sábado, 25 de julho de 2009

"High Noon" de Fred Zinnemann

Escolhi por duas razões essenciais este famosíssimo plano de "High Noon" de Zinnemann para ilustrar a tese de que um certo (e, se calhar, 'perfeito', puro) paradigma de "cinema" ou de "cinematicidade" (de... "film-hood") está, todo ele, idealmente, no "western" onde, de facto, salvo raras excepções, o "Teatro" (ou "teatralicidade") não acham, a não ser muito indirecta e muito remotamente, eco reconhecível; escolhi-o plano em causa, dizia, porque ele, efectivamente, na sua aparente simplicidade (um homem com um chapéu e uma estrela no peito desce uma rua deserta, no fundo, nada mais do que isso) possui, de facto, uma "carga sémica" poderosíssima, muito dificilmente esquecível .
Pessoalmente, devo dizer que vi o filme há muitos anos (no antigo "Império") e nunca mais, desde esse momento, esqueci a fortíssima impressão global de trágica, irregressível, absoluta e irremediável fatalidade (de Fatalidade com maiúscula!) a que a caminhada de 'Coop' dirigindo-se (determinao? Resignado? "Determinado à resignação" e conforme com as "leis" de uma certa realidade que anteriormente desencadeou ou detonou?) para o duelo (o "showdown" final que o é também, na realidade, consigo próprio e com a sua condição específica de homem 'condenado' a fazer escolhas cujas consequências inevitavelmente lhe escapam como escapam, no fundo, a todos nós, homens como ele) fornece, de facto, um suporte visual verdadeiramente 'perfeito', arquetípico mesmo, num certo sentido visualmente revelador e absoluto (eu chamar-lhe-ia, certamente por deformação profissional, devida à minha formação académica de natureza primordialmente linguística: num sentido ideogramático total).

Torna-se, com efeito, a meu ver, muito difícil voltar a conseguir transmitir uma ideia ou um conceito, no fundo, abstractos (o da inevitabilidade completamente inelutável da Morte como algo de, repito, fatalmente indissociável da própria condição humana como tal) de um modo onde ela surja deste modo, a um tempo, concreto mas sem perder, em momento algum, essa essência abstracta que nos une, no limite, a todos, homens como 'Will Kane'; de uma forma tão poderosa e tão tragicamente despida de qualquer elemento de supérflua emocionalidade ou até de outra forma de beleza que não seja essa que resulta, de forma involuntária, natural e, ao mesmo tempo, inerente, intrínseca à assunção integral final da própria condição humana enquanto tal, por parte de si mesma; da assunção dos seus limites mas, de igual modo de uma estóica, inelutável necessidade estritamente pessoal---dignamente pessoal!---de cumpri-la com o 'rigor' e a elevação necessárias até ao seu impiedosamente inevitável fim).

O que me impressionou (e continua, ainda hoje, a impressionar) é que, num filme em que as palavras não se substituem, em caso ou circunstância essencial alguma, às imagens, essa informação tão dificil de "dar" num filme, sem retórica, tenha chegado a um espírito adolescente como era o meu à época, da forma clara e marcante por que chegou.

A essência da cinematicidade"---um "específico cinemático" nuclear, 'endógeno' e completamente autónomo---é, em última instância, exactamente isso: a arte de dispensar estrategicamente a mediação determinante das palavras (muito belas, seguramente, quando sabiamente trabalhadas por quem saiba fazê-lo xcom exactidão e rigor mas, de algum modo, algo de in/essencialmente "estrangeiro" à própria essência do medium) a fim de transmitir, não tanto 'emoções' (que se prestam sempre a uma certa superficialização e a uma certa vulgarização secundárias que nem sempre fazem, uma e outra, inteira justiça às potencialidades expressionais intrínsecas e autónomas do 'medium', do Cinema com maiúscula---mas ideias e reflexões, pensamentos, algo de muito mais sério e profundo envolvendo o estudo realmente significante e nobre do Humano.

Ora, sucede que o "western" é, mau grado os que medem o seu peso narracional e representacional-projeccional específico da mente humana pelos exemplos mais fáceis e até (por isso, mais banais e, naturalmente, mais facilmente populares) o verdadeiro herdeiro da atitude épica clássica, por oposição à atitude trágica igualmente clássica, grega sobretudo, a qual acha na palavra o seu suporte comunicacional electivo e até, possivelmente próprio, específico.

Não concordo, por exemplo, com Manoel de Oliveira quando, insurgindo-se, como eu próprio tantas vezes faço, contra uma certa tendência inconfundivelmente comercial ou industrial para superficializar des/estruturalmente a mensagem cinematográfica ou, de um modo mais lato, a própria comunicação cinematográfica como tal, propõe que a palavra substitua (dialecticamente, embora) a visão como meio epistemologicamente ideal de percepcionar e representar cinematograficamente a realidade.

Oliveira é um experimentador, é verdade.

No início da sua carreira, experimentou o cinema "no sítio" (e no modo---no "way" e no "mood") certos, isto é, retirando-lhe o som (porque "cola" o sujeito de cinematicidade---não gosto do termo "espectador"...---excessivamente às representações superficialmente cinematográficas do real, não deixando espaço para a percepção verdadeiramente crítica daquele mesmo real que é cinematograficamente possível de ser feita) e não deixando, também, desse modo, que essa percepção "respire" de forma realmente cinematográfica, por assim dizer, isto é, que ela possua "respiração crítica e analítica" natural e, sobretudo, intrínseca ao meio que utiliza para produzir-se e realizar-se.

Retirar o som ao Cinema (à filmicidade) e impedir (como fez Oliveira em "Douro, Faina Fluvial" e "Aniki-Bóbó", por razões que terão sido tanto "teóricas" quanto o foram por imperativos de ordem técnica e até prática, económica) que as representacionalidade cinematográfica, cromatizando-se inutilmente, se 'confunda criticamente' em excesso com a própria realidade como tal, opera na prática como a integração de um elemento épico ou epiforme, intelecccionalmente distanciador que nobilitava poderosamente o próprio medium, o Cinema, justamente na medida em que o autonomizava ou tendia a autonomizar de todos os outros.

O equívoco veio depois---quando Oliveira, sempre (diversamente, embora) incomodado com o "naturalismo" excessivo dos "produtos" correntes da indústria, pretendeu voltar a encontar-se com o específico cinemático generizadamente perdido, como disse, através do uso intensivo do discurso verbal como "perturbador crítico" "dialectizante" da própria imagem---ou dos usos que lhe eram vulgarmente dados por aquela indústria.

A inteligência em geral (incluindo a que a Arte permite formar da realidade) precisa constante e "educadamente", é verdade, de estímulo---e até de provocação e mesmo alguma bem medida e "bem educada", disciplinad(or)a "dor".

Dispensa, todavia, "soluções" que pretendendo, embora, 'generosamente' autonomizá-la e renobilitá-la, passem, afinal, pela sua entrega mais ou menos total aos "utensílios expressionais" específicos das restantes Artes---como o Teatro ou a própria Poesia.

Isto, para detalhar uma das razões que me levaram a escolher o plano de 'Coop' descendo a rua como ilustração da tese de que... em tese, "todo o cinema" pode, no limite, esgotar-se (talvez) no "western".


A segunda razão prende-se com a escolha feita por Zinnemann de Gary Cooper para o papel de 'Will Kane', o sheriff: o rosto envelhecido, provavelmente já doente, de 'Coop' foi a opção perfeita. Nesse rosto decadente e tragicamente conformado com a esmagadora enormidade da sua solidão (metáfora ideal da solidão da própria condição humana enquanto tal, eterna refém da sua necessidade intrínseca, estrutural, tópica, de agir fazendo, como atrás recordo, continuamente opções cujas consequências se situam, sempre, no limite, para além da capacidade humana natural para controlá-las e de submetê-las controladamente a projectos, reconhecivelmente autónomos, de actuação ou de intervenção humana na---e sobre a---realidade; nesse rosto, dizia, está, com efeito, espelhada, num plano identificavelmente pessoal, individual, concreto, toda a tragédia da condição humana (da "condition humaine", numa formulação precisa que Malraux celebrizou) tal como atrás também já disse, especificamente enquanto tal.

Esse rosto permite, assim, manter inextricavelmente ligados o conceito abstracto e a experienciação estritamente individual, inalienavelmente pessoal, dele, obtendo-se , desse modo, um modelo conceptiva e narracionalmente [no fundo] 'perfeito' porque total de discorrer e/ou de pensar o humano que somos todos nós enquanto tal.

Isto, claro, sem prejuízo da referência figurada que no filme é feita a uma realidade histórica---e política---tristemente bem concreta que foi o maccarthyismo.

Uma coisa não prejudica, de modo algum, a outra: bem pelo contrário, aliás!...

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