a ideia de 'John Shawnessy'/Monty Clift se alistar no exército a fim de ir buscar a esposa, 'Susanna Drake'/Liz Taylor que partiu para o Sul tem, com efeito, muito 'que se lhe diga'' como elemento narrativo imediata e facilmente acreditável...); do filme de Fleming vem, de igual modo, aquele que é, para mim, o motivo realmente essencial, a saber, a citada (e inquietante!) representação da "mulher Janus" ou das "feminicidades tópicas" em contínua e inter-constrastante presença---e mais do que presença: em directa oposição e frontal confronto---ou básico e elemental conflito.

Aqui reside, a meu ver, como disse, o maior interesse antropológico e, genericamente, cultu(r)al de um filme que é, basicamente, uma "telenovela" (um "Dallas" ou uma "Dynasty" senão mesmo um "North And South") "avant la lettre".

O tema (aquele tema da "dupla feminicidade") não é (está mesmo muito longe de ser!) novo, no cinema norte-americano (um Cinema, como notava Simone de Beauvoir para a "cultura" ianque em geral---sobretudo, possivelmente, tendo em conta aquela que brota, de forma mais ou menos espontânea não tanto do consciente como sobretudo do inconsciente colectivo cultu(r)al norte-americano---isto embora as suas formas ou formulações específicas estejam longe de não ser objecto de "encorajamento" objectivo pelas diversas formas, tácitas mas, de igual modo, explícitas e assumidas de censura...); um Cinema, dizia, muito fortemente marcado pela ideia (e também---o que não é, aliás, exactamente a mesma coisa...---pela impressão subliminar, volto a dizer: não necessária e não completamente consciente mas, sem dúvida, estruturalmente puritana de Culpa.

É isso que, em meu entender, explica o modo como, em ambos os filmes, a Mulher aparece em última instância claramente reconhecida (e óbvia!) e caracteristicamente "dissociada" (a lógica do "erotismo" puritano é, como é sabido, fortemente auto-repressional e eminentemente esquizofrénica, dissociacionalmente neurótica, mesmo) em dois paradigmas polarmente opostos---ou a-dialéctica---'metafisicamente'---'oposicionais': em "Gone With The Wind" a oposição era entre 'Scarlett O' Hara'/Vivian Leigh e a "doce 'Melanie'"/Olivia de Havilland, papel, aliás, exemplarmente defendido por uma "característica" de luxo como foi a irmã da notabilíssima Joan Fontaine (que Hitchcock transformaria, como também é sabido, numa das suas 'obsessões loiras' de algum modo menos faladas---no filme, nem nome tem...--- mas nem por isso, a meu ver, menos definitivas e menos fascinantes: 'the second Mrs. de Winter' de "Rebecca").

Quando, em termos imediatamente narracionais (e latentemente retóricos e 'morais') se dá, em "Gone..." a opção por 'Scarlett' (o 'vermelho' é, como se sabe, para um certo puritanismo também 'laico', a cor do pecado, da "Letra" de Hawthorne à lâmpada por cima das portas de "certas" casas" mais ou menos "impróprias" e, por esse motivo, "inomináveis"...) em detrimento de 'Melanie' ou por 'Susanna'/Liz Taylor em desfavor de 'Nell Gaither'/Eva Marie Saint em "Raintree County" "all hell breaks loose" e o tema do filme passa a ser, de forma já dificilmente ignorável, o pecado e a expiação.

Este "motivo" da expiação entra, aliás, em meu entender, com toda a naturalidade (e, se calhar, até, com toda a inevitabilidade...) numa «cultura ficcional» (ou numa cultura «ficcionada»)---a norte-americana---toda ela, de algum modo, tradicionalmente assente na ideia condutora (senão mesmo 'fundadora') da 'travessia expiacional do deserto', inextricavelmente associada, por sua vez, às de uma "terra prometida" (um "raintree county" ideal...), por um lado mas, também, mais remotamente ainda em termos antropológicos trans-históricos, ao motivo primitivo da quebra/violação do tabu---de que o motivo cristão do "pecado" (e da "queda") assim como da respectiva necessidade, individual e colectiva, de expiação ou 'iniciação expiacional' representam, a meu ver, na realidade, uma mera "mutação" secundária ou possivelmente até cultu(r)almente terciária.

Daí eu ter começado por falar, indirectamente embora, da retórica e do estrito moralismo básico de ambos os filmes.

E não seria talvez forçar a nota sublinhar a possibilidade de todo este temário, de raiz claramente bíblica e puritana, vir ulteriormente potenciado, num caso como noutro, por essa outra sugestão cumulativa de "crime" e especificamente, de fratricídio, simbolizado na guerra entre dois "irmãos desavindos", o Norte e o Sul, emanações subliminares ficcionais do conflito original entre Caim e Abel, o "crime" moral e antropológico por excelência, espécie de ruptura e/ou auto-mutilação original da tribo como imagem última ("ultimate") e também decisiva de ruptura da própria ordem original e da entrada dolorosa do Humano no universo da própria História como eco ou representação estrutural (e por definição!) imperfeita do "paraíso" e da sua lógica ideal perdida---ou, se assim preferirmos dizer: da "queda".

Neste quadro, Clift/'John Shawnessy' é, no filme de Dmytrick (um realizador, é preciso dizê-lo, muito irregular e algo equívoco cujo clássico "The Caine Mutiny", um dos seus filmes mais conhecidos é, muitas vezes, apontado como um exemplo paradigmático de "compromisso" e de cedência política perante o desejo de pensar e de intervir, crítica e sobretudo politicamente, na História) é o próprio Homem colocado perante as grandes opções morais, o Homem que cede e erra ou «peca» e que, por isso, apenas após a expiação sacrificial ou 'travessia pessoal do deserto' é objecto de"redenção" e "salvação".

Ou seja: só após ter vencido o "fantasma" da carne (corporizado na personagem da "louca" Susanna, Elisabeth Taylor, num papel que ela faria, de resto, ao longo de toda a sua carreira, das mais diversas formas e com os mais diversos matizes circunstanciais, de "The Taming Of The Shrew", do medíocre Zefirelli, a "Who's Afraid Of Virginia Wolf" de Mike Nichols ou mesmo até ao---para mim, encantatório!---"Reflexions In A Golden Eye", um injustissimamente ignorado filme de John Huston com Taylor, Brando, Julie Harris e um notável Brian Keith); só, dizia, após ter vencido o "espectro da carnalidade" (a "tortura da carne", lhe chamou Tolstoi num título célebre) e de ter-se... convertido ao "espírito", corporizado no filme pela personagem de 'Nell Gaither' (a fascinante Eva Marie Saint que, curiosamente, viria a ser aquela que, para mim, muito mais do que Grace Kelly, é "a" "obsessão loira" de Hitchcock por excelência, a epítome mesma da figura) pode 'John' aspirar, por fim, à (mais do que previsível, aliás) Salvação (ou "ressurreição", outro título tolstoiano, curiosamente...) final.

Relativamente a "Gone..." (onde a figura de 'Scarlett' apesar de algumas leituras mais 'fáceis' e comuns possui uma considerável «espessura» como personagem de ficção e até 'Rhett Butler'/Clark Gable, algo manipulado por ela, surge razoavelmente subtilizado em relação à sua 'persona cinematográfica' corrente) e com a excepção do interessantíssimo 'Prof. Jerusalem Webster Stiles' (notem-se as conotações possíveis de serem estabelecidas a partir de sugestões contidas em: "Jerusalem" e "Webster")/Nigel Patrick , um 'George Sanders' menor mas, ainda assim, muito eficaz!), as personagens são, aqui, sobretudo 'esquemas', salvos em larguíssima medida graças à arte de alguns dos actores do elenco com Monty Clift (sempre naturalmente trágico e convincente) e a fabulosa Eva Marie Saint (embora a "estrela" aqui fosse claramente Taylor)à cabeça.

De Eva Marie Saint (que, às mãos sábias de Hitch faria uma deslumbrante e arrasadora 'Eve Kendall' em "North By Northwest", para mim, "o" Hitchcock) se pode, todavia, dizer que se limita aqui à defesa (basta-lhe, no fundo, pouco mais do que sorrir para o écrã subitamente se 'iluminar' de uma vez só...) de uma "Nell Gaither' demasiado unidimensional e angélica, inspirada na própria esposa do escritor, Ross Lockridge Jr. de cuja obra o guião do filme é extraído) e de Lee Marvin que se ocupa, ele mesmo, da defesa daquele "boneco" truculento e caracteristicamente "ruidoso" que faria ao longo de toda a sua carreira e, noutras circunstâncias, aliás, com muito maiores significado e brilho.

Aspectos acessórios são o modo como toda uma muito... "tennesse-williamsiana" «doll menagerie» (simbolizando os «objectos petrificados» em tumulto no subsconsciente de 'Susanna' e uma espécie de "chave freudiana" da sua "loucura"e de "porta neurótica" para o interior dela) assim como o modo como é apresentada no filme a figura do «político» (outra obsessão norte-americana verdadeiramente recorrente e típica, esta do horror mais ou menos instintivo pela figura do "político", demónio hipócrita---reencarnação maléfica dos clássico fariseu bíblico?...---sempre decididamente oposto ao "bom e "são" 'homem de acção'---o "western" desenvolverá, como é sabido, esta dualidade básica, muitas vezes claramente primária, até à exaustão) e ainda a maneira como nos é mostrado no filme o "Sul" dos E.U.A.: com ruínas queimadas "simbolizando" a morte de um mundo que, todavia, acaba por não se perceber muito bem se foi de encantamento e beleza, se de abjecção (e até alguma loucura?...), directamente plasmada na escravatura (de que, todavia, o próprio 'Norte' escarnece abertamente, numa das cenas mais de gosto mais discutível mas seguramente também, de um modo ou de outro, mais cínicas e perturbadoras do filme).

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