...escassos dias depois de Pina Bausch, Merce Cunningham confirmando um lugar comum... comum que pretende que morte visita os artistas sempre duas vezes... de cada vez.
No dossier necrológico que lhe dedica, o jornal "Público" refere a 'esteticamente atormentada' (a expressão não é do jornal: é minha); a profunda inquietação do seu (por isso, mesmo, por vezes, para o público em geral, naturalmente mais sensível a conceitos de mais imediata apreensão como os que podem ser abrangidos por expressões do tipo "impressionismo" e/ou "figurativismo" baléticos) árido e esotérico experimentalismo.
Ou, talvez mais precisamente, da sua persistente (e consistente) "experimentalicidade".
Coreógrafo «quântico» (também neste caso, a expressão é da responsabilidade do signatário e refere-se ao modo como Cuningham organizou o seu projecto de "educada dissonância"---ou mesmo "disciplinada, metódica, algébrica, pan-estética caoticidade" que subjaz à sua obra de coreógrafo; explorador, pois, de uma ideia ou conceito genérico e criticamente "acausal" de dança ou mesmo, de um modo mais lato, de 'criticamente tumultuária' "pan-esteticidade", nunca foi, por isso mesmo, um artista acessível e fácilmente 'popular'.
Está, para mim, no mesmo 'registo existencial' amplo de, por exemplo, um Gaudì, um Francis Bacon ou uma Paula Rêgo, um Samuel Beckett, um Joyce, um Jean-Marie Straub, um Artaud, um Julian Beck ou uma Judith Malina 'dos bons tempos' ou, ainda, de um Pasolini ou de um Oshima pela sua espantosa, genial, capacidade para interpelar, questionar e inquietar ("to disquiet", em inglês) e ajudar a pôr em causa todas e cada uma das nossas aparentemente mais estáveis e firmes anteriores certezas em matéria de expressão artística.
Pessoalmente, fui mais de uma vez tentado a (como dizer?) "des-aderir dialecticamente" aqui-e-ali ao seu 'programa teórico' em matéria estética por se me afigurar não-raro, exactamente algo "teórico" em demasia no preciso sentido em que tendia a situar-se (é uma opinião ou, talvez mais exactamente, uma "impressão" puramente pessoais) excessivamente para além da realidade objectiva o que fez que a sua proposta estética corresse posssivelmente o risco de não "dialogar criticamente" com ela o suficiente.
Na medida, porém, em que me ia suscitando este tipo de "educada" reserva, estava já (é a mais pura das verdades!) a dialogar---o que significa que, no limite, era, afinal, com certeza, o próprio Merce quem estava (mesmo nos casos em que isso parecia poder não ir acontecer num primeiro momento) na---e com a---razão.
Num tempo de "zombies" intelectuais em que a maior parte da Arte se refugiou já, de um modo ou de outro na televisão senão mesmo assumidamente nos supermercados (a "Arte de supermercado" representa hoje inescondivelmente uma espécie de talvez incurável, irreversível "doença senil" da Estética) e em que esta última, Estética, integrou já em si a ideia genérica e muitas vezes acriticamente fácil de "espectáculo" que foi forçada a lá ir buscar para poder sobreviver, o desaparecimento de Artistas e Homens de Cultura como Merce Cunningham assusta de um modo muito (mas mesmo muito!...) particular.
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