quarta-feira, 15 de julho de 2009

"Welcome To Hard Times" (1967) Burt Kennedy [T.I.P., text in progress]


Começo por dizer que não conhecia este "western" de Burt Kennedy até tê-lo visto no 'TCM', muito recentemente.

E seria pena não ter travado 'conhecimento' com ele por diversos motivos, nenhum deles, porém, exactamente (é preciso dizê-lo, desde já!) directamente relacionado com a sua valia cinematográfica propriamente dita---que é, de facto, dê-lhe a gente as voltas que der, francamente modesta.

A principal razão pela qual é interessante conhecer o filme é de natureza histórica, digamos assim.

É, com efeito, um daqueles filmes que pode ser entendido como, por um lado, mostrando (aliás, à saciedade!) o esgotamento temporal total do "western", a sua evidente incapacidade para, em termos globais, ulteriormente se renovar (e continuar a justificar!) como 'genre' mas, por outro, também, como fazendo uma claríssima 'ponte' entre esse mesmo 'genre' (tal como o conceberam e consagraram os grandes mestres de John Ford a Howard Hawks e aos Mann---o Anthony, sobretudo mas, também, o Delbert---por exemplo, passando por Delmer Daves ou George Stevens, o criador do definitivo "Shane") e a sua "reinvenção" europeia, designadamente italiana e um pouquinho, também, espanhola.

Perante aquilo que é já, perto do fim da década de '60, evidente---a decadência irreversível do filme dito entre nós (tão errada quando redutoramente, aliás) "de cowboys"---Burt Kennedy (um tarefeiro apenas moderadamente interessante e relativamente capaz) tenta, pegando ele mesmo no tema, investir abertamente no excessivo e no "diferente" (naquilo que um americano, aqui há uns anos, descreveria possivelmente como uma série de "cheap tricks" de uma natureza muito semelhante àquela a que vão, de resto, recorrer os italianos como Corbucci ou Leone quando decidem por sua vez, como disse, "nacionalizar" o 'genre'...) numa espécie de desesperada tentativa para iludir (ou, no mínimo, adiar) o inevitável.

Astucioso, o realizador vai, por outro lado, retomar de forma selectiva alguns dos motivos que haviam, a seu tyempo, feito parte significativa da glória do 'genre'.

Em "Welcome To Hard Times", com efeito, a personagem de Henry Fonda, por exemplo, opera como uma espécie de "eco" distante da que Alan Ladd consagraria, sob a batuta do já atrás citado George Stevens, no clássico "Shane" (aliás, até o desenho geral da cidade parece, de algum modo, uma cópia da do filme de Stevens onde a lama, omnipresente e espessa, simbolizava, a meu ver, pelo menos, o próprio medo e a incapacidade colectiva de a cidade agir, oprimida como está pelo poder irrestrito e brutal de Ryker).

Mas onde Stevens, de facto, um realizador notável trabalhando em pleno apogeu do "western" sobre uma novela (ela mesma, aliás, particularmente bem escrita por Jack Shaeffer) possui a sensibilidade narrativa e o talento pessoal para concentrar a "estória" do seu filme de modo a que tudo nela resulte sempre uno, 'orgânico' e necessário, no filme de Kennedy as hesitações de Fonda acabam (onde as de Shane resumavam tensão e significado) por cansar, integrando-se, desse modo, mas pelas piores razões, no... 'espírito' global de um filme onde tudo, de resto, se arrasta sempre um pouco, à deriva e dando sempre a indisfarçável (e desconfortável!) impressão geral de avulso e/ou de artificial e forçado.

É de resto, também por "aí" , como diremos mais à frente com maior detalhe, que chegamos ao "western spaghetti" que foi, como é sabido, nos seus melhores momentos, sobretudo um festival orgástico (de forma, às vezes, intencional e deliberada, como sucede no operático e intelectualizado cinema de Sergio Leone) de excessos e de contínuos "narrative fireworks", numa espécie de ininterrupta (e aqui e ali, em mais de um sentido, volto a dizer: feérica, festiva) desmesura---ou mesmo aberta caricatura (de "caricato", "carregado"...)---do original.

Aqui, no filme de Kennedy, há um Aldo Ray ('the man from Bodie') que parte, queima e assassina sem que se chegue, em momento algum, a perceber muito bem por que exactas razões o faz (claramente não "é" o 'Calvera' de "The Magnificent Seven" de Sturges que aterroriza por razões, chamemos-lhes: funcionais narracionalmente credíveis, i.e. que o faz a fim de conseguir que os aldeões não deixem, em caso algum, de produzir para ele e para o seu 'gang'; mas que não "é", tão-pouco, um 'herói' de Peckinpah para quem o 'genre' e a cultura que lhe deu origem e fundamento deve inevitavelmente acabar numa espécie de orgia apocalíptica de desespero e/ou num suicídio ritual de que a violência é apenas a expressão instrumental, isto é, a linguagem instrumental em que o "testamento cultu(r)al" em causa é pontualmente redigido).

O modo como Kennedy descontextua a violência contida na personagem de Ray (a seu modo, a figura axial de toda a acção) retira credibillidade a tudo o mais que dela (lá está!) de um modo ou de outro, se origina; no filme há, assim, um "mayor", Henry Fonda, 'Will Blue' no filme (presidente da Câmara de de uma cidade que, todavia, só começa, real---porque legalmente---a existir lá para o meio do filme mas enfim...) e cuja passividade perante os desmandos cometidos pela personagem de Ray também nunca me parece ficar muito claramente definida, em termos de se saber exactamente (de se saber narrativa ou cinematograficamente, digamos assim...) se se deve realmente a cobardia (como o acusa 'Molly Riordan'/Janice Rule) ou à tentativa do argumentista de fazer dele uma personagem... "à Anthony Mann" (de, por exemplo, "The Man From Laramie", onde James Stewart fazia, muito bem aliás, esta figura do homem que "não crê prioritariamente nas armas") ou, claro, "à John Ford" (noutro "Man": "The Man Who Shot Liberty Valance" onde a figura atinge as culminâncias do 'clássico' e do cinematograficamente paradigmático e definitivo na persnagem de 'Ranse Stoddard', também ela, curiosamente, protagonizada por Stewart).

É claro que um realizador realmente bom poderia, no caso de ter sido ele a dirigir o filme, ter trabalhado a personagem de Ray no sentido da potenciação e da significação específica daquilo a que poderíamos chamar a sua "espessura" dramática e cultu(r)al própria de modo a fazer dela, por exemplo, ou uma espécie de símbolo (da barbárie ou da primitividade puras por contraposição à emergência redentora da civilização que vem, inevitavelmente, suprimir e, sobretudo, superar histórica e cultu(r)almente aquela---uma dicotomia em que, sempre primária e desajeitadamente, aliás, o filme tenta obviamente apostar como tema mais ou menos básico e até condutor de toda a acção nele contida) ou até de "némesis" das cobardias individuais e colectivas de uma pequena cidade (como Zinnemann faz magistralmente em "High Noon", também ele, como se sabe, um "clássico" exemplo).

Aqui, nas mãos do "oficinal" Kennedy, a personagem de 'the man from Bodie' é apenas uma figura isolada, caracterizada, como disse, por uma aparente ausência particular, específica, significativa, de motivação para agir do modo como o faz, com aquela espécie de crueldade arbitrária e total de que atrás falamos e perante a qual nem a insólita (e ela mesma, de resto, completamente inessencial e avulsa!) personagem de 'Leo Jenks' (Warren Oates) um habilíssimo atirador que a dado passo (sem que se perceba exactamene porquê e para quê) é capaz de fazer frente...

'Jenks' aparace com efeito, por ali, um dia, trazendo de volta a carreta funerária de 'Hanson' (Elisha Cook, Jr. que aqui "repete", de algum modo, aliás, uma personagem que curiosamente tinha feito em "Shane", desafiando aí o sinistro 'Wilson'/Jack Palance... ), dá uns tiros certeiros em... latas, ramos e garrafas e acaba abatido por Ray sem "honra nem glória"---que o mesmo é dizer, repito, sem que se chegue, alguma vez, a perceber ao certo por que apareceu já que não tem de facto o mínimo (autêntico) significado e relevância em termos do desenvolvimento natural da "estória" onde veio, por obra e graça de um argumentista muito fraquinho (operando sobre uma "estória" de E. L. Doctorow) um dia, "cair"...

Também relativamente a 'Molly' nunca se chega exactamente a definir se é uma vítima das indecisões, dúvidas e angústias mais ou menos "existenciais" e pessoais de Fonda ou uma pessoa sem escrúpulos que não hesita em utilizar (inclusivamente uma criança!) para se interpor, pela força das armas, entre ela e Ray...

Do filme como filme, salva-se, diria eu, em última instância, a personagem de 'Zar'/Keenan Wynn, vital e truculento (fazendo uma personagem mais ou menos explosiva e repugnante de taberneiro e proxeneta, ela própria demasiado óbvia e linear, de indivíduo sem escrúpulos que "só vê dinheiro à frente" mas que o experiente actor defende, é inegável, com reconhecível competência).

Tudo o mais (até o grande Fonda às voltas com uma personagem, como disse, francamente mais confusa e mais indecisa, tíbia e pusilânime do que nobremente convicta dos valores da não-violência que supostamente deviam nele imperar...) se afunda numa "estória" frouxa e desprovida de qualquer significação real, para além do que parece, em última análise, não passar de ser o mero propósito de apresentar uma, como disse (quase?) completamente arbitrária e narrativamente inorgânica, sucessão de incidências e episódios, 'carpinteirados' numa estrutura globalmente oscilante e, em larga medida, des-conexa que caminha penosamente para um fim, aliás, absolutamente previsível mas desoladoramente "flat" ('Blue' mata 'the man from Bodie' porque a este... se acabaram as balas...) fim esse que parece, de resto, escolhido a dedo para corresponder ao cinzentismo e à mediania geral que caracteriza, afinal, todo o filme.

Ora, dito isto, vale a pena acrescetar, então, que a razão pela qual vale, apesar de tudo, conhecer o filme é, como disse, de ordem historicamente circunstancial e/porque contextual, digamos assim.

Nele está já, com efeito, todo o cinema que se segue---aquela parte dele que tenta, apesar de tudo, ressuscitar, "à bon marché" e "no exílio", um 'genre' (como tal, pelo menos) definitivamente morto e enterrado na origem.

Está antes de mais, diria eu, no evidente amoralismo global do filme: desde logo, na inexistência de verdadeiros heróis ou heroínas: nem 'Blue' é um 'herói', nem 'Molly' uma 'heroína'---ninguém, como digo, o é, de facto, no filme, não sendo, todavia, num sentido dialéctico profundo e reralmente significativo, tão pouco, qualquer deles, um anti-herói ou uma anti-heroína: são apenas pessoas fracas e egoisticamente centradas sobre si e sobre os seus respectivos problemas individuais, nenhum deles constituindo uma verdadeira referência ética (ou até mesmo apenas crítica) minimamente referencial e/ou sequer reconhecível: predomina, com efeito, em "Welcome To Hard Times", uma visão geral evidentemente amoral e cínica, por exemplo, da Mulher e até da própria Juventude, visão essa que daquela inexistência total de 'heróis' e até sequer de alguma forma demonstrável de heroicidade, material ou mesmo apenas interior, no filme, directamente decorre.

Ou que, se assim se preferir dizer, antecede e, sobretudo, explica a natureza eticamente amorfa, tíbia e profundamente equívoca das personagens.

Está (esse tal cinema europeu que vai tentar, a seguir, "pegar" nas ruínas do 'genre' "western" a fim de lhe tentar insuflar um último sopro de vida e falando ainda, especificamente do amoralismo e do cinismo da visão do filme) na ambígua identificação da ideia de "vida" na cidade representada, no fim, pela fixação mais ou menos definitiva do prostíbulo de 'Zar' e pelas excelentes perspectivas de encaixe económico que, para este, significa a reabertura da mina vizinha...

Está até no já citado desenho físico da cidade (que com aquela aparência pantanosa, caótica, inorgânica e isolada surgia já em alguns filmes norte-americanos do período dourado do "western", é verdade, como já referi---estou a recordar-me de "Shane"" de que já falei ou de "River Of No Return", de Preminger, por exemplo) mas que no "western spaghetti" vai constituir um verdadeiro lugar-comum topográfico.

Em cidades semelhantemente esparsas pelas planícies e atoladas em lama vão, a breve trecho, com efeito, homens como Clint Eastwood ou Lee Van Cleef, "importados" expressamente dos Estados Unidos (designadamente do meio comparativamentre secundário---e "barato"---da televisão, no caso de Eastwood) passar os anos seguintes a essa viagem transcontinental a dar tiros em tudo o que mexa, matando gente em verdadeiras catadupas ou cascatas de pólvora e sangue e pela mesmíssima ausência credível de motivos (se motivos há, obviamente, para matar mas essa é outra questão...) de que dá (sonoras!) mostras a personagem de Aldo Ray no filme de Kennedy.

Há concretamente no filme figuras---"bonecos"---que são já autênticos 'modelos' de outras tantas personagens mais ou menos recorrentes do "western-spaghetti": estou a lembrar-me, por exemplo, ainda e sempre, desse truculento 'Zar' e da sua grosseira cupidez: Paolo Stoppa, por exemplo, fará, com ligeiros retoques 'de circunstância', no fundo, exactamente a mesma figura em "ene" dos tais "westerns-spaghetti" para onde, a dado passo passo da sua respeitável carreira, o transplantaram.

Em todos estes aspectos de ordem sobretudo moral e ética no modo de conceber a praxis do indivíduo na História se anuncia, com efeito, já todo o labiríntico e equívoco "barroco" e todo o ostensivo (não-raro provocatório!) cinismo do "western spaghetti" que emergirá, em todo o seu esplendor (e algum teve, é forçoso reconhecer!) na década seguinte, sobretudo, com outros "tarefeiros" como o já citado Sergio Corbucci ou o infinitamente mais consistente e interessante Sergio Leone de que me proponho falar com mais detalhe, noutro momento e noutro lugar deste "Diário".

Sem comentários: