quarta-feira, 15 de julho de 2009

"Reflections In A Golden Eye" de John Huston


Tal como, por mera coincidência, aliás, sucede relativamente ao filme que imediatamente se segue, "Welcome to Hard Times", desconhecia, confesso, a versão cinematográfica da obra de Carson McCullers (essa sim, a obra, minha "velha conhecida"...) "Reflections In A Golden Eye", traduzida há vários anos entre nós e editada pelos, também eles, "velhinhos" Cor.

A obra causou, à época, em Portugal, alguma (moderadamente acalorada, como convinha ao circunspecto 'espírito' dos cinzentíssimos tempos da ditadura...) agitação.

Obra "difícil" para alguns (é preciso dizer que não eram, assim tantas, as obras que o não fossem, nesse tempo de censuras e indexes de todos os tipos e naturezas, do religioso ao político...) obra "tennessee-williamsiana", para outros, chegou, bem me lembro, a ser referida em aulas na Universidade, a propósito do estudo da obra de autores como o já citado Tennessee Williams (só aí, de resto, verdadeiramente lido sem inibições e sem púdicas, inúmeras reservas...) ou Ralph Ellison ou até o à época não muito literariamente "respeitado" embora amplamente lido (não-raro, também ele, em algum 'recatado' segredo, aliás...) Erskine Caldwell.

Voltando, porém ao filme propriamente dito: já vários anos volvidos, soube que o grande John Huston tinha da obra da autora de "The Heart Is A Lonely Hunter" e "Clock Without Hands" extraído uma versão cinematográfica que permaneceu, todavia, para mim, durante todo esse tempo, objectivamente inacessível.

'Ofereceu-no-la' agora (como de costume impiedosamente escortinhada para caber num arbitrarísimo écrã quadrado para a qual não foi concebida e "par dessus le marché" pudicamente... "cuspida" em cima---"crachée dessus"...---com a repugnante "bola vermelha" com que os moralmente idiotas e os intelectualmente pobres de espírito na televisão gostam de "decorar" as obras que têm, a infelicidade de lhes passar pelas farisaicas mãos...) a RTP 2, numa sessão que terminou---como, de resto, invariavelmente sucede com qualquer coisa que, mesmo remotamente, se destaque pela positiva da tradicional inanidade telenovelesca reinante---de madrugada.

Ainda assim, isto é, apesar das "cuspidelas" a vermelho e do "ferro" da casa marcando impudentemente o 'cavalo fílmico' (quando será que aquela gente aprende a lição do Mezzo--que coloca o seu símbolo fora das partes 'nobres' do écrã de modo a não tapar boçalmente rostos e outras zonas importantes do écrã?---valeu seguramente a pena esperar até às três ou quatro da madrugada para poder apreciar mais uma obra daquele que é (que veio, pelo menos, a ser) seguramente um dos mais "europeus", entre os cineastas de referência norte-americanos.

Sou, tenho de confessar, francamente parcial relativamente a Huston, autor, aliás, de algumas das mais importantes obras do cinema assim como de outras que, não possuindo reconhecivelmente idêntica relevância, não deixam, apesar disso, de cativar e até, mesmo, em alguns casos, de empolgar pela sua qualidade intrínseca (quase...) sempre, desta ou daquela forma, reconfirmada.

Se, com efeito, não apreciei especialmente, por exemplo, "A Bíblia" (claramente uma 'operação comercial' cinematograficamente questionável, muito "de milleana") guardo de "The Misfits", por outro exemplo---uma obra que a crítica arrasou, aliás, quando estreou entre nós---apesar disso uma recordação extremamente positiva de um filme desértico e de algum modo desencantadamente terminal com um Clark Gable consideravelmente fragilizado e poderosamente crepuscular que morreria, aliás, durante as filmagens e uma Marilyn Monroe invulgarmente séria, credível, complexa e amarga (embora eu sempre tenha estado persuadido de que, nos papéis realmente 'certos' como o que fez em "River Of No Return" ou nesses mesmos "Misfits", Marilyn conseguia ser uma presença cinematográfica invulgarmente preponderante---e, devo dizer, não apenas pelo físico e/ou pelos 'tiques' característicos que, de resto, a celebrizaram (que Henry Hathaway, por exemplo, não soube valorizar para além do óbvio e do cliché no famosísmo "Niagara" mas de que Howard Hawks, o genial Hawks, tirou uma "coisa" notável e, a seu modo, definitiva chamada "Gentlemen Prefer Blondes": o andar coleante, o olhar velado enfim, como diria um norte-americano: "the works".

Mas voltando a "Reflexos Nuns Olhos de Ouro", há a dizer que se trata de uma daquelas obras admissivelmente, sob diversos aspectos, imperfeitas que, porém, se não se podem incondicionalmente admirar, se podem, em todo o caso, seguramente e como pretendia Truffaut, amar.

Há em todo o filme, na realidade, um registo distintamente familiar e (quase?) intimista (potenciado, a meu ver, por um lado, pela técnica de representação, desde logo, de Marlon Brando, caracteristicamente impositiva, de um modo ou de outro, poderosa mas nem sempre---bem pelo contrário e bem à sua maneira---'naturalista' e, por outro, até pela própria cor sépia em que Huston o filmou e que aponta irresistivelmente para um registo de velhas fotografias cujas cores o tempo apagou já...) registo intimista e familiar esse (o filme é, de facto, todo ele passado connosco---com os nossos próprios olhos, se calhar não tão "golden" como isso...---a espreitar para dentro dos "skeletons" de dois ou três "closets" familiares...) potenciado, por seu turno, ulteriormente por uma certa teatralicidade persistente, presente nos muitos interiores e/ou na, igualmente muita, acção definida a partir de cenas fisicamente estáticas ou quase e, simultaneamente, marcadas por "picos" muito "fortes", num sentido específica e, de algum modo, até distintivamente teatral, evocando, de facto, mais ou menos clara e mais ou menos até expressamente, alguma da 'lógica composicional' (das personagens como da própria narrativa como tal) que é usual associar directamente ao 'palco' (e de que a sequência das chicotadas de Taylor a Brando é possivelmente um eloquente---e, sem dúvida, dramaticamente fulgurante---'exemplo').

Nada disso, porém, para quantos apreciam, por exemplo, os trabalhos de «mise-en-scène» de um Elia Kazan (assim como, de um modo cumultivo, a obra de um Tennesse Williams de que é, com efeito, razoavelmente difícil dissociar, hoje, grande parte da indisputável relevância cinematográfica e, de um modo geral, cultu(r)al e artística de Kazan---uma obra, no caso do dramaturgo, fortemente assente, como é sabido, num suporte conceptivo onde um elemento de fortíssima (auto) repressionalidade distintivamente sexual desempenha um papel determinante e, com frequência central, nuclear, mesmo; nada disso, porém, dizia, retira (a meu ver, pelo contrário!) eficácia narrativa substantiva ao filme.

Trata-se com efeito de um filme sobre a impotência, a auto-mutilação e a dissolução ou suspensão de todas ou quase todas as formas de acção e sua concentração (seu "transfert") para um ou vários (todos ou quase todos eles impotentes) olhares.

Logo a partir do próprio título, aliás.

Todo o filme é, pois, a imagem do real passivamente reflectido, uma crónica da impossibilidade---um olhar trágico sobre o Impossível.

É, de igual modo, o retrato pungente de uma luta (lá está: muito "tennessee-williamsiana"...) e (literalmente) num caso, mortal, entre a tirania da vulgaridade (os polos definidos pelo par 'Leonora'/Liz Taylor e 'Morris Langdon/Brian Keith, um admiravelmente sóbrio e eficaz Keith desenvencilhando-se com um brio assinalável no meio de monstros da representação como Brando ou Julie Harris, defendendo---e com enorme brilho!---a mais "tennessee-williamsiana" de todas as personagens do filme e grande actriz que com o aqui já citado Kazan tinha entrado na História do Cinema ao protagonizar, desde logo, o ambicioso "East Of Eden" a partir da obra clássica de Steinbeck) e a diferença, a inadaptação, i.e. aquilo que pretende, em vão, escapar ao império brutal de uma ordem, no fundo, desprovida de um verdadeiro sentido para além do vazio exterior dos gestos e/ou das 'poses' (realidade essa simbolizada, em última instância, na i/lógica tipicamente militar onde a uniformidade faz, como é sabido, regra).

'Morris Langdon' é, como disse, um paradigma dessa vulgaridade que o une a 'Leonora' mas que o separa dramaticamente da própria esposa---uma fabulosa Julie Harris, soberbamente trágica e contida no papel da delicada e dramaticamente inadaptada 'Alison' (1).

'Anacleto'/Zorro David, um homossexual, ama 'Alison' mas também o seu amor exclui (ou suspende) por definição o conteúdo erótico, sendo também ele, (in?) essencialmente, na realidade, um "olhar" onde se reflecte, de resto, a trágica inadaptação de 'Allison' ao marido e de uma forma geral, à vida (representada pelo modo específico de 'habitar a realidade' que nos é mostrado como constituindo o paradigma de existência de esposa de militar).

Aparentemente, 'Anacleto' não é a única figura de homossexual no filme: há, na torturada personagem de 'Weldon'/Marlon Brando uma espécie de possível atracção 'trouble' por 'Williams' (Robert Forster, o adorador silencioso de 'Leonora' que ele acaba de resto por 'executar', no fim: porque Brando que com ele "flirtou" em angustiado silêncio, por ele, 'Williams' conduzido e manipulado, em óbvioo fascínio, durante grande parte do filme, quer nele matar a atracção proibida por si sentida?...).

Há, não só nessa "relação" equívoca e angustiadamente silnciosa mas, como disse, em toda a obra uma série de sugestões de ordem simbolicamente sexual, desde logo, veiculada pelas recorrentes imagens do cavalo e do montar.

Toda esta densa "crónica" do desencontro e da frustração e/ou impossibilidade é, como disse, contada num tom de desesperançada distanciação (tudo "aquilo" já aconteceu, sabemos à partida que nada "daquilo" pode objectivamente ser mudado: no próprio momento em que presenciamos os factos já algumas daquelas pessoas podem estar mortas---uma está-o seguramente) que potencia aquela teatralicidade atrás referida: nada podemos, com efeito, fazer.

É-nos completamente vedado «intervir» nos factos para, em tese, modificá-los porque a verdade é que já nada daquilo realmente existe com aquela forma e envolvendo aquelas pessoas.

Resta-nos, pois, também a nós, olhar.

Como (lá está!) no teatro.

É, por um lado, a tensão (e o registo de implícita dissonância) que se estabelece entre o estatismo muito presente do filme e a explosiva tensão que esse estatismo esconde e ele próprio, a seu modo, "narrativamente oprime" e, por outro, entre a consonância perfeita entre tempo real e tempo ficcional (o segundo "desprendendo-se" definitivamente do primeiro, com o qual, devido ao referido facto de o primeiro já se ter extinguido, não coincide) e e entre o tempo no seu (descontínuo) todo, isto é, o tempo como algo cujo controlo escapa completamente à possibilidade humana de agir e o registo dramático (in/essencialmente contemplativo) escolhido que faz a meu ver o encanto do trabalho de Huston e cumulativamente que faz com que possamos, como disse, amá-lo como algo de ao mesmo tempo, íntimo, desesperado e sensível a que não conseguimos deixar de perdoar, em resultado dessas humaníssimas características, as falhas e os erros.


(1) Falei de uma persistente "sombra" (ou será, ao invés, uma persistente luz?...) muito "tennesse-williamsiana" pairando sobre a atmosfera de tensa e densa auto-mutilação erótica no filme.
Ulteriormente, distingo, em tese, possivelmente uma outra sombra/luz (ou paralelismo) possível, francamente mais remoto (mas, não menos sugestivo, esse): o que é susceptível de se estabelecer com Beckett e a ideia da Morte infantil como simbolo «nulotópico» eliíptico, evidente (pungente e até obsessionalmente pungente, tal como, de resto, aqui) em, "All That Fall" de Beckett, onde também a morte de uma criança repercute e reverbera tragicamente sobre toda a (in) acção da peça, marcando de diversas maneiras e em mais de um sentido, também a toda ela.


[Imagem extraída com a devida vénia de "stinkylulu"]

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